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VASCO ARAÚJORITORNAREGALERIA FRANCISCO FINO Rua Capitão Leitão, 76 Marvila, Lisboa 02 OUT - 16 NOV 2024 VAAAAAAAASTO
“VAAAAAAAASTO” — Sentia. Pensava. Era Sábado de manhã, estava no Interior do país. Eis que, no horizonte ilimitado do meu email — ilimitado se pago —, surgiu “VAAAAAAAASCO”. Em rigor, apenas,“Re: Convite exposição Vasco Araújo”. Alguma coisa já se movimentava mais rápido do que eu, ainda vagarosamente atenta aos movimentos da minha própria atenção: Primeiro a uma vasta sonoridade de céu azul…Depois a própria Diva e a sua justa demanda por atenção; afinal, expõe-se com Vasco, na Galeria Francisco Fino até 16 de Novembro de 2024. Naquele instante, tinha acabado de me reencontrar com um excerto que me é caro, há muito, e que repito, da Poética do Espaço, onde, Gaston Bachelard refere a palavra “vasto” como sendo central na poesia de Baudelaire. Mas também, e sobretudo, onde o filósofo afirma que se fosse psiquiatra a prescreveria a quem sofresse de angústia, uma vez “que dá calma e unidade; [é] essa palavra que abre um espaço, que abre o espaço ilimitado. Ela nos ensina a respirar com o ar que repousa no horizonte, longe das paredes de prisões quiméricas que nos angustiam”. Bachelard, refere ainda que segundo o barítono Charles Panzéra, psicólogos experimentais asseguravam que a vogal “a”, central na palavra “vasto”, não pode ser pensada sem que as cordas vocais se movam. Este é um texto de 1957, estamos ainda distantes da era dos coaches motivacionais e seus seguidores mais ou menos assumidos…Ou da sua polaridade niilista. Acedo à Carta Aberta, parte do material do email, escrita por Vasco Araújo, a propósito do momento de exposição e levo-a a sério — Mas não demasiado a sério; como diz a Agustina Bessa-Luís, mulher de peso, ‘quem se leva demasiado a sério está condenado à humilhação'. Note-se que, também, não sendo coach motivacional, escreveu “Contemplação Carinhosa da Angústia”… Apresentadas estão as motivações pelas quais escrevo este texto com e não sobre Vasco, que me recebeu amavelmente na Galeria Francisco Fino, no passado dia 26 de Setembro, numa visita guiada à sua exposição RITORNARE. O excerto do texto a que retorno muitas vezes — e o que nele é antecedente com que demoro o leitor — tornou-se particularmente esclarecedor na Galeria. Talvez devêssemos ser todos um pouco mais claros quanto às nossas reais motivações (pelo menos para connosco próprios). Na Carta Aberta, e presencialmente, Vasco enfatiza o Desejo de chegar a um Lugar de maior liberdade — Lugar esse, em RITORNARE, claramente combinação de memória e espaço. Maiusculizo as palavras “Lugar” e “Desejo” como quem se masculiniza na presença de uma Diva — melhor, múltiplas Divas, múltiplas performances. Estamos de acordo quanto a um necessário equilíbrio simbólico, porém não menos real, entre Masculino e Feminino, a saber, de Ninguém (Llansol); que, diria, “dá calma e unidade […] abre o espaço ilimitado” às relações: Comigo e consigo…In primo Luogo, consigo mesm@. Se atravessado o estreito da angústia, esse afeto constitutivo do qual todos nos queremos desviar e anestesiar, não faltando recursos e meios de assistência para tal, eis que se manifesta o derradeiro e verdadeiro Desejo…É que il vero Desidero não segue vãs formas de tropismo… São precisas muitas performances e sopranos internas para sermos conduzidos — ou reconduzidos — ao Si-mesm@, uma vez experimentando os tons graves que escavam o espaço da gravidade que oportuniza a queda para o Aberto, neste mundo que se fecha em conceitos, categorias, caixas, caixinhas…Lembrando que os sons graves precisam de mais espaço para se manifestarem. Trata-se de performar uma gloriosa queda-voo no espaço ilimitado, segredo de algumas aves canoras — Vamos, aliás, em RITORNARE, reencontrar algumas das suas plumas. Aí, onde o limite entre Vida e Ficção desaparece, a própria queda no Real, queda em Si…E a queda em Si demanda a nota aguda mais alta…“VIIIIIIIIIIIICI D’AAAAAAARTE” . Em RITORNARE, VAAAAAAAASCO revisita as suas sopranos, motivado por uma assumida investigação sobre o próprio Self, o mesmo que dizer, Si-mesm@. No princípio, como refere na Carta Aberta, não é o Verbo: É a Voz. A Voz, diria, in continuum e ad aeternum manifesta num tempo não cronológico, sem princípio e por conseguinte sem fim…Um recorte da Voz, portanto — Múltiplos recortes, fixados no espaço da Galeria. A Voz das suas muitas per-sonas (per = através + sona = som), tendo presente que o termo persona se refere originalmente à máscara da Tragédia Greco-Romana; vazada na boca para permitir que o som se projecte e atravesse o espaço. Esta direção, instalada enquanto tempo oblíquo, é ali materializada nos cinco charriots, sobre os quais se apoiam os 107 figurinos, usados até então por Vasco em todos os seus trabalhos artísticos. Estão cobertos por capas de plástico e etiquetados com cada uma das performances operáticas de Maria Callas. Em “My Way”, Vasco e Maria Callas coincidem; i. e., caem juntos em Si, e porque o com-texto é espacio-vocal, dir-se-ia que esta instalação é a tessitura que ambos partilham — de vivido e de Voz. Vasco recorda-me que também estudou canto e que ambos perderam muito peso. Peso esse, no caso de Vasco, e num passado já distante, constituinte