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VASCO ARAÚJO
A exposição “O Género na Arte”, visitável neste momento no Museu do Chiado, trouxe-nos novamente ao convívio uma das primeiras peças de Vasco Araújo: o quarto onde a “Diva” se nos mostra em toda a sua intimidade. Partindo deste mote, o artista conversou com a Artecapital sobre a questão da identidade e da performatividade associadas ao seu trabalho, a importância da voz, do retrato e da memória na sua produção artística, passando pelo seu processo de trabalho e terminando com os 3 projectos expositivos que vamos poder ver em Lisboa já neste início de 2018.
Por Liz Vahia
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LV: Na exposição “Género na Arte. Corpo, Sexualidade, Identidade, Resistência”, patente neste momento no Museu do Chiado, encontramos uma das tuas primeiras obras, “Diva, a portrait” (2000).
VA: Esta peça é mais sobre a relação entre o Eu e o Outro e não tanto sobre a questão do género. Ao contrário do que pareceu, eu não queria mostrar que desejava ser uma mulher, antes a peça está relacionada com o facto de eu, naquela altura, ter mais do que um dentro de mim, facto que dá ao trabalho uma característica um pouco pessoana. Eu era Este aqui, mas ao mesmo tempo também existia um Outro em mim e esse Outro permitia-me falar de muita coisa, nomeadamente da condição feminina, da condição da diva, da condição do cantor, e mostrar, por exemplo, a questão da intimidade. Acho que esta peça dá a possibilidade ao público de ser voyeur duma situação que nunca ninguém vê. A Isabel Carlos escreveu um texto, que é um dos primeiros textos que eu tive sobre o meu trabalho e que está publicado no catálogo da EDP, quando eu ganhei o prémio em 2002, que tem um título que eu acho que resume bem essa primeira fase do meu trabalho (e se calhar o percurso até hoje) que é “O forro das coisas”. Aquela peça é sobre o forro do que seria ser uma cantora de ópera. E sendo um homem a fazer de cantora de ópera levanta ainda a questão de saber até que ponto é que nós nos permitimos a nós mesmos fazer um papel que não é propriamente o nosso, mas que nos serve igualmente para falar sobre nós duma outra forma. Era mais isso que me interessava na época.
LV: A primeira vez que eu vi essa peça foi em Barcelona numa exposição que se chamava “Trans Sexual Express: a classic for the third millennium”, em 2001.
VA: Montei essa peça pela primeira vez numa exposição na Fábrica da Pólvora, quando esta abriu, num espaço que ia ser um laboratório de fotografia. As pessoas ficaram muito surpresas, porque não havia nenhum artista português a vestir-se de mulher, era uma coisa que ainda não acontecia na arte em Portugal. Aliás, eu depois mais tarde fiz outra peça em vídeo, chamada La Stupenda, que também mostrava uma cantora de ópera (que era eu outra vez) e as reacções que ouvia era “ah, é o Herman José”, porque era a referência mais próxima que as pessoas tinham. Eu não estava propriamente a afirmar a questão do género, era mais um olhar sobre a intimidade daqueles seres.
“Trans Sexual Express” foi a minha primeira exposição internacional. Eu era muito novo, deveria ter 26 ou 27 anos, e uma das curadoras veio a Portugal e seleccionou essa peça. Era uma exposição maravilhosa, pois enquanto hoje em dia há imensos movimentos que tratam sobre o género, na altura ninguém falava do assunto.
LV: Esta peça vai passando por vários contextos e adapta-se sempre.
VA: Está sempre a adaptar-se. Agora quando a remontei pensei “engraçado isto agora faz sentido outra vez”, mesmo com estes movimentos todos recentes sobre identidade e género.
LV: A ideia de performatividade também aparece muito ligada ao teu trabalho.
VA: Sim. É engraçado como todos sempre acharam que eu faço performance. Na realidade só fiz uma performance na minha vida! Parece-me é que o meu trabalho, todo ele, implica uma performatividade anterior à sua exposição, como essas fotografias da Diva em que eu tive que actuar. Por exemplo, há uma outra instalação que se chama Dilema (64 fotografias sobre a linguagem dos leques) e que é o resultado de horas em frente a uma câmara fotográfica a tirar fotografias. Tenho cerca de 700 fotografias, ainda analógicas.
LV: Esta ideia de Retrato ou Auto-Retrato é uma coisa que te interessa explorar?
VA: Gosto da ideia do retrato. Durante anos disse que o meu trabalho era sobre a identidade e a sua procura. Actualmente, acho que o meu trabalho é sobre a condição humana, no sentido de saber como nos confrontamos com o Outro e com os Outros que estão à nossa volta, para nos construirmos a nós próprios e para construir, aí sim, a nossa identidade. Aquilo que representamos e com que nos identificamos, no fundo como é que nos construímos, reflecte a nossa condição enquanto seres humanos, independentemente de cor, etnia, do que seja.
Portanto, essa questão do retrato interessa-me por causa disso. Como por exemplo me interessa também trabalhar a voz, pois a voz é a nossa verdadeira identidade, é o que nos identifica imediatamente. Podemos alterar o nosso corpo, podemos mudar a cor do cabelo, tirar o cabelo, pôr cabelo, mas a nossa voz só a alteramos se conseguirmos. Ela será sempre a nossa voz, o grão é sempre o mesmo. E nesse sentido, o retrato é uma personificação física e representativa daquilo que nós somos também. Nos meus vídeos há sempre alguém a falar, a mostrar como é que construímos a nossa identidade, como é que a mostramos, como é que fazemos as coisas que fazemos. No vídeo da instalação da La Stupenda a cantora não tem voz, o que é um contra-senso, pois sendo uma cantora estamos à espera de ouvir a sua voz. Nas nossas memórias, que é outro aspecto que eu estou sempre a trabalhar, a primeira coisa que nós perdemos quando alguém morre é a sua voz. Por vezes nunca mais nos lembramos da voz daquela pessoa. Na realidade eu acho que nós nos esquecemos de quase tudo, o que acontece é que temos mecanismos activadores da memória, que podem ser fotografias, por exemplo.
