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ARCHIZINES – QUAL O TAMANHO DA PEQUENÊS?
IVO POÇAS MARTINS
Seguiam um guia de viagem que uma qualquer turma de arquitectura tinha feito uma década atrás. Alguém tinha perdido o tempo que eles não perderam na biblioteca da faculdade a fotocopiar livros e revistas – algumas delas também fotocopiadas e desbotadas – e tinha compilado tudo o que, até àquela data, valia a pena ver. Eram uma vintena de folhas de papel de formato A6 entre dois cartões cinzentos de fazer maquetes presos por duas argolas em aço – em muito bom estado para a idade. Na capa lia-se apenas "Berlim" em relevo seco.
Estavam em Huttenstraße. Depois de três dias na cidade a seguir a lista das obras mais evidentes a visitar, tinham-se libertado da horda de turistas do museu judaico de Daniel Libeskind ou da cúpula de Norman Foster no Reichstag.
Ao primeiro edifício de gaveto em tijolo, C., que empunhava o precioso compêndio, parou. Voltou a olhar para a reprodução a preto e branco da fotografia da galeria da AEG de Peter Behrens:
– É isto?
– É. – confirmou D. a medo, interrompendo uma hesitação colectiva.
– Isto é muito bom. – ensaiou uma voz entre os quatro com uma assertividade em que todos concordaram respectivamente com um aceno de cabeça, um cruzar de braços e o desembainhar da câmara digital.
Procuraram o ângulo certo, o mesmo que já tinham visto tantas vezes impresso. P. semicerrou os olhos para desfocar o que via, tanto como a imagem do guia. Estavam afinal a dois quarteirões do troféu. Sorriram, embaraçados. Voltaram a descer Huttenstraße. Refizeram a pose e, finalmente, repetiram o ritual com renovada convicção:
– Isto é muito bom!
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Esta anedota serve para ilustrar os ingredientes que estão na origem de Archizines: o entusiasmo individual ou partilhado pelos temas que gravitam em torno da Arquitectura e da Cidade e a preciosidade do material impresso que os veicula.
O limiar entre ser-se entusiasta ou um fã de arquitectura, comparável a um fã de música ou de ficção científica, transpõe-se pela vontade de passar da condição de mero espectador ou "consumidor" de arquitectura e inventar formas para ter um papel activo e visível na sua invenção, discussão ou edição. A imagem da "imprensa de garagem tal qual o rock de garagem" [1], continua aqui a ser eficaz – na militância de quem a produz e na urgência do que se quer dar a ver. Ainda que tropece despreocupadamente no erro como estes quatro archigeeks [2], na sua primeira viagem a Berlim: "Just because it’s in print doesn’t mean it’s [the] gospel. " [3]
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Archizines é um "arquivo em expansão" de fanzines, jornais e revistas de arquitectura "independentes" e "alternativas" de mais de 20 países, lançadas desde o ano 2000. Nasce do interesse e de uma recolha individual feita por Elias Redstone [4] ao longo de várias viagens e torna-se agora um projecto público. Elias lança em Archizines a hipótese de se ter dado neste século um aumento relevante do número de edições de arquitectura em formato impresso, num fenómeno comparável ao período entre os anos 1960 e 1970, aparentemente em contracorrente com a actual era digital.
A primeira abertura à fruição e participação pública de Archizines deu-se com o lançamento da página web (www.archizines.com) onde, para além de se apresentarem todos os números dessa recolha, se fez um autêntico call for papers: um apelo ao envio de diferentes edições impressas com estas características.
A exposição de Archizines, esteve patente em Londres, na Architectural Association, entre 5 de Novembro e 14 de Dezembro de 2011. A exposição, pela grande quantidade de projectos editoriais recolhidos, acontece apenas um ano após o lançamento do site. Estão aqui expostos um exemplar de cada uma de 60 publicações seleccionadas do arquivo, dispostas por ordem alfabética em mesas às quais o visitante se pode sentar para as manusear com o tempo devido.
