|
HUGO CANOILAS
Estudou Belas Artes na Escola Superior de Artes e Design e passou depois pelo Mestrado em Pintura no Royal College of Art em Londres em 2006. É característica da sua obra uma heterogenia de meios e práticas, onde a linguagem da pintura adquire novos contornos. Hugo Canoilas, a residir em Viena há já algum tempo, local onde diz ter construído uma “comunidade” nunca conseguida num outro local, fala-nos nesta entrevista das suas exposições mais recentes em Lisboa, como artista e curador, e da sua aproximação à obra de Ernesto de Sousa.
Por Liz Vahia
>>>
LV: Nestes últimos dois anos tiveste duas grandes exposições em duas importantes instituições artísticas lisboetas: a exposição “Debaixo do Vulcão”, no MNAC - Museu do Chiado, com obras tuas, e “Supergood – Diálogos com Ernesto de Sousa”, no MAAT, da qual eras o curador. A heterogeneidade da tua produção artística quase que sugere que o teu trabalho é sempre um acto de curadoria, uma proposta de percurso e experimentação ao espectador. O que te parece?
HC: A heterogeneidade é entendida por mim através da concetualização que José Miranda Justo tem vindo a desenvolver e que me influenciam e ajudam a organizar algumas ideias sobre o meu trabalho. A heterogeneidade é o modo, natural, de abraçar a contemporaneidade. A complexidade do presente ultrapassa as nossas capacidades para o pensar e compreender (escusando-nos das teorias da conspiração e das tendências folk ou populistas da política ou das grandes narrativas da história). Necessitamos de expandir as nossas capacidades humanas e tanto a arte como a filosofia oferecem essa possibilidade heterogénea para “surfar a onda” de um conjunto de eventos que acontecem em planos, tempos e com conjuntos de valores que muitas vezes não são comunicantes. Penso que a ideia de desastre (“dis-astro”, sem sol; uma produção sem eixo) é a forma natural de abraçar e incorporar um conjunto de valores (uma determinada sensibilidade e inteligência próprias que no meu entender devem estar para além do racional e da capacidade antropomórfica da linguagem), que nos ensinarão a lidar melhor com o presente e a agir para construir um futuro não colonizado. Acho portanto que a heterogeneidade é uma das componentes da minha atividade artística e ela engloba várias valências, necessidades.
A qualidade curatorial de que falas, tem que ver com o facto de haver uma colagem do ethos artístico ao social e ao político. E nesse sentido existem muitas camadas nos projetos que se complexificam.
LV: Como se deu a tua aproximação à obra de Ernesto de Sousa, ao ponto de o quereres trazer “artisticamente” para a atualidade, no sentido de misturares obras suas com as de artistas contemporâneos de diferentes gerações e proveniências?
HC: A aproximação foi feita de forma absolutamente egoísta. Quero dizer, escolhi as obras, textos e exposições que mais me interessam. Achei lógico que sair do cânone era a melhor forma para contribuir para o discurso em torno da obra de Ernesto de Sousa. Depois agi segundo a leitura que fiz do modus operandi do matemático Pál Erdós, no sentido de levar um problema para o artista que eu achava ser ideal ou estimulante para desenvolver uma obra sua atualizando-as, pois muita coisa se transformou. Escolhi autores e não obras, o que implicou acompanhar o artista e ajudá-lo na forma que ele mais necessitou de mim (discutir, carregar, mediar, pensar, desenhar, produzir, etc.).
A exposição foi feita com uma heterogeneidade de possibilidades - como Ernesto de Sousa entendia a ideia de Modernidade, e com um levado grau de liberdade, para que cada artista pudesse, no máximo das suas capacidades, devolver algo de forma diversa aos conteúdos que os académicos, historiadores e curadores têm oferecido à obra de E.S..
Estas duas qualidades - liberdade e heterogenia, têm uma pretensão mimética ao modus operandi de Ernesto de Sousa. Quero salientar que esta exposição foi feita para que a publicação da OEI pudesse acontecer. “OEI #80/81: THE ZERO ALTERNATIVE: Ernesto de Sousa and some other aesthetic operators in portuguese art and poetry from 1960's onwards”, foi editado por Cecilia Groenberg e Jonas (M) Magnusson e co-editado por Tobi Maier e eu. A publicação em inglês, com 640 páginas, faz uma antologia - dentro da perspectiva editorial da OEI, da arte portuguesa antes e depois da revolução de 74, tomando Ernesto de Sousa como eixo a partir do qual foram selecionadas obras e textos da altura, assim como novos textos e entrevistas. Isto é criar contexto e pensar no todo. Esta é também a qualidade mimética do projeto, que pensa no todo.
