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OS MUSEUS, A CRISE E COMO SAIR DELALUÍS RAPOSO2015-03-04
Realizámos há meses em S. Petersburgo, em representação do ICOM Europa, a palestra inaugural da Conferência Internacional “Museus e Política”, organizada conjuntamente pelas comissões nacionais do ICOM da Rússia, da Alemanha e dos EUA, no âmbito das comemorações do 250º aniversário do Museu do Hermitage [1], na qual procedemos a um balanço dos efeitos da crise sobre os museus neste nosso velho continente. Já antes tínhamos abordado o mesmo assunto, com a mesma representação, em sessão do Comité de Cultura, Ciência, Educação e Media da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, reunido em Paris, no âmbito da preparação de um relatório sobre “Museus e Bibliotecas na era da cultura participativa”, que terá como relatora a deputada conservadora britânica Lady Diana Eccles [2]. Finalmente, foi-nos ainda dado coordenar um dossiê especial do ICOM News, boletim quadrienal do ICOM editado em três línguas, sobre o tema “Financiamento dos museus”, onde subscrevemos o texto introdutório intitulado “Enfrentando a encruzilhada: museus, crises e finanças”[3].
a) A nível da administração central: b) A nível da administração local: c) A nível do sector privado: É preciso sublinhar que este conjunto de elementos, pensado para dar conta da soma de ocorrências verificadas em diversos países europeus (e onde o caso português aparece especialmente retratado), está longe de corresponder ao todo continental, mesmo em países que sofrem alguns efeitos da crise. Isto porque em alguns desses países, por razões diversas, os museus assumem um papel identitário central e foram até beneficiados pelas necessidades sentidas de reafirmação nacional em tempos críticos (económica ou politicamente falando, como é o caso das chamadas Republicas Bálticas) (ver gráfico). Por outro lado, não devem esquecer-se os países que vivem fora da crise, como é o caso da Alemanha, onde o orçamento público para a Cultura cresceu de forma consistente em mais de 5% ao ano durante os últimos cinco anos.
Investimento em Cultura e em Educação em relação ao PIB em 25 países europeus (1 to 25 = da melhor para a pior posição) (2011) Portugal situa-se numa das últimas posições (21) entre os vinte e cinco países observados em matéria de investimento em Cultura, relativamente ao Produto Interno Bruto. Já quanto a investimento em Educação encontra-se em 8ª posição. Quer isto dizer que o esforço nacional feito em Educalção é muito superior ao que é feito em Cultura, sendo esta última quase residual em matéria de investimento do Estado. Não existe, pois, relação directa entre riqueza criada e investimento realizado em Cultura, Nalguns países europeus a Cultura constitui um domónio de forte investimento público, muito superior à Educação e à média da riqueza gerada, è por exemplo o caso dos países bálticos, com a Estónia á cabeça (primeiro lugar em investimento em Cultura e 11º lugar em Educação). No extremo oposto encontra-se a Moldávia, que ocupa o último lugar em investimento em Cultura, mas o 2º lugar em Educação. Portugal, aproxima-se muito mais deste modelo.
Dir-se-á agora que o pior já passou e é talvez tempo de começar a “juntar os cacos”, procurando novas avenidas de futuro. Aceitemos, pois, o repto, ainda que nele possa existir muito de “wishful thinking”. - Renovação de estratégias museológicas, concentrando-se em atividades estratégicas. Mas não chegam os esforços dos museus, como não chega o espírito escutista dos seus profissionais, por mais afincado que seja. É forçoso o desenvolvimento de políticas favoráveis ao relançamento da Cultura e dos museus. Neste sentido, as políticas públicas têm de ser ainda consideradas como cruciais. Seria um erro acreditar que o papel dos normativos e das entidades de direito internacional, assim como das políticas e das administrações públicas nacionais foi superado por uma tendência para o liberalismo sentido num número crescente de países e de regiões. Se há uma esfera em que o interesse público deve ser enfatizado, ela é a de memória e de património. Isto sem negar que novas estratégias são necessárias para o financiamento dos serviços públicos em geral e dos museus em particular, sendo alguns exemplos já em prática: os impostos sobre alguns produtos relacionados à cópia privada, as percentagens em lotarias, as relações directas com as receitas do turismo. Por outro lado, é necessário recentrar estrategicamente os museus naquilo que eles têm de essencial, as