Na parede, um mapa do mundo localiza a origem das publicações e, em quatro ecrãs iPad, os 60 grupos editoriais representados respondem através de um registo em vídeo a quatro questões: "Qual a relação entre a arquitectura e o acto de publicar?", "Como se ‘edita’ arquitectura?", "Qual o papel do formato impresso na era digital?" e "De que modo estão a mudar as publicações de arquitectura?". Um quinto iPad permite a consulta do site de Archizines.
A forma como está montada a exposição – propondo uma categorização alfabética e não temática dos exemplares impressos, demonstrando a representatividade geográfica dos elementos recolhidos, expondo dúvidas e admitindo uma grande pluralidade de respostas e o próprio dispositivo expositivo, reforçam o seu carácter de arquivo, de material a ser pesquisado. O site, a exposição, o ciclo de conversas Archizines Live e a publicação do catálogo procuram desenvolver estas questões, assumindo o risco de cartografar, em tempo real, o estado actual destas publicações "independentes" e "alternativas" de arquitectura. Em tempo real, a própria discussão e participação tornam-se matéria relevante do projecto. Archizines "celebra e promove as publicações independentes e alternativas como uma arena para o comentário, crítica e investigação arquitectónicas, e como uma plataforma criativa para a nova fotografia, ilustração e design." [5]
"If anything this is just a beginning." [6] A exposição de Archizines entrará em itinerância, admitindo a cada momento a alteração dos exemplares expostos. À data da publicação deste artigo, a exposição em Londres terá já terminado. No entanto, a sua itinerância passará por Milão e Nova York (com data a anunciar) e perspectivam-se já outros locais, incluindo Portugal.
Fazem parte da exposição o fanzine Friendly Fire, a revista Scopio e a Beyond, holandesa com edição de Pedro Gadanho, que contribui também com um artigo para o catálogo de Archizines. Pertencem adicionalmente ao arquivo de Archizines as portuguesas Dédalo e NU. A totalidade das revistas recolhidas até agora e todas as que se perspectivam juntar integrarão a colecção permanente da biblioteca do Victoria & Albert Museum.
LITTLENESS, LOUDNESS E SLOWNESS
O facto de este projecto acontecer pouco mais de um ano depois da edição de Clip/Stamp/Fold [7], projecto de investigação da responsabilidade de Beatriz Colomina na Universidade de Princeton, torna inevitável a referência (se não a comparação) a estas duas décadas onde "[...] a explosão de pequenas revistas de arquitectura [...] instigou uma transformação radical na cultura arquitectónica [...]".
O termo little magazines, recuperado por Denise Scott Brown da publicação Little Review [8] torna-se chave para a compreensão do carácter destas revistas para além do lugar-comum do emprego dos termos "independente" e "alternativo". O facto de Little Review se publicitar como "The Magazine That Is Read By Those Who Write The Others", acrescenta ainda o seu papel enquanto campo de debate e inovação.
A littleness, ou a pequenês, atribuída a estas publicações não se traduz necessariamente na sua dimensão ou no tamanho da sua edição. Vemos representadas em Clip/Stamp/Fold revistas de referência com histórias que antecedem e sobrevivem ao período estudado como a L’Architecture d’Aujourd’hui, a Casabella, a Architectural Design ou a Lotus. É intrigante ver como estes projectos editoriais surgem em conjunto com outros de carácter mais circunscrito no tempo e que são, de facto, em termos materiais e de meios, revistas pequenas, muitas vezes de produção artesanal: panfletos desdobráveis, conjuntos de fotocópias agrafadas com graus muito distintos de sofisticação gráfica. Em Clip/Stamp/Fold, descreve-se este período como um moment of littleness, onde estas publicações estabelecidas, muitas vezes em resposta a uma conjuntura económica desfavorável, encontram nessa adversidade uma janela de oportunidade para as mudanças nas suas políticas editoriais, com reflexo nos meios materiais usados, como o papel e os tipos de impressão, nos autores e nos projectos escolhidos. É neste contexto que surge o Cosmorama na Architectural Design com o seu entusiasmo pela ficção científica, as estruturas insufláveis, as tecnologias de comunicação e as drogas, ou que em Casabella se promove a Arquitectura Radical, de que são exemplo as colagens de grupos como os Archizoom.
