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ANDRÉ ROMÃOCALOR![]() MUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 17 NOV - 02 JUN 2024 ![]() ![]()
Todo o poema é um brasão. Jean Cocteau, 1932
Sentado numa cadeira, segurava contra o peito uma chave. Presumo a mão no balanço do diafragma e sentindo o pulsar do coração, em cada trajeto das suas linhas. Como uma orquestração suprema entre a vida e o enigma. No colo pousava uma taça de metal. E adormecia. E nesse instante, com o corpo cedido a Morfeu, o aperto da chave afrouxava fazendo-a cair sobre a taça, acordando-o. Por instantes, antes de recuperar totalmente a consciência, acedia ao espaço liminar entre o sono e a vigília onde brotavam alucinações hipnagógicas, que podiam implicar a associação livre de ideias, a estimulação sensorial imaginada e a percepção distorcida do espaço, do tempo e do mundo físico. Foi esta a forma inusitada, de aceder ao subconsciente, que Salvador Dalí utilizou e serviu de substrato às suas pinturas oníricas. E é nesse espaço liminar, onde a realidade e o onírico se articulam numa espécie de narrativa psiconáutica, que a exposição “Calor” do artista André Romão, com curadoria de Inês Grosso, se estrutura ao longo de quatro salas contíguas, no Museu de Serralves. As obras, na liberdade do anacronismo temporal, são configuradas pela metamorfose e hibridização, através de um continuum entre o natural e o artificial, o orgânico e o anorgânico, e ainda o humano, o animal, e o maquínico. E vivem entre o espanto, a espetacularidade e o horror. Esta sensação de dépaysement, que nos apunhala os sentidos, é quebrada por elementos de lucidez relativos à sensibilização, ao apelo, e ao incentivo à participação social, da doação de sangue. Permitindo, tal paradoxo, refletir sobre a vida ser, também, a conjugação de órgãos e fluídos dos ventres rasgados da realidade e do sonho. Envoltas em diferentes atmosferas, criadas através dos jogos de luz e sombra, as obras encontram-se dispersas pelas paredes, pousadas no chão, em plintos ou suspensas, e instigam um posicionamento corporal e uma exploração visual dinâmicos. Composições cenográficas e lumínicas que, em tom confessional exponho, fizeram-me recordar um pequeno poema do artista Horácio Frutuoso e encontrar-lhe um habitáculo: “Perco o percurso do corpo/ E deixo-me dobrar/ Sobre a escuridão das luzes/ No obscuro desejo/ De tudo ficar abstrato.” [1] Na primeira sala, onde a penumbra é rasgada pela luz que alumia dois posters, de apelo à doação de sangue, e uma mão humana, em bronze, onde prolifera um aglomerado de cogumelos (Tronco, 2023), torna-se explícito os dois eixos pelos quais a exposição se estrutura: o escapismo do sonho e o confronto com a realidade. Pautando-se o ponto de confluência nessa “energia calorífica [que] catalisa transformações e mudanças - [e que] ferve, arde, sublima.” [2] É mirífico pensar que tudo começa no interior de uma estrela - o sol - onde os fotões, no caos atómico de energia (fusão nuclear), sobem lentamente até à superfície, onde são libertados. Percorrendo milhões de quilómetros, até às células. Pensemos nos pigmentos de clorofila que absorvem os raios de luz, através da fotossíntese. A energia luminosa é transformada em energia química. Pelo que a luz solar influencia a obtenção de nutrientes, vitaminas e calor. É o circuito vital do sangue que percorre as redes de artérias, veias e capilares, que permite a distribuição de nutrientes e a regulação e manutenção da temperatura corporal, nos animais vertebrados. Doar sangue é, assim, um ato nobre que permite a manutenção da vida. O apelo para tal, permanece igualmente explícito, na segunda sala, através de um poster da série “Adj vért/Dê Sangue” (1963) da Cruz Vermelha húngara, da autoria de György Konecsni. Por debaixo do poster, pousada no chão, uma caixa com bolbos de flores (Inverno sem fim, 2023), plasma a poética da germinação e a potencialidade do encontro com a terra, rasgando-a para eclodir. Traçando, assim, inícios numa sala pejada de luz, que capitaliza a clarividência e a duplicidade que as sombras trazem aos objetos, corporizando-os com um prolongamento impalpável. E onde a perna de gesso (Sign, 2023), pousada num pedestal, surge cravada de lâmpadas acesas, hiperbolizando o ver. Sendo que, por vezes, na pluralidade e intensidade das luzes, fica-se mais perto da invisualidade. Os sinos pendurados nos olhos de uma cabeça humana em bronze (Saturno, 2023), que se encontra suspensa, conferem uma espécie de sonoridade à visualidade. Aspecto surrealizante, que a ausência de corpo intensifica, e que se entrelaça com a misticidade que os sinos podem conter, representando ligações entre a terra, o subterrâneo e o divino.