colecções e as comunidades. Trata-se de uma espécie de back to basics que tem de ir a par com novas práticas de gestão. Aqui, autonomia e responsabilidade são os conceitos-chave, que fornecem o enquadramento adequado para promover procedimentos gerenciais, susceptíveis de conduzir à busca de novas fontes de financiamento por meio de parcerias, de merchandising e de exposições temporárias, incluindo as de tipo blockbuster (que são, no entanto, particularmente problemáticas). Dentro do quadro indicado, poderemos enfim reconstruir o optimismo que sempre nos animou na busca de novas plataformas de vida social. Neste quadro, poderemos talvez perspectivar um futuro em que cidadania e "mercado" possam ser compatíveis, como é o caso em um número crescente de museus nos Estados Unidos e na Europa, em que a entrada gratuita levou a um aumento significativo no número de visitantes e de visibilidade social, provocando o aumento de receitas de loja, das actividades sociais e da prestação de serviços, nomeadamente de assessoria. Teremos finalmente de estar preparados para os mais radicais desafios, como sejam os da fusão entre instituições e os da própria reinvenção de conceitos até aqui separados, como sejam os de museu, arquivo ou biblioteca. Os processos de fusão serão seguramente os mais problemáticos, porque há-de ser inevitável que em muitos casos eles não tenham por móbil senão a redução de custos, num contexto geral (económico e ideológico) de redução do Estado social. Todavia, não deve também aqui “deitar-se fora o bébé com a água do banho”. Os processos de fusão podem ser vantajosos e mesmo desejáveis. Podem originar economias de escala, podem dar lugar a uma mais racional oferta de serviços públicos, especialmente em pequenas comunidades, podem ser culturalmente enriquecedores. Mas, a fusão... fusão entre museus apenas, mantendo imagens específicas ou dando origem a novos museus ? Fusão entre museus e outras entidades culturais sem fins lucrativos (bibliotecas, arquivos), dando origem a novos quadros institucionais ? Ou… fusão entre museus e outras entidades com fins lucrativos, privadas (galerias comerciais, centros culturais, etc.), dando origem a... museus ainda, ou já não ? No fundo, quais são os limites da fusão? Podem colecções de museus, mais a mais se revestirem a condição de “tesouros nacionais”, de ícones identitários, ser colocados ao serviço de projetos (públicos ou privados) movidos por critérios comerciais? Projectos postos ao serviço de iniciativas de apropriação de mais-valias, ainda que legítimas e legais, mas obtidas a partir de memórias colectivas e colectivamente validadas? Em nosso entender, é óbvio que não. A definição de “museu” do ICOM, ainda em vigor e válida universalmente, afirmando-o como “entidade sem fins lucrativos”, deve continuar a constituir bússola fundamental do nosso posicionamento. Nada impede, pelo menos em países como Portugal onde a palavra museu não constitui “marca registada” (contrariamente a farmácia ou universidade), que quem quer que seja tome a iniciativa de estabelecer negócio tirando partido do prestígio do termo (Museu da Cerveja, em Lisboa, do Pão, em Seia, ou do Museu do Presunto, em Madrid). Mas estes não são verdadeiros museus, nem como tal são reconhecidos tanto nacional como internacionalmente. Os processos de fusão deverão, pois, ter limites bem definidos, sendo os mais básicos os da manutenção das finalidades principais dos museus enquanto instituições sem fins lucrativos, visando o serviço do público (mesmo quando privados). Mas dito isto, não se diz quase nada.progredido não se antecipa quase nada. Porque não imaginar um dia em que em determinada aldeia do nosso interior despovoado se possa passar o que já acontece em algumas localidades da Europa central onde o hábito de frequentar museus é maior e a sua necessidade se faz mais notar? Ou seja e a saber, que diversos serviços públicos até há pouco separados se tenham juntado e, num mesmo espaço coexistam “museu”, “biblioteca”, “centro comunitário”… ou até gabinete de médico itinerante? As ligações entre museus, bibliotecas e arquivos estarão na primeira linha para esta eventual fusão criativa e enriquecedora. Ou seja, o futuro que antevemos está ainda quase todo por desenhar, de facto.
Notas [1] Museums and politics. Cf. http://museumspoliticsandpower.org/; e mais especificamente http://www.museumandpolitics.ru/en/. V. também o resumo da Conferência e da nossa intervenção nela que dizemos no Boletim do ICOM Portugal, série III, nº 2, Janeiro de 2015. Cf. |