Os avanços nas tecnologias de impressão e de comunicação terão desempenhado um papel-chave na definição de práticas de vanguarda nos anos 1960/70 pela sua rapidez e economia. Estas publicações novas e energéticas ajudaram a formar uma rede global de troca entre estudantes e arquitectos e entre a arquitectura e outras disciplinas. A inclusão em Clip/Stamp/Fold do "The Whole Earth Catalogue", editado por Stewart Brand, uma espécie de manual de instruções para a construção de comunidades hippies que se estabeleceram em desertos e outros locais remotos norte-americanos, é representativa desta abertura multidisciplinar, particularmente importante numa altura de crise ideológica e de grande fascínio pela ambivalência da tecnologia – do computador à bomba atómica: "We are as gods and might as well get good at it." [9]
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A falta de distanciamento temporal (e disciplinar) não nos permite ainda traçar idênticas hipóteses acerca da real relevância deste conjunto de publicações representadas em Archizines. Numa primeira abordagem, no entanto, pode-se constatar um considerável baixar de "volume sonoro" comparativamente àquele do discurso dos anos 1960/70, com influência da expressão ruidosa do movimento hippie, da pop e do punk.
A democratização dos meios tecnológicos nesta viragem de século justifica a maior facilidade do surgimento de publicações deste tipo mas, como já foi referido, não deixa de ser inesperado face à ainda maior acessibilidade, economia e rapidez que representa, por exemplo, a blogoesfera. Pode encontrar-se na actual conjuntura profissional e económica que a arquitectura atravessa, com um grande número de profissionais e pouco acesso a oportunidades de prática de projecto, a origem deste suposto fenómeno, com, por um lado, uma maior disponibilidade para o desenvolvimento da actividade editorial e de investigação académica, mas por outro, como reacção a este mesmo estado de crise. O ressurgimento de formatos impressos, num tom bem menos ruidoso que aquele retratado em Clip/Stamp/Fold, poderá ele próprio ser um reflexo deste espírito do tempo de hoje mas, tal como se levantou no decurso das mesas redondas de Archizines Live, poderá ser igualmente uma reacção à velocidade própria da comunicação da era digital.
Esta postura de abrandamento de velocidade tem tanto de posição crítica como de atitude nostálgica. O revivalismo das publicações impressas, sobretudo as de produção mais artesanal, faz-se por absoluta necessidade mas também numa postura quase fetichista, pela dimensão táctil do livro-objecto à semelhança do livro de artista.
É assinalável a inclusão em Archizines da edição actual de Quaderns, revista iniciada em 1944 que, como as mencionadas, partilha o estatuto de publicação de referência tendo, também ela, antecedido e sucedido a Clip/Stamp/Fold. Poder-se-á afirmar que Quaderns, no seu formato actual, atravessará um moment of littleness, visível numa aparente economia de meios de produção e na prática própria do fanzine de "oferecer uma revisão de materiais" com base em "fragmentos arrancados de [outros] número[s] da revista". [10]
ALTERNATIVO, ALTERNANTE
e outros temas para debater a propósito de Archizines
"The objective of this work is to become the object of a discussion." [11]
A categorização dos exemplares constantes de Archizines à luz do seu carácter mais ou menos independente ou alternativo não é uma tarefa simples. Parece, de facto, inútil sem que se responda à pergunta "Mas alternativo a quê?" – À Internet? À difusão da arquitectura em meios generalistas? Às publicações académicas?
Mais do que um discurso claramente alternativo, passível de ser lido na totalidade das publicações expostas, encontramos uma verdadeira alternância de pontos de vista, de objectivos e de linguagens que se podem identificar ao passar de uma revista para a seguinte, mas também na exploração de um só exemplar. Percorrendo os objectos expostos, descobrem-se vidas múltiplas nestes projectos editoriais: apesar da militância pelo formato físico, a sua presença na internet é quase uma regra, seja como base de divulgação e distribuição das edições impressas, seja como forma de acesso a facsimilae em versões digitais; tanto estão representadas em Archizines edições artesanais, distribuídas localmente e em pequenas quantidades, como projectos de grande tiragem e de venda internacional; tanto funcionam como plataformas de investigação académica em arquitectura, como pretendem estabelecer pontes com outras disciplinas ou com um público mais vasto.
