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Vista da exposição.


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ARQUIVO:


RENATO FERRÃO

CASCATAS E DESABAMENTOS




SISMÓGRAFO
Rua de Alegria 416
4000-035 Porto

17 ABR - 16 MAI 2015

ÁGUA E LUZ EM TODOS OS ANDARES

A palavra “diorama” é uma manifestação conjunta de duas expressões gregas – diá (“através de”) e hórama (vista) –, formando-se na possível tradução de “ver através de”. A exposição de Renato Ferrão no Sismógrafo (Porto), "Cascatas e Desabamentos", é composta por onze dioramas, inscrevendo-se precisamente na enunciação originária do seu suporte: ao meditar sobre as possíveis representações contemporâneas do desejo na arte, convoca simultaneamente uma auto-auscultação sobre o “ver através de” inerente à relação entre a prática artística e a sua recepção.

Os dioramas de Renato Ferrão são compostos, maioritariamente, por imagens de cascatas, tratando-se de apropriações paisagísticas – recolhidas, reenquadradas e adensadas pelo maneio experimentalista do artista –, sendo que a construção e a manipulação da mecânica interna dos objectos é um atributo diligente da sua acção artística. A exposição é uma expressão do encontro inadvertido de Renato Ferrão com um velho diorama de uma cascata, que decorava um restaurante chinês no Porto, e, com um recorte de uma pin-up macaense, colado na porta de um móvel que se encontra nos depósitos do Museu da Electricidade, em Lisboa. Assim, "Cascatas e Desabamentos" assoma pela colisão entre a imagem da modelo “recortada” e da queda d’água, representações de temperamento e pulsão exótica, que foram desterritorializadas e encaixilhadas numa linha de horizonte incaracterística.

O diorama foi criado por Louis Daguerre, em 1822, tendo um uso, a partir do inicio do século XX, particularmente associado aos Museus de História Natural. Os dioramas representam pequenas totalidades, modelos com efeitos específicos que aqui advêm da mobilidade e luz artificial. Em "Cascatas e Desabamentos", a fotografia dos dioramas torna-se cinética, à imagem estanque é suscitado o movimento, deslocando-se assim do seu acto edificante e intrínseco, daquilo que a faz ser. Portanto, a exposição pode ser apreendida num perímetro cinematográfico, não apenas pelo movimento induzido numa imagem fixa, e por uma visão sobre ela convergida na luz, mas, igualmente, pela concepção de um conjunto expositivo caracterizado por uma sequência de quadrados lumínicos, com relações espaciais distintas entre si.

A inscrição de movimentação artificial nas imagens – a várias velocidades e com texturas distintas – encerra-se na própria têmpera das cascatas, anuindo com o seu movimento: uma energia em potência, uma moção inesgotável, suspensa e trans-temporal. Neste sentido, ao questionar aquilo que a fotografia não tem (o movimento), a exposição cria uma fissura, relacionando-se assim com a cascata e a sua marcha indomada, de correntes de força e tensão. As cascatas são símbolos da falha, pois resultam da ruptura do declive dos cursos de água. Desta forma, a cascata contrapõe-se ao rochedo, pois o seu movimento descendente reveza com a moção ascendente da montanha, e o seu dinamismo, com a inércia do penedo. Mas, embora os motores de “Cascatas e Desabamentos” ajudem a criar a ilusão de um presente perpétuo, este contrapõe-se à realidade das cascatas, pois há uma falsa imutabilidade associada a si: "aqueles que descem os mesmos rios, banham-se na corrente de uma água sempre nova" (Heráclito).

O trabalho de Renato Ferrão está habitualmente arrolado a uma prática sobre o espaço, o peso, o volume e a tensão, onde o artista decompõe objectos quotidianos através de uma indagação sobre as leis físicas e a ameaça de risco físico. Nesta exposição, estas questões ecoam na natureza tensa das cascatas, mas sobretudo através de fracturas subtis no conjunto expositivo. Desta forma, a tensão forma-se a partir de três imagens que se contrapõem à regularidade das restantes: um díptico que expõe o fumo de um vulcão e a única imagem fixa na exposição, a de uma pequena cascata congelada. Se o díptico remete para um espaço de fissura e possível catástrofe – um elemento que abre uma brecha na terra para expelir, usando movimentos de ascensão, contrários ao do rio –, já a imagem da água congelada é a mais paradigmática figuração de um movimento que é fixado, ressoando estereoscopicamente sobre os outros dioramas. A exposição alude assim a questões comuns no trabalho do artista, como o congelamento do movimento, o presente perpétuo e a suspensão. Há, ainda, uma ruptura que se dá ao nível sonoro, na medida em que apenas ouvimos o som rouco de alguns mecanismos, mas de forma geral, o silêncio e a disfonia acompanham a experiência da exposição, contrapondo-se ao som tonitruante e explosivo das quedas d’água.