Capa da revista OEI #80/81.
LV: O Ernesto de Sousa é esta figura que representa ainda hoje a ideia de contemporâneo. O “coincidir com o teu tempo”, ou o “lidar com o presente”, como dizes na primeira questão, é uma preocupação activa no teu trabalho? Desta forma o espectador sente-se mais participante da obra, como propunha também Ernesto?
HC: Aquilo que eu queria exprimir era que ao abordarmos uma obra do Ernesto de Sousa nós vamos do futuro para o passado. No fundo “acontecemos” ambos, obra do Ernesto de Sousa e obra feita para a exposição, aqui no presente. A obra do Ernesto de Sousa pode ficar lá no passado, como zona morta, fixa, histórica e conceptualmente, ou podemos criar uma ponte ou arco no tempo - aquilo que na 30a Bienal de São Paulo foi chamado de “iminência poética”, e criar zonas de sombra na ideia, possíveis de explorar.
A chegada destas obras ao Ernesto de Sousa são de certa forma a chegada do futuro à sua obra. Isto, é claro, são tentativas. Os momentos que nos abrem uma porta para o futuro são para mim uma raridade, mas é também quando a arte contemporânea acontece. É esse momento que eu procuro e para tal eu preciso de uma inscrição no real, uma testemunha (do público não especializado), uma nova relação entre coisas, etc.
O Ernesto de Sousa citava outro autor quando dizia “Todo o espetador é um cobarde”. Hoje em dia existe uma enorme falta de coragem artística e intelectual, e total incapacidade de individuação da maioria dos agentes do meio (público incluído).
LV: Não escondes que o teu trabalho é permeável ao percurso, às obras e ações de outros, como influência ou colaboração directa. Imagino que essa relação, na prática seja muito orgânica. Quando é que uma ideia te começa a interessar em termos artísticos?
HC: Sempre afirmei que era um canibal. Sempre me afiliei às ideias de Oswald e Mário de Andrade, e de Hélio Oiticica. Existe um lado erótico e uma voragem que pretende uma transformação das tuas capacidades ou qualidades intrínsecas despertada pelo interesse que tens pelo Outro. Mas quando esse interesse é reconhecido como tal, é apenas uma evidência de um trabalho que está a acontecer por um corpo inteligente já informado ou infectado. Eu quando reconheço o interesse, já estou implicado de tal maneira que não há escolha. O pensamento é a posteriori; O acto de fazer, de olhar, de agir é intrínseco à arte e foge dos parâmetros da linguagem e do racional; isto porque têm também uma força interior e afirmativa que actua conjuntamente com essa força reactiva que é racional.
LV: Vives em Viena, Áustria, há já algum tempo. Estares deslocado do teu meio sociocultural influência de algum modo o teu processo de trabalho?
HC: Escolhi ir para Viena sobretudo por causa de amigos. Amigos com os quais construí uma comunidade que nunca consegui em qualquer outro país. Sempre me interessou estar em Viena por causa da arte ser muito diferente do que faço, mais autorreflexiva - sem uma necessidade interior que se exterioriza e se transforma em objecto. Há entre muitas coisas um desenvolvimento muito grande do dispositivo e da forma como se apresenta um objecto artístico, que é uma linguagem activa, mas subdesenvolvida em muitas outras cenas artísticas. O meu interesse na alteridade transforma esta diferença num campo fértil de trabalho.
O país vive um período de transformação política assustadora, mas Viena é uma sociedade socialista; o contrato social austríaco incute nas pessoas um pensamento do meio; que tenta comprimir todas as pessoas num meio, aceitável. Ainda assim, a minha realidade é que, fora desta comunidade artística, eu sou e serei sempre estrangeiro. Para dizer a verdade, sinto-me quase tão deslocado em Lisboa como em Viena. Sinto-me um pária. Julgo que ganhei uma dupla distância. Não tomo isto como positivo ou negativo, mas antes um facto que condiciona o meu trabalho.