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EXPOSIÇÕES ATUAIS



Performance, © Eduardo Mangueira


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ARQUIVO:


DUARTE ÁGUAS

CONTOS ERÓTICOS




ÓOCIOO
Rua do Heroísmo, 139B, Bonfim


23 FEV - 13 ABR 2023

Sobretudo não morrer

 

 

A distância  e, ao mesmo tempo, a proximidade — que define a contemporaneidade, tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente.

 

Giorgio Agamben
 

 

A convite do Óocioo, espaço independente de arte no Porto, de 23 de Fevereiro a 13 de Abril, Duarte Águas apresenta-nos os seus “Contos eróticos” numa exposição individual e numa aproximação destemida. Neste espaço e neste tempo — nesta cidade —  o Duarte leva-nos a caminhar pelo seu mundo criativo, que não é imaginário, numa exposição de um erotismo em potência, onde o revelado chama o corpo e os sentidos a envolverem-se. Na sua novidade, este lugar aqui criado tem um ser próprio, um dinamismo próprio. 
"Contos Eróticos" inaugurou com uma performance do artista e da sua amante, como o próprio a chama — Ana Malhou. Não contratou ninguém, não ensaiou com ninguém e não elaborou nada a não ser aquilo que poderia muito bem ter acontecido na sua vida real —que já acontece. O artista não procura criar coisas novas nem objectos para expor, mas sim levar aquilo que já vive por si, que já é seu, que experiencia, que ama, que existe antes de tudo — no seu tempo, neste tempo (e) para este tempo. Não fogem de si — são a esperança de podermos ser poéticos mesmo na própria vida. 
A performance foi um gesto de amor. Deitado numa banca de mercado, que construiu à mão, com madeira, cimento e azulejo, o artista apresentava-se despido, e apenas de óculos de sol (já lá vamos) enquanto Ana o lavava. Numa engenharia desembaraçada e elaborada, Duarte construiu um sistema que levava a àgua até si, quente, e,  através de um tubo, o vapor esvoaçava até à entrada, onde as pessoas, chegadas à exposição, podiam sentir o salpicar de um erotismo em expansão. Esta imagem fez-me relembrar um filme de que gosto muito, “De amore se vive”, em que uma criança a caminho da adolescência nos conta que a sua imagem de amor é, ao fim do dia, poder tomar banho com a sua amada, mas, atenção: é ele que a lava a ela e ela que o lava a ele. 
Os óculos de sol vêm de uma ideia do artista que se liga com um dos seus contos eróticos expostos. Numa moldura antiga e em papel amarelado, Duarte inventa um povo que erotiza os olhos, em vez dos órgãos genitais. Caminham e vivem despidos de roupas mas vendados nos olhos — segredo que só desvendam na entrega profunda e amorosa com alguém. Como será ver os olhos de alguém pela primeira vez? 
Então, o Duarte despe-se, mas cobre os seus olhos - que isso não é para todos. E Ana, demorada e cuidadosamente, lava-o. 
Esta exposição propõe-nos a re-olhar o romance da vida, a sepultar a rigidez e a precisão, a tornar-nos mais elásticos e a abrirmos as asas como o papagaio que, entusiasmado, sente o verdadeiro valor daquele banho.
É uma exposição para o corpo e para a imaginação. Podemos, sim, viver fantasias, tapar os olhos, ousar os sentidos. É isso a sensualidade. São contos que nos lembram que não podemos perder a capacidade de contar histórias — que isso é vital e sensual  — são contos em forma de imagem, de flores, de nuvens. Nestas histórias, em potência para serem filmes, entro na imaginação e intimidade do Duarte. Temos a história de uma entrevista de trabalho que seria adornada com flores e um céu azul, o desejo de petrificar sémen e enviar pela janela à amante que dorme na espera, o erotismo de um olhar num banco público, de madrugada. São histórias que fazem parte da sua vida e que são reais. Note-se que, não tendo o deadline para a exposição, na sua vivacidade própria e no seu timming real, tendo deixado tempo para o Duarte lixar o banco público como queria, para tornar a sua superfície suave ao sentar, o artista fê-lo a seguir — porque as coisas não acabam. Na carência que sente nos objectos do mundo, o Duarte cuida. Foi lixar o banco, no fundo, para pedir desculpa, pelas suas próprias palavras. O gesto real está aí. Está em não esquecer. Fê-lo porque se posiciona contra essa distância entre as coisas e as pessoas….; entre o que são as coisas e o que são mesmo as coisas.
Podemos seguir esta linha de histórias e saber que o erótico está em todo o lado. Está, sobretudo, na anima de criar, de não sucumbir, de, “sobretudo, não morrer”.[1] É isto o vivo, o libidinoso  —  a capacidade de ver, de olhar, de contar histórias na cama uns para os outros, de nos adormecermos, de nos acordarmos, de nos lavarmos, de nos reinventarmos  — de saber que o espelho onde fica gravada uma imagem tem de ser nosso… (espero que ele se lembre.) Essa imagem que já foi embora mas não está perdida. 