A artificialidade dos dioramas é intensificada através da luz e da simulação de movimento, mas sobretudo por todo um discurso dicotómico que se vai construindo cercado entre o material e o natural, o real e o artificial. A alusão à pin-up macaense versa a apreciação do artista de que “a cascata é a pin-up da natureza”: uma alusão ao erotismo e à atracção da cascata como apoteose esdrúxula da natureza, mas, igualmente, por toda uma “artificialidade” inerente às suas representações. Se a pin-up é a imagem da mulher construída e cosmetizada pelo desejo, a representação da cascata é, na opinião do artista, um elemento erótico que foi sendo apanágio de elocuções turísticas e decorativas. Desta forma, há um diorama que se diferencia dos restantes, ao presentificar a imagem de uma cascata nos Illinois, região que se dedicou a turistificar as suas cascatas, distinguindo-se das outras imagens pela cor avermelhada da água: a cor do ferro. Neste sentido, é possível aludir a Oswald Spengler, quando este afirmou que: “O homem moderno não pode ver o curso de um rio sem o transformar logo, mentalmente, em produtor de energia eléctrica”. Por outro lado, a exposição cita o artificial através da convocação da acção humana, tal como a operação que o artista realiza na acoplação de vários elementos a um motor.

O texto da folha de sala do Sismógrafo referencia a influência fundamental para esta exposição de “Étant Donnés: 1º La Chute D'Eau, 2º le Gaz D'Éclairage“ (1946-1966), a obra em diorama de Marcel Duchamp. Cumpre referir a alusão que o texto faz à visita de Duchamp, em 1946, a Chexbres (Suíça), onde o artista terá fotografado uma cascata e usado essa mesma imagem nesta obra póstuma. No trajecto de Duchamp, “Étant Donnés“ substitui o “molde negativo pela aparência moldada”[1], o maquinismo oculta-se, mas a cascata e a sua paisagem materializam-se. O único movimento na instalação é o da cascata activada por um motor invisível, unindo assim o artifício ao realismo. Uma luz trémula cria a ilusão de água reflectida pelo sol, e o seu trepidar adiciona duração e circulação ao diorama. A cascata e a lâmpada de gás são os elementos "dados" no título: reflexos simbólicos da água e do fogo, signos persistentes no universo duchampiano – “água e gás em todos os andares” (“eau et gaz à tous les étages”) –, que são citados como fontes energéticas, antagónicas e opostas, pois a água apaga a chama. Por outro lado, o gás aparece representado na lamparina segurada pela mulher no sentido ascendente, e a água da cascata no sentido descendente. Num outro sentido, segundo Duchamp, o erotismo na sua obra era importantíssimo – “visível ou visual, ou, em todo o caso, subjacente. (...) é um meio de tentar pôr a descoberto coisas que estão constantemente escondidas.”[2] O erotismo em Duchamp é insistente, cerebral, obsessivo, relacionando-se com o desejo, a academia clássica (o nu feminino e a paisagem) e a presença de vida energética, não humana, mas da ordem do natural. “Étant Donnés“ vê-se através da oclusão: a porta não abre, há apenas uma frincha para o olhar. O espectador tem uma visão oblíqua, tornando-se fundamental para que a obra se consuma, pois esta só existe se houver o voyeurista, que fica numa situação de infracção moral, embora como refere Bataille, “a transgressão não é a negação do interdito, mas o ultrapassa e o completa...o interdito existe para ser violado.” [3]

As relações possíveis entre a última obra de Duchamp e a exposição de Renato Ferrão, formam-se quando este sugere que a representação da cascata tem uma perfilhação erótica. Segundo o texto de apresentação da exposição, a cascata congelada remete ao “desejo adiado” e o vulcão ao “desejo consumado”. A cascata é um lugar de assombro, embrenhado num espaço selvagem, tratando-se, tal como na obra de Duchamp, de um deslumbramento através da fissura, havendo também um enquadramento da imagem, uma moldura para o olhar ditada pelo modelo do diorama. Desta forma, o diorama apropriado do restaurante chinês, que foi referido no início do texto, encontra-se sintomaticamente exposto num espaço à parte, na casa-de-banho da galeria, apelando à experiência “solitária” duchampiana. A exposição de Renato Ferrão é acompanhada por uma publicação, uma edição limitada a 100 exemplares, que resulta de uma recolha etnográfica de tradições, ritos e costumes associados às cascatas, sendo que a única história verdadeira do livro pertence à imagem da cascata do Illinois, sendo paradigmática de uma “apropriação de geografias exóticas, cada vez mais povoadas pelo turismo e pelas obras públicas.” “Cascatas e Desabamentos” emerge através de uma produção minuciosa e experimentalista do artista, tendo como fito as relações dicotómicas entre a realidade e o artificial, o natural e o material, a queda e a ascensão, o paraíso e a catástrofe, e, sobretudo as contingências das representações.

 

 

 

Sara Castelo Branco

 


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NOTAS

 

[1] RODRIGUES, António, Duchamp ou o Mundo no Infinito in Engenheiro do Tempo Perdido (Entrevistas com Pierre Cabanne). Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 210.

[2] Idem, p. 135.

[3] BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo, L&PM, 1987, p. 59.

 


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[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]



Sara Castelo Branco