Vista da exposição André Romão: Calor, 2023, Museu de Serralves. © @NVStudio
No alinhamento com o misticismo, surge “corpo-constelação” (2023), uma coruja em bronze pontilhada por pequenas estrelas douradas, jacente dentro de uma caixa. Esta ave de rapina noturna está associada a diversas simbologias que variam de cultura para cultura. Podendo representar a sabedoria, a lua, o poder de clarividência, o bom e o mau augúrio e a morte. Ainda nesta sala, o híbrido surge a partir de um tronco de glicínia torcido onde brotam mãos de bronze (Seiva, 2023), e a subversão é talhada pela escultura de acrílico transparente (Chemical Sweat, 2017-2023) revestida, no seu exterior, com vaselina, para compor a ideia da vitalidade de um corpo que transpira. Em A pele frágil do mundo (2019) Jean-Luc Nancy refere que a pele é onde começa e termina a auto-existência e a presença para o mundo, contendo em si o sentir, o agir e o significar. Acrescentando que, todos os corpos exteriores ou estranhos, mesmo os inanimados, participam do que ele designa como “transpiração das peles”. Estas que se apresentam permeáveis umas às outras, compartilham segredos, e são concomitantemente orgânicas e metafísicas. [3] A fórmula repete-se na sala subsequente. Como psiconautas, vagueamos por um território que já nos apraz familiar, uma vez que os elementos presentes validam uma consistência de construção psíquica, da realidade e do onírico, que o artista traçou. E como tal não cessam as mensagens de incentivo e apelo à doação de sangue. E nesse tecer de uma persistência da memória, subsiste a figura da coruja jacente, onde uma meia lua prateada gira no centro do seu corpo, através de um mecanismo de relógio (céu noturno, 2023). E um tronco de nespereira termina numa cabeça de pássaro. “Vento” (2023), a designação desta obra, não é senão uma ironia sagaz da impossibilidade de voo. Completa este espaço, uma cadeira de madeira que lembra a forma de um louva-deus, e que tem em si agregada uma cabeça antropomórfica onde brotam corais marinhos (Sede, 2023). Num artigo da revista Documents, intitulado Metamorphose, o escritor surrealista Michel Leiris (1929, citado em Moraes, 1996) referiu que a transformação é uma projeção para o “fora de si” e uma libertação da presunção humana: “Eu deploro os homens que não sonharam, pelo menos uma vez na vida, em se transformar em qualquer um dos objetos que o rodeiam: mesa, cadeira, animal, tronco de árvore, folha de papel...”. [4]
Vista da exposição André Romão: Calor, 2023, Museu de Serralves. © @NVStudio
Em súmula, a arte de André Romão espelha o princípio dos objetos surrealistas que obedeciam a um intercâmbio entre os diferentes reinos da natureza, ou entre o natural e o artificial. E que recusavam as classificações do pensamento dualista, reivindicando que a contradição no objeto não se constitui a partir de uma consciência exterior a si, mas sim através do seu próprio interior. [5] O artista ao enveredar pelo híbrido, evoca essa dilaceração das dicotomias, instigando a sua porosidade e vincando a potencialidade da intra-atividade agencial entre corpos. E desfiando o tecido da normatividade, a sua rigidez e tacanhez, abre espaço para a consciência da nossa relação com “os outros” e, consequentemente, a integração e respeito pelas suas diferenças e diversidades. Como refere a curadora Inês Grosso “as esculturas de Romão assumem uma forma de resistência às categorias rígidas e binárias de identidade e comportamento.” [6] Pelo que a escolha dos cartazes de incentivo e apelo à doação de sangue, não se mostrou aleatória. Alguns revelam mensagens de teor patriótico e de dever cívico; a imagem da família tradicional, heteronormativa e biparental; e premissas de “qualidade do sangue”. Pretendeu, assim, o artista vincar uma crítica social às políticas de triagem e restrições à doação