O Duarte não quer títulos, nem folhas, nem textos, mas eu quero escrever sobre ele e os seus contos  —  porque quero participar da sua revolução que nos mostra que o poético está em todo o lado, que as coisas circulam se houver energia e fluxo, que o vapor de um banho inflama todos os corpos. São fábulas que não mentem, mas antes suscitam as nossas próprias fábulas, os nossos próprios contos  —  porque tirar prazer das coisas e fazê-las, mesmo com o mínimo de condições possível, só com as nossas mãos, o nosso amor e atenção, é ser o mais actual e contemporâneo possivel.

 

“Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora” [2] 

 

Não podemos responder, não podemos compreender, mas podemos ser. 

“O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra (...) Numa anotação dos seus cursos no College de France, Roland Barthes resume-a deste modo: O contemporâneo é o intempestivo." [3]

 

O Duarte é a fractura, o intempestivo, o contemporâneo. O poeta à solta, para roubar uma expressão de Agostinho da Silva, citada pela minha colega e amiga Madalena Folgado. 

 

"Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros. E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. (...) E essa urgência é a intempestividade, anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um "muito cedo" que é, também, um "muito tarde': de um "já" que é, também, um "ainda não': E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós." [4]

 

Nessa viagem, resta-nos contar as nossas histórias, iluminá-las ou reconhecê-las na sombra; e nunca esperar que passe — ou esperar que nunca passe. Tornarmo-nos conscientes e, por isso, mais atentos para habitarmos a vida, como ela é. Os seus contos são a celebração pura do acto criativo, são a aceitação da festa da vida, com todas as suas cores. É a transformação criativa da precariedade em romance, do parado em dança, da escuridão em clareza (awareness), nem que, para isso, seja preciso um reflector.  É um convite a inventarmos o que não temos. É uma questão sobre o mundo de hoje, mais do que nunca — e sobre saber olhar esse tempo. É o contemporâneo. A importância do quente, do olhar, do acordar. Saber que umas flores falsas, com as cores que sonhámos, podem mudar o rumo de uma entrevista, saber que vale a pena acordarmos alguém de noite para fazermos amor — que isso é, mais uma vez, e, sobretudo, não morrer. Que, de olhos fechados, por vezes, vemos mais e melhor. Os  amantes  e  os  loucos  são  de cérebro quente, vive neles uma fantasia criadora, e conseguem ver aquilo que o frio entendimento jamais poderá compreender. Esta exposição é carnal e divertida sem ser infantil —cumpre-se na sua existência. No motor da sua força interior, faz-nos querer cumprir-nos também, em cada gesto, no que de mais poético, e, portanto, vital, existe em nós. É um amor que não pode ser comandado porque é ele quem comanda — o que, já sabemos, não vem sem luto — sabendo que é nesse lugar que ousamos contar as nossas histórias.