de uma sua identidade feminina; a soprano que então habitava esse corpo outro. Desaparecido o corpo, desaparecida a Voz e a Diva — ou talvez não. Estamos diante da primeira fotografia da série “S’HE”; uma espécie de série de polloroids, mas de grande porte, com as margens inferiores anotadas, como se se tratassem de enormes fichas de leitura das imagens do passado, e por conseguinte da memória, tornada colectiva. Há um processo investigativo de montagem e remontagem do tempo em curso no espaço expositivo. Ao lado, encontramos “Diva’s Props Archive”; i.e., o arquivo dos próprios acessórios com que se montam e desmontam Divas, e que Vasco remonta numa composição de caixas. Partilha que fotografou um conjunto de objetos, em caixas, parte do seu arquivo pessoal; objetos esses que tem vindo a encontrar, comprar e a serem-lhe oferecidos, provenientes em grande parte de casas esvaziadas. Tais acessórios, encontram ali uma vida póstuma, enquanto imagem invertida, uma vez elaborado o seu negativo cromático, que lhes empresta uma fluidez pictórica de aguarela. E-lhes feita uma “espécie de radiografia” — refere —, pois são de facto frágeis; muitos já não podem ser sequer tocados, desintegrando-se. Também estes objectos ficaram sem a casa-corpo de Outrora; como a sua própria Voz, desmaterializam-se. Habitam Agora outros espaços e tempos, desta feita, coletivos. Aqui, no texto, ficarão por rememorar duas esculturas sonoras, respetivamente, “A Testimony (Archive Sound, Coil #1)” e “A Testimony (Archive Sound, Coil #2)”. Deslocamo-nos até “La Superba”, o epíteto de Montserrat Caballé. O artista tem uma cúmplice…Tão cúmplice, que formam uma só Diva com a soprano catalã — Atesta-o as imagens. Vasco caminha mais vasto na possibilidade de "pensar um espectro de mil coisas”. A par da total Ficção, expõe essa fidelidade subterrânea do inconsciente; aqui também o peso, aquilo que o corpo sabe e que nem sempre sabemos se não numa escuta consciente, não sem a dose certa de humor para não incorrer no risco de nos levarmos demasiado a sério: A mãe, o corpo que foi e Monserrat. Aquilo que sabemos se jogarmos a Vida com a Ficção. Uma vez mais, este é um jogo de montagem e desmontagem, que remonta (a) conteúdos de um álbum oferecido, de alguém que se desconhece — que se estranha —, uma publicação que reune entrevistas das grandes divas da ópera e fotografias da sua mãe (já utilizadas noutra instalação), cúmplice do seu processo artístico. Como toda a exposição, “La Superba” é um grande Atlas humano de afeções. Agustina Bessa-Luís, diz-nos que poesia é uma sua avó velhíssima, demente, que reproduzia fielmente a mesma cena; em particular, um gesto carinhoso de aceno a seu marido, desaparecido há décadas — “uma cisma do coração”, um recorte do tempo. Habitamos nessa descrição um Lugar que é Limiar; a tal charneira em que uma imagem, enquanto produto de uma afetação longínqua e perdida se repete; retorna. A experiência subjectiva é então desdobrada na experiência Colectiva — Aquilo para o qual Agamben, Warburg, Didi-Huberman ou Benjamin apontam há muito…Talvez haja que considerar a Diva demente que nos habita; a avó, cujo “velho coração cansado batia ainda como um relógio onde uma e outra chave [se] servia dos antigos pensamentos”. “Entre Actos” (Vissi d’Arte, Vissi d’Amore) — “VIIIIIIIIIIIICI D’AAAAAAARTE”… Não é um mantra motivacional é uma convocatória vocacional (vivi de arte, vivi de amor); um chamado do Outrora e do Agora para se encontrarem no espaço expositivo, a par da Vida e da Ficção. Poderia também ser um epitáfio; a assim ser, uma proposta de renascimento, um retorno à Vida na forma de um loop. Um remoinho do rio do devir (ainda Benjamin) — RITORNARE enquanto um voltar a tornar-se, uma vez que ‘o que já se tornou não interessa à arte’, no famoso dizer de Viktor Chklovsky, o crítico e cenógrafo russo. É de facto um loop integrado numa escultura que remete para o edifício do Teatro em escala de maquete e o móvel da sala de estar da Diva (esse mesmo). Trata-se da ária do segundo acto da ópera Tosca de Puccini, que antecede o último encontro dos amantes antes de morrerem, protagonizada por Maria Callas, que Vasco operou no sentido de, entre actos, deixar apenas a Voz e reequilibrar-lhe o protagonismo: Num extremo, no alçado principal, Maria Callas; nos bastidores, tornado palco outro, a outra Diva… "Entre actos” é intervalo; o nada que pode tornar-se alguma coisa…Não fosse ‘o mito o nada que é tudo’ (Pessoa). Segue-se a entre vista mítica: “Interview” (vídeo 16/9). A inspiração foi, uma vez mais, Maria Callas. Confesso que os meus sentimentos mais nobres foram várias vezes capturados enquanto assistia ao testemunho da artista entrevistada que perdeu 65 quilos…É a proximidade dos planos: O queixo franzido síncrono com ombro que avança e contrai, a sobrancelha levantada, os olhos ligeiramente revirados...A altivez — Mas nada de snobismo; sine nobilitate. Tudo é ali verdadeiro e nobre. Estamos apenas sujeitos, diz-nos, "às metamorfoses a que chamamos ficção e que no fundo não passa da própria realidade”. Afinal, como consigo sucedeu, só representou por não se ter reconhecido na personagem. Retornemos às personagens, para sermos mais de nós. “E quanto mais formos, mais se É”.
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