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JOSÉ M. RODRIGUESTRATADOGALERIAS MUNICIPAIS - GALERIA AVENIDA DA ÍNDIA Av. da Índia, 170 1300-299 Lisboa 29 SET - 22 DEZ 2024 O Tempo da Não-Urgência
Viver das transcrições implica o confronto com o adágio italiano do traduttore, traditore (um tradutor é um traidor) e não parece que isto seja do nosso maior interesse. Mas isto também tem a sua quota-parte nestes registos, como veremos de seguida, à margem do debate sobre a fotografia enquanto disciplina que esteve sempre sentenciada e sob fogo, tão devedora quanto culpada (na língua alemã ‘culpa’ e ‘dívida’ são uma única palavra, Schuld). Este é um tratado que não nos deve nada por inteiro. Nas projeções de uma sala escura forrada a feltro preto surgem os registos acromáticos em gelatina de prata de pessoas próximas ao autor, bem como de outros enquadramentos. Estas sínteses relacionais feitas desde os seus tempos passados em Haia, Cabo Verde, Amsterdão, Monsaraz, Montemor-o-Novo, Arraiolos, são intervaladas por filmagens nocturnas de roedores, raposas e cavalos que ora bebem de uma gamela ora são capturados de relance. Tudo isto acontece ao som de um lugar idílico com o seu chilrear de pássaros, com a sua aragem nas copas das árvores e os seus insectos voadores: é este o tratamento que a memória dá aquilo que viu e que cumpre a máxima da memória ser uma ilha de edição [1]. Lá fora, numa vitrine-mesa em plexiglass encontramos uma enciclopédia, produto maior de um Iluminismo conciso que nos ensinou a balizar e a desconfiar do olhar do Outro [2], mas que aqui se encontra carbonizada. No topo desta vitrine comprimem-se dois pequeníssimos retratos de perfil do próprio autor que encabeçam esse livro que tenta abreviar o espaço entre signo e significante. Só de joelhos conseguiríamos ler as poucas entradas descritivas que ali restam — Naxos, Neanderthal, Neapolis ou Neapolitan Fisherman — o resto ardeu com violência. Enquanto isso, notamos um espelho colocado por dentro desse aparato e que faz rebater uma outra imagem, uma aparição da cara transfixa do artista debaixo desse mesmo livro. Se é verdade que na totalidade dos retratados encontramos uma textura moral fina e não uma mímica, também é verdade que nos autorretratos parece surgir invariavelmente um eu não sei como agir do interior sobre o meu aspecto [3]. É de uma extrema honestidade isto de não pararmos numa imagem absoluta nossa enquanto ocorrência maior. No exacto eixo médio da exposição, dois espelhos fabricados nos anos 70-80, década formativa e experimental para JMR, fazem dupla para levar ao limite do possível a redundância dos seus efeitos — charneira, duplicidade, emparelhamento. Este desdobrar da imagem também será encontrado nos pequenos espelhos presentes nas mãos de vários sujeitos fotografados até chegarmos a um outro quadrante da sala. Ali, uma instalação vertical que lembra as máquinas surrealistas de Raymond Roussel pode ser activada por intermédio de uma manivela, fazendo um pequeno olho de vidro na extremidade de uma colher girar em desvario. A dialógica da obcecante impossibilidade de alcançar o ausente [4] vai recair aqui nas sucessivas vizinhas de afectos. Aparecem-nos múltiplos amigos, familiares e amores, desejos recalcitrantes, empatias esbatidas, compadecimentos filiais e camaradagens, todos na mesma tomada de vistas. Todos inventariados na centralidade deste diante-dentro [5] que é imagem pura do encontro progressivamente fadado à falência. As linhas do horizonte sempre baixas são tão consistentes quanto os títulos destas cinquenta e três impressões sobre papel de algodão, e que indicam o nome próprio ou o petit nom de cada um dos retratados. Que o encontro seja ao mesmo tempo falhado e não falhado é também o que permite ter uma relação com o acontecimento, com a história, que não seja a do ressentimento. Se o encontro foi conseguido, termina em ressentimento. Se falhou termina em constatação desiludida de que não teve lugar. Se foi ao mesmo tempo falhado e conseguido, isso quer dizer que a sua potência persiste [6]. JMR é a figura ancorada no fazer desdobrado desta potência, e quem vê assim o mundo não poderia nunca pôr-se à margem dele sem criar esta monografia-viva onde pudemos circular de forma integral. No seu derradeiro tratado, José M. Rodrigues encerra pela própria mão a semelhança em viagem ou o mar nesse exacto momento em que preciso de concluir que há mar [7].
Francisco Menezes
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[1] Frase atribuída ao poeta brasileiro Waly Salomão (1943-2003)
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