A importância do retrato, tanto na pintura como depois mais tarde na fotografia, é precisamente essa capacidade de manter a memória de alguém e ser capaz da sua representação. Adoro uma parte do Museu do Louvre onde há uma série de esculturas de cabeças romanas com legendas que dizem "inconnu". Para nós isto é bizarro, pois não temos na nossa história recente pessoas “desconhecidas”, um retrato está sempre associado a um nome.
LV: A presença do texto nas tuas obras é muito derivada da voz de alguém, ou seja, é alguém que está a falar ou é uma legenda com o que alguém estava a dizer.
VA: Interessa-me a forma como nós nos projectamos, ou como é que nós vemos o mundo, se preferires. Basicamente, a forma como nós descrevemos o mundo à nossa volta é a nossa definição.
LV: Estudaste Escultura nas Belas Artes, mas o teu trabalho apresenta uma multiplicidade de linguagens.
VA: Sim, agora até pinturas faço!
LV: Escolheste Escultura por uma questão de presença física das obras?
VA: Não. Escolhi Escultura por uma questão de destreza manual. Não se é artista pela destreza, mas podemos dizer que tenho uma destreza “especial” nas mãos para moldar. Isso não significa que faço tenções de ir esculpir estátuas e coisas desse género. Tinha que escolher uma vertente e a pintura horrorizava-me porque não sei pintar, ou seja, pinto mal no sentido clássico da expressão, sendo que as Belas-Artes na altura tinham um ensino mesmo clássico.
LV: Nesta tua peça recente,"Botânica", as imagens têm uma forte componente escultórica. São uma coisa que rasga as mesas, com uma presença física muito “concreta”.
VA: O medium tem a ver com aquilo que eu quero falar e para mim essa é a coisa mais importante. Eu tenho uma ideia e para mim é logo muito claro em que suporte ou materiais é que a vou realizar.
LV: E como é que te aparecem estas referências? São coisas que tu vais investigando regularmente?
VA: Tenho uma prática diária (que nem sempre consigo cumprir) que inclui uma ou duas horas de leitura, uma espécie de trabalho de investigação porque não estou propriamente a ler por prazer ou para descontrair. Várias pessoas acham que eu tenho um processo científico de análise para investigar assuntos, mas falando de "Botânica", por exemplo, eu fiz uma série de outras esculturas que se chamam "Debret", baseado num pintor francês que foi para a corte portuguesa no Brasil, e quando acabei essa série, já não sei porquê, pus Debret na internet para ver se encontrava coisas sobre o meu trabalho e de repente aparece uma imagem dos zoos humanos, que eu não fazia a mínima ideia que existiam e que achei estranhíssimos. Cliquei... e apareceu todo um mundo que entretanto comecei a investigar mais e mais e daí surgiu-me a "Botânica"!
Percebi que havia seres humanos que no fim do século XIX ou no princípio do século XX, eram tidos como animais e postos em jardins zoológicos, ao mesmo tempo que fazia as minhas investigações sobre a relação que temos com o que nos é diferente, neste caso uma ideia de exotismo que resulta numa relação de atracção e repulsa. A situação era semelhante à dos jardins botânicos com espécies tropicais. Num jardim isso parece não ter importância nenhuma, é só uma árvore que tem o seu ciclo, cresce e morre e pronto. Mas percebi que com os seres humanos podia ser basicamente a mesma construção: naquela época era ter na Europa algo que era raro.
Portanto, o meu processo de trabalho passa muito por leituras que muitas vezes me trazem ideias, mas também pode ser só ver uma coisa qualquer em viagem. Há qualquer coisa, quase esotérica, que me acontece quando estou em movimento. Se calhar é quando estou mais descontraído, mais disponível para que uma ideia se desenvolva ou para que chegue uma ideia.
Mas também há situações completamente “técnicas”, por exemplo trabalhar para uma exposição sobre um determinado tema. Exactamente sei o que é que quero trabalhar e como desenvolver a ideia. Não é tudo inspiração divina, vinda aos trambolhões do céu!
LV: Há próximos trabalhos que possamos ver em breve?
VA: Sim, vou ter três exposições individuais agora já no início do ano, todas em Lisboa.
Uma será na galeria Esteves de Oliveira, que se chamará "Partir Loiça", com um grupo de desenhos antigos de uma série intitulada "Family", "Armorial Family", que eu fiz em Filadélfia em 2008 que são basicamente desenhos de porcelanas partidas que eu estive a ajudar a reunir numa escavação arqueológica, com as legendas dos próprios desenhos, que são textos retirados do livro da Susan Sontag, "Olhando o Sofrimento dos Outros" (2003).
No dia 3 de Fevereiro inaugura na Fundação Carmona e Costa uma exposição, digamos que antológica, com os meus desenhos e uma peça nova. A exposição chama-se "Todas as Histórias" e é comissariada pelo Pedro Faro. A peça nova que tem o mesmo título da exposição.
E depois inauguro em Março, na galeria Francisco Fino, a exposição chamada "La Morte del desiderio", a morte do desejo, onde todas as peças são novas.