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MODOS DE “VER” O ESPAÇO - A PROPÓSITO DE MONTAGENS FOTOGRÁFICAS
JOÃO PALLA
Actualmente arquitectos e designers têm dado grande importância ao aspecto conceptual de projecto, nomeadamente na compilação e registo do processo criativo, através de escritos e matéria gráfica. Pela existência do processo é possível para terceiros analisar, comparar e aferir desde o processo criativo e mental dos primeiros registos até à obra final acabada. Por outro lado possibilita ainda daí poder extrair novas formas de expressão para fins pedagógicos, ou como novo interesse artístico e estético. É porventura interessante verificar que pouco se tem falado da importância do uso da fotografia no trabalho criativo dos arquitectos, pois apesar de se apresentar como uma rotina muito generalizada, ferramenta de memória de registo dos espaços, o uso da fotografia pode ser visto como meio de expressão e mediador entre realidade e ficcionado.
É prática corrente dos arquitectos fotografar os locais de intervenção, o terreno ou a paisagem e encontramos amiúde tais representações nas paredes dos ateliers. A fotografia do local aparece como base de uma fotomontagem onde coexiste a simulação do objecto de arquitectura seja por meio do desenho, seja por meio da reprodução da maqueta ou ainda com a ajuda do CAD – desenho assistido por computador. Este trabalho sobre as fotografias das pré-existências serve estágios diferentes sobre a concepção do objecto. Por um lado funciona como suporte mental de reconhecimento de uma realidade em que se pretende operar, facilitando o processo de criação, na formação de uma imagem. Depois, serve o arquitecto na medida em que pode testar várias alternativas volumétricas e formais, confrontando-as com a envolvente da paisagem. Por último, pode fornecer ao cliente uma visualidade fotográfica com grande proximidade à realidade a construir. Estas fotografias ou visualizações funcionam assim como suporte ao processo cognitivo e cognoscitivo.
Verifica-se porém que uma só fotografia se torna insuficiente para a leitura global de espaços ou de paisagens mais vastas, pelo que arquitectos optam com alguma frequência por fotografar os locais em torno de um ponto, com várias tomadas de vista em diferentes direcções e de forma sequencial. É posteriormente na montagem das fotografias – uma colagem do conjunto das diferentes vistas com momentos de sobreposição – que se obtém uma vista abrangente sobre o local de intervenção. É um processo de entendimento da realidade do lugar, com o sentido de mapeamento da recolha visual, de apreensão global do espaço, servindo de palco a uma série de ensaios possíveis, onde o objecto arquitectónico projectado terá de se inserir e de dialogar e onde se pode comparar o antes e o depois.
Para um arquitecto, estas fotografias são vistas enquanto parte do processo criativo de projecto, talvez base de um desenho de representação do objecto, uma colagem de vistas, nunca como objecto acabado, sublimado ou fotograficamente artístico. Existem no entanto casos em que este procedimento se aproxima em objecto de criação artística. Veja-se o caso do romeno Iosif Kiraly, arquitecto e artista visual, com a sua série Triaj exposta recentemente na Fundação Gulbenkian e integrada na Lisboaphoto 2005. Iosif Kiraly toma como premissa esta prática de registo do espaço com a máquina fotográfica para considerar a fotografia com preocupações em descobrir a distância enigmática entre a realidade do mundo e as suas projecções. São fotografias de espaços urbanos que através de pedaços de informação se constroem adquirindo uma continuidade na leitura espacial, admitindo sobretudo grandes fracturas temporais entre vários pedaços destas imagens. O fotógrafo volta a recuperar a mesma tomada de vista para indicar essa fractura com o tempo; no mesmo arruamento, os passeios apresentam-se com transeuntes que se passeiam ao sol, e no momento seguinte vemos a calçada coberta de neve com pessoas que aparecem agora cobertas funcionando no mesmo conjunto. Iosif Kiraly captura a presença do espírito envolta, a alma do sítio com as pessoas, os cães e as poças de lama, sem preocupação de uma boa fotografia artística ou para publicação. O objectivo deste projecto iniciado pelos arquitectos e artistas Mariana Celac, Iosif Kiraly e Marius Marcu Lapadat é segundo estes, documentar o conjunto de blocos de apartamentos construídos durante o comunismo na sua relação de transformação ao longo do tempo.
David Hockney lembra que quando observava fotografias, havia algo que não estava, uma ablação que ele veio a mostrar que era a própria representação do tempo. Hockney começa por perseguir uma visão simultânea de vários aspectos circundantes, querendo ter o domínio do espaço de uma forma livre como tinha no desenho ao que ele chamou de “Desenhos com câmara”. Chegou inclusivamente ao ponto de experimentar estas construções com fotografias durante uma conversa entre dois amigos onde havia diferentes expressões dos personagens que eram registados em diferentes momentos e a montagem iria incluir as emoções destes “actores” de forma a equiparar-se a uma narrativa visual.
Existem nestas colagens fotográficas quer de Kiraly quer de Hockney a representação de algo mais que o referente imediato, alia-se uma memória, uma visão que une a vontade de criar a uma vontade de relembrar, sendo a acção da representação do tempo determinante neste sistema. Se por um lado estas fotografias correspondem a um entendimento arquitectónico do espaço, por outro lado, pretendem representar mais do que isso. A possibilidade de uma fotografia de um espaço ganhar significado depende, em parte, da realização de uma representação que deve também referir-se a alguma outra coisa. Estas fotografias parecem colocarem-se a dois níveis, o da qualidade da fotografia como representação do espaço, e o do âmbito da filosofia da comunicação. Parece hoje um dogma a afirmação de Walter Benjamin quando dizia que a fotografia gerou a primeira revolução em relação ao papel da criação artística "Pela primeira vez a mão se libertou das tarefas artísticas essenciais, no que toca à reprodução das imagens, as quais, doravante, foram reservadas ao olho fixado sobre a objectiva. Todavia, como o olho apreende mais rápido do que a mão desenha, a reprodução das imagens pode ser feita, a partir de então, num ritmo tão acelerado que consegue acompanhar a própria cadência das palavras". Nesse sentido, entende-se melhor o papel da fotografia na transformação do tempo em espaço e do espaço em tempo.