de sangue, que estão relacionadas com estereótipos e preconceitos relativos, por exemplo, à orientação sexual e à identidade de género. Desta forma, e num mundo onde o sujeito dominante se caracteriza como o homem branco, heterossexual, proprietário urbanizado e que fala uma língua padrão, os “outros”, refere a filósofa Rosi Braidotti, são as mulheres e LGBT’s; os nativos, pós-coloniais e não-europeus; os animais, os insetos, as plantas e o planeta; e, ainda, os outros tecnológicos: máquinas e suas redes interativas. Sendo que as vidas e os corpos desses “outros” têm sido historicamente tidos como descartáveis e explorados, física e socialmente, pelo sujeito dominante. Visível pela opressão, domínio colonial, esgotamento dos recursos terrestres, extinção de espécies. Para Braidotti devemos tornar-nos sujeitos nómadas e, como tal, abandonar a forma dialética de nos relacionarmos com os “outros”, atendendo às suas diferenças e singularidades complexas, e deixando de parte o discurso do sujeito dominante. Deve-se desconstruir fronteiras e perceber a impossibilidade de separar o devir-mulher/animal/inseto/terra dos outros devires múltiplos que formam linhas ziguezagueantes a partir de muitos limiares do ‘devir-nómada’, seguindo rumo ao ´devir- imperceptível’. [7] Como referiu Michel Foucault, em As palavras e as coisas, o ser humano é um ponto saturado de analogias que “está em proporção com o céu, assim como com os animais e as plantas, assim como com a terra, os metais, as estalactites ou as tempestades.” [8]
Vista da exposição André Romão: Calor, 2023, Museu de Serralves. © @NVStudio
À entrada da última sala da exposição, a luz incide estrategicamente: num poster da Cruz Vermelha Americana onde é solicitado, aos potenciais dadores, respostas completas e honestas, de forma a assegurar uma recolha de sangue de qualidade; e numa escultura de bronze, que se encontra no chão, de uma raposa a dormir aninhada e aconchegada por cobertores de lã (Calor, 2023). A exposição parece cessar em torno da estrutura conceptual central, que a alicerçou: a energia calorífica. Mas há um toque de serendipidade na propagação da luz que, indiretamente, invade a escuridão do fundo da sala. Revelando uma escultura em madeira (Pulso, 2023), assente num pedestal, onde uma das duas figuras que a compõe, se encontra sem cabeça. Num arrebatamento poético, não entramos “docilmente nesta noite serena” [9], porque “os loucos que colheram e cantaram o voo do sol, aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho.” [10] Somos, assim, impelidos a invadir essa escuridão que, não sendo total, é suficiente para tolher os detalhes da obra e do seu entorno. A figura acéfala, contempla a mensagem final. George Bataille, no primeiro número da revista Acéphale (1936-1939), referiu que o acéfalo reúne numa mesma erupção, a vida e a morte. A decapitação é a ausência da autoridade consciente. Uma perda que sangra, e que espelha, pela analogia da forma circular, a ausência do sol e, por conseguinte, da energia calorífica. Contudo, para os surrealistas, o corpo acéfalo não deixa de ter vitalidade. E a ferida da decapitação é um vazio que admite novas possibilidades da existência humana. Cabe-nos, assim, fulgir o mundo com a energia calorífica que compõe o sangue de um poeta, sabendo pulular entre a realidade e o sonho na procura de solidamente estruturar o que deveria ser um princípio básico universal: o respeito pelos demais. E, perceber, que mesmo na noite escura podemos fermentar começos.
Sandra Silva
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Notas [1] Este poema de Horácio Frutuoso acompanhou uma das telas que fez parte da exposição “Clube de Poesia”, que esteve patente no Museu de Serralves, em 2019, e foi comissariada por Ricardo Nicolau. ![]()
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