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FERNANDO MARQUES DE OLIVEIRAO ETERNO RETORNO, 50 ANOSGALERIA PEDRO OLIVEIRA Calçada de Monchique, 3 4050-393 Porto 09 NOV - 11 JAN 2025
O tempo deixa-se preencher na circularidade do eterno retorno na Galeria Pedro Oliveira. A circularidade de sentido que o tempo ocupa, nos sulcos e aluviões deixados pela memória, transportam Fernando Marques de Oliveira para uma espécie de casulo habitacional, protegido da dissipação do tempo. Tudo muda e nada mudou na sua obra, pois as elaborações conceptuais que o artista, durante 50 anos, concretizou, resumem-se na eterna aparição, do regressado, do incontornável primado da criação que se volta para si. O artista agencia-se no envolvimento sempiterno do ouroboros, só que em vez de se celebrar na morte e transfiguração (tod und verklärung de Richard Strauss, se quisermos uma analogia musical), celebra a constância imorredoura da temporalidade impassível. No fundo nada verdadeiramente muda. Este eterno retorno nietzschiano pode também ser a espessura material, ancorada nas veias pulsantes do tempo, como a demanda infrene que sobreveio a Proust (uma das figuras-chave para o artista). A propósito de Proust, Gilles Deleuze refere que a obra À la recherche du temps perdu não consiste numa perscrutação na memória nem na recordação involuntária, pois o tempo proustiano não se pode configurar simplesmente como o tempo passado, mas a partir do tempo que se perde, que se dissipa nos intervalos deixados em branco . [1] Os interstícios da memória devem ser encarados doravante como uma narrativa de aprendizagem, doravante ocupando o lugar anamnésico do ser passivo, cabendo ao artista a tarefa de se moldar nas entranhas do tempo, a partir da sua elaboração e formatação da obra virada para uma conclusão eternamente adiada. Nada muda e no fundo tudo muda, nessa imperturbabilidade temporal. A aprendizagem deve-se ancorar nas mutações cronológicas, que ao tecerem as redes pregnantes de influência, enredam o artista na fluidez da mutabilidade, de forma a imiscuir-se na variabilidade e elasticidade de um pensamento estético. Fernando Marques de Oliveira, ao aceitar os grilhões do tempo, inculca no terreno compositivo uma gama multímoda de aproximações plásticas à geometria, saltando por vezes em intervalos irregulares, até à figuração retratística, ora por vezes resvalando na intensificação de programas isentos de representação, mas não por isso inertes de vibração telúrica.
Fernando Marques de Oliveira, Valise II, 2024, técnica mista sobre tela. © Rodrigo Magalhães
Cinco décadas contam-se no desdobramento de atitudes, de intenções, de inserções germinativas que deverão ser cristalizadas num momento derradeiro - o tempo. O tempo é a matriz que vemos explanada nas obras selecionadas para esta exposição, e, no entanto, é como lastro esquivo, sub-reptício, talvez até subversivo que Fernando Marques de Oliveira confronta a sua tessitura. Vem-nos à ideia a solução musical de tema e variações. O tempo como tema principal, como dono absoluto impreterivelmente presente, ou se quisermos abusivamente inexorável, e as escapatórias lúdicas do artista ao penetrar no desvio, no acidente, nas variações temporais deixadas em aberto. A sua obra inventaria as modalidades do tempo, enclausurando-as em dispositivos hermeticamente transgredidos, ultrapassados na sua formulação contextual, de forma a serem aparelhos imagéticos da captura cristalizada de um momento contingente passado, tornado presente. Vemos gravuras do século XVIII ou XIX serem apropriadas por manchas, formas aproximadas da geometria que prorrompem desenfreadamente pelos espaços esventrados, propícios à contaminação, observamos carcaças de livros desvirtuados, excisados do seu conteúdo para servirem de superfícies pictóricas, onde o artista inscreve o seu programa geométrico. Talvez possamos compreender estas propostas à luz duma metaforização da escrita como processo visual, ou mesmo duma deslocação agressiva das desadequações plásticas que tudo consomem na voragem e volição do querer-artístico. Acima de tudo como contaminação e transgressão, como essa vontade de poder (wille zur macht) que menciona Nietzsche. Os exercícios geométricos são alusões arquitectónicas de formas clássicas que a cada nova cesura estilística regressam como receptáculos de descarga que aguentam os rumos confusos das mutações históricas, promovendo a acalmia na turbulência da mudança. São peças de formatos variáveis, uns mais rígidos, outros mais dissolúveis com o preenchimento da cor, que irrompem das manchas, dos espaços, dos tecidos de inscrição como regressos prometidos de um presente que se eterniza. Vontade de alastrar a criação pelos espaços inertes ou temporalmente ocupados por representações estabelecidas de momentos preenchidos pela espessura do acontecimento. Pelo tempo, Fernando Marques de Oliveira, moderniza o temporalmente construtivo do evento passado, ao reconfigurar a inércia da história finda, numa vibratilidade delirante, cuja pulsação lateja de actualidade, investindo na sua conclusão terminal, a inauguração do original. Não só a usurpação de gravuras, mas a própria constelação semântica de texto e exposições escreventes que vão pululando pelas obras mais recentes do artista, atestam a inovação da história, pela reutilização destituída da sua sacralização. Se sacralizar o objecto é captá-lo num mecanismo de devoção configurado pelo impedimento da sua possessão e visível apenas na lonjura de um plano de horizonte, o artista dessacraliza os textos de vários escritores e poetas para deles se servir, pela intencionalidade subversiva, como uma camuflagem metamórfica no sentido de eterno retorno. Aparecem assim Lawrence Ferlinghetti, Konstantínos Kaváfis e excertos das Confissões de Santo Agostinho. É dele o seguinte excerto: o tempo não descansa, nem rola ociosamente pelos sentidos, pois, produz na alma efeitos admiráveis. [2] Para Fernando Marques de Oliveira o tempo de facto não descansa, nem se escoa ociosamente, pois a partir dele, organiza uma clepsidra inesgotável projectada nas suas obras, com tensionais aproximações, readequações e interpenetrações de modalidades temporais que se encaixam umas nas outras, como peças de inserção num tabuleiro regido pelo envolvimento assumido. Não parecem existir representações miméticas, tampouco sistemas tautológicos de redução referencial, pois as obras que vemos expostas abrem-se à contabilidade redundante de um tempo (e da sua consciência) que se retroactiva a cada instante, para em cada momento reforçar a imutabilidade da sua presença. Serão escombros, restos de ruínas, cadáveres adiados como refere Fernando Pessoa, ou despojos acumulados pela poeira do tempo? Ou serão antes mumificações vibráteis, resquícios mutáveis, reminiscências metamórficas que se enlaçam na existência sanguínea propulsionada pelos desígnios criativos de Fernando Marques de Oliveira? Sabemos que Marcel Proust escreveu o seguinte: a duração eterna tão pouco está prometida às obras como aos homens [3], mas enquanto o artista estiver retido no eterno retorno, a sua obra espelhará a condição sempre presente da história que nunca finda.
Rodrigo Magalhães
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[1] DELEUZE, Gilles. Proust y los signos. Editorial Anagrama, Barcelona. 1972, p.11.
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