A revista italiana San Rocco, também representada em Archizines, cujo primeiro número foi editado em 2010, torna explícito no seu texto de apresentação a possibilidade da utilidade de uma postura híbrida para a construção de um discurso crítico e, sobretudo, de um "novo tipo de arquitectura". San Rocco posiciona-se voluntariamente num cenário de contradições e de tensões: revê-se nas singularidades de Aldo Rossi e de Giorgio Grassi sem querer ser exactamente um ou o outro, defende uma arquitectura simultaneamente monumental e frágil e uma atitude que é séria e que também não é séria.
Une estes diferentes projectos editoriais o facto de terem como objectivo satisfazer a vontade individual de quem os faz; residirá aí a sua independência, ainda que possam ter algum tipo de ligações institucionais. É esse um ponto comum possível de estabelecer entre o extinto Go e P.E.A.R., ambos auto-intitulados fanzines mas distintos em termos físicos e de financiamento. Um é composto graficamente e impresso pelos próprios autores – "à socapa" no escritório de um dos membros, enquanto o outro é impresso e paginado profissionalmente, e custeado pela instituição académica a que pertencem os autores. Classificar estas publicações quanto à sua independência passa, do mesmo modo, por identificar as suas distintas relações de dependência.
"In old days books were written by men of letters and read by the public. Now books are written by the public and read by nobody." [12]
O fenómeno da auto-publicação não é novo e também hoje tem, em geral, um tempo de vida curto, seja por constrangimentos económicos, seja pela sua natureza auto-complacente e autofágica. A existência de meios como este de Archizines, impulsionados pela internet, poderá inverter ou, pelo menos, retardar esta tendência. Possibilita-se, por um lado, o contacto com uma base mais vasta de "consumidores" e, por outro, a amplificação a uma escala virtualmente global de projectos editoriais que, de outro modo, poderiam apenas ambicionar uma relevância local.
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O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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Ivo Poças Martins
(Porto, 1980) Ivo Poças Martins é co-editor do fanzine Friendly Fire (impresso em Fânzeres), membro fundador do escritório Ivo Poças Martins e Matilde Seabra, arquitectos e doutorando pela FAUP. Links: www.pocasmartins-seabra.com, www.friendlyfire.info
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NOTAS
[1] LOPES, Diogo Seixas, “Garage Media”, in NU, n.º18, NUDA/AAC, Coimbra, Março 2004.
[2] ZEIGER, Mimi, “On content, fandom and how James Dean, Jarvis Cocker and James Murphy changed Architectural publishing”, in ARCHIZINES, Bedford Press, Londres, Novembro 2011.
[3] Citação de Michael Jackson tornada “Aforismo” por Mimi Zeiger, in Maximum Maxim MMX, 2010.
[4] Elias Redstone é curador independente, escritor, editor e consultor residente em Londres e Paris. Além de fundador e curador de Archizines, é editor-chefe do London Architecture Diary e colunista online da T Magazine do New York Times.
[5] REDSTONE, Elias, “On Archizines”, in ARCHIZINES, Bedford Press, Londres, Novembro 2011.
[6] REDSTONE, idem.
[7] COLOMINA, B., BUCKLEY, C., ed., GRAU, U., ed. im., Clip/Stamp/Fold – The Radical Architecture of Little Magazines 196x to 197x, Princeton, Actar, 2010.
[8] Little Review é uma revista literária americana fundada por Margaret Anderson e publicada entre os anos 1914 e 1929
[9] BRAND, Stewart, “We are as gods” in Whole Earth Catalogue – Access to Tools, 1, 1968.
[10] Da secção “Arquivo”, no site de Quaderns – www.tinyurl.com/6xc9j7v
[11] Tino Sehgal, This objective of that object (2004).
[12] WILDE, Oscar, “A Few Maxims For The Instruction of The Over-Educated”, publicado anonimamente na edição de 17 de Novembro de 1894 de Saturday Review.