Vejo um desejo em movimento, vivo — vejo um não podermos deixar de querer. Vejo esse desejo que alavanca, que  possibilita — e ao possibilitar inaugura e resgata a capacidade de amar e criar.   Abre-se um caminho para que  Eros,  enquanto força de vida, de alguma forma, coloque (ainda) mais vida na vida.

Esse lugar, onde se fazem as coisas só (que é tudo!) pelo prazer de as fazer. Talvez seja necessário relembrar e tentar resgatar essa vitalidade tão potencializadora e enérgica, esse erotismo. Chamo a estes contos do Duarte o mesmo que Harald Szeemann sonhava sobre o futuro das exposições — os poems in space. Esta exposição encaminha a sua vida e conduz o seu afeto e prazer pelas veredas e paredes em que pulsa o coração, nos contos que respiram e nos sorriem. Por intermédio do corpo, portanto, podemos rever-nos a nós e ao mundo — nos nossos mistérios, nos lugares desconhecidos da imaginação e da paixão, e esquecer, nem que seja por breves momentos, os aprisionamentos, conquistando as libertações possíveis.

A imaginação do Duarte funciona como um receptáculo no qual as figuras são depositadas e se tornam imagens — mais — se tornam histórias. O artista larga o passivo, recusa o estático — para assumir a autoria do gesto erótico que rompe a barreira. A parceria dos corpos aqui presentes suspende o trânsito habitual dos enlaces sensuais — expande-o —  escolha do próprio sujeito, impulsionado pelo desejo, pela vibração do seu afeto, implicando a iminência do gesto transgressivo. Fazem-nos ver a beleza de um gesto, a cor das flores, os cheiros, a água, as nuvens — e saber que é nisso que repousa a vida, na sua tristeza e na sua alegria. No seu todo.

 

“E tudo isto poderá parecer uma colecção de grandes ideias, vagamente poéticas, destinadas a tranquilizar a consciência ou animar os espíritos, mas quem escolhe ficar na vida saber que isto é algo de tão concreto como o som das cigarras, num dia de Verão. É, sobretudo, não morrer.” (...) Recusar a morte e ir ter com o mundo, ser nómada, descobrir o que se esconde para lá da montanha, viajar até ao outro lado da noite. Talvez até transformar uma ínfima parte desse mundo, ou nunca chegar a consegui-lo.” [5]

 

Nessa espera sem compromisso, nessa sombra consciente da luz, nessa recusa da morte para sermos vida.

Esta exposição são as cigarras de verão que, afinal, podemos ouvir já na Primavera.
É “sentir que os cotovelos da morte roçam os nossos cotovelos, e ainda assim ficar na vida porque só quem está na vida pode imaginar as deambulações da morte e traduzi-las numa história que sirva para a vida” [6]. Saber que não podemos só arder em fogo raso — que somos a soma, a união — que somos juntos. E, por isso, mais. É saber que os nossos contos eróticos podem ser sopros rejubilantes de vida, e que, por eles, pelas cigarras, vale a pena estar na vida. E que isso, que isto, que a exposição do Duarte é não morrer. É, sobretudo, não morrer. 

 

 

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Duarte Águas 

Artista plástico e músico, licenciado em Pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, 2015. Reside neste momento no Porto.

 

Filipa Almeida

Nasceu em Lisboa, em 1996, cidade onde vive e trabalha. Licenciou-se em Ciências da Cultura e da Comunicação, na Faculdade de Letras. Realizou uma Pós- Gradução em Curadoria de Arte na Nova FCSH, um curso de Estética na SNBA, e está neste momento a realizar o Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas na FBAUL. 

Ibid, p.58

Notas

[1] Texto de Tiago Rodrigues, para a peça "Sopro", no Teatro Dona Maria II. Link disponível aqui

[2] Giorgio Agamben, O que é o Contemporâneo? e outros ensaios, 2009, p.72 Link disponível aqui 

[3] Ibid, p.58

[4] Ibid, p.66

[5] Texto de Tiago Rodrigues, para a peça "Sopro", no Teatro Dona Maria II. Link disponível aqui

[6] Ibid

 

 

 

 

 

 



FILIPA ALMEIDA