Este tipo de representação em Iosif Kiraly é interessante porque resulta de uma procura de novas narrativas capazes de recuperar uma consciência crítica das implicações culturais após a mudança política e social na Europa de Leste. É resultado de uma realização já no período capitalista sobre um cenário visivelmente comunista. Bucareste é ainda hoje em dia percepcionada pelos seus massivos blocos de habitação construídos durante o período de ditadura de Ceaucescu. É pois sobre esta ferida aberta deixada pelo modernismo socialista, pela modernização industrial e pela construção de novas arquitecturas anti-modernas, que o autor investiga, procurando pistas. Indaga sobre o modo como nos relacionamos com as produções culturais que também assimilaram transformações urbanas. Ele usa este modo de apropriação da fotografia como ferramenta quase convencional para a sua visão crítica, uma vez que o modo como se vê a cidade está directamente ligado ao potencial para se criar a mesma. Nos anos 80 o filósofo Vilém Flusser no seu ensaio “Phantom City”, criticava os fotógrafos por estes manipularem a imagem da cidade retirando as pessoas e apresentando-a como desejariam que ela fosse acusando-os de uma atitude anti-humanista. Dizia ele que estas fotografias são documentos de um propósito, da inversão da relação objecto-sujeito. A percepção da cidade ou da arquitectura pode assim não corresponder à realidade. Embora falemos de fotografia como modo de ver o espaço, a fotografia de apresentação de arquitectura actualmente serve na maior parte das vezes o carácter promocional do objecto apresentado, manipulado para uma fotogenia intencional que pouco tem que ver com a obra propriamente dita. A forma como os próprios arquitectos julgam as obras através de fotografia pode ser um engano, havendo muitas obras de qualidade espacial e arquitectónica que não são fotogénicas, logo a questão da sua representação é um problema que só se dissolve com a percepção do construído. No processo de percepção da cidade, Iosif Kiraly não toma como garantidos pré-conceitos sobre imagens arquitectónicas e urbanas, pelo contrário, ajuda a definir instrumentos e uma forma de “ver” concebendo um modelo para compreender e talvez actuar sobre as complexidades do meio ambiente urbano
Ao arquitecto de hoje impõe-se um novo desafio de “ver” o espaço, dada a cultura emergente dos novos conhecimentos que ocorrem na sociedade. A lógica rectilínea do espaço cartesiano, onde os pontos podem ser mensuráveis nas suas coordenadas x, y e z, torna-se obsoleta uma vez que a tecnologia virtual encontrou como adicionar a coordenada temporal. A arquitectura e a cidade são agora vistas como um complexo sistema dinâmico e interactivo que se funde a todo o momento; Para Zaha Hadid, o espaço hoje em dia é contrário ao objecto. No seu projecto para o Centro de Arte Contemporânea em Roma, o edifício entrecruza-se com o contexto urbano ganhando uma nova dimensão pública, de fusão ou não distinção entre objecto/edifício e espaço urbano. É o não edifício. Este aspecto de hibridação entre duas entidades aparentemente distintas oferece uma nova concepção de espaço e de temporalidade, resultante da densidade polivalente do séc. XXI. É esperado, que esta complexidade seja modelada por processos não lineares, possibilitando ainda novas formas de interpretação do espaço urbano e arquitectura, movendo-se assim para além do estaticismo físico do construído, do espaço fechado ou mesmo de argumentos funcionalistas ou causativos. O tempo, duração e temporalidade parece terem começado a perseguir a retórica de arquitectura. Note-se o caso do projecto do Centro Nacional de Natação para Pequim projecto do gabinete australiano PTW, actualmente o paradigma da imaterialidade, não só no seu aspecto construtivo – espuma simultaneamente regular e irregular, podendo ser solidificada desde o duro ao macio e do transparente ao opaco – mas também no plano simbólico ou da Cultura imaterial, inserindo-se na filosofia chinesa e nas relações de equilíbrio de Yin e Yang. Ao adaptar-se às condições exteriores, garantindo preocupações energéticas e de iluminação este edifício aproxima-se de um ser vivo capaz de instantaneamente trocar a sua matéria ou imaterializar-se.
Facto estranho este que a cultura nos lega; consagrar aquilo que é uma experiência passada e enfrentar o desafio do uso da tecnologia sem perder a nossa capacidade de “ver” novas estratégias de mediação crítica com o mundo.
João Palla e Carmo
arquitecto
docente na Esc. Sup. Design, IADE
mestrando Design e Cultura Visual
Fontes:
AA.VV., “Diccionario Metápolis. Arquitectura Avanzada”, Actar, Barcelona, 2001.
FLUSSER, Vilém, “Phantom City. La ciutat espectro”, Fundación Joan Miró, Barcelona 1985.
FREITAG, Michel, “Arquitectura e Sociedade”, Dom Quixote, Lisboa, 2004.
HOCKNEY, David, “Catálogo da exposição”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1985.
MAGNET, Myron, “Paradigma Urbano. As Cidades do Novo Milénio”, Quetzal Editores, Lisboa, 2001.
WALTER, Benjamim, “Sobre arte, técnica, linguagem e política”, Relógio d´água, Lisboa 1992.