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Joana Craveiro, Silencios Persistentes. © Catarina dos Santos
No passado mês de Outubro aconteceu a primeira edição do Festival Eufémia: Mulheres, Teatro e Identidades. Decorreu em vários lugares da cidade de Lisboa, nomeadamente a Biblioteca de Marvila, a Escola Secundária de Camões, o Mercado de Culturas de Arroios, e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A programação do festival, além da apresentação de espectáculos, contou com acções de formação e mesas redondas em torno de temas como a construção de identidades nas artes performativas e as questões de género. O festival é protagonizado sobretudo por mulheres. É produzido pelo grupo Eufémias, o primeiro grupo a representar em Portugal a rede internacional de mulheres no teatro contemporâneo Magdalena Project. O grupo Eufémias é composto por Catarina Amaral, Catarina Sobral, Elsa Maurício Childs, Mafalda Alexandre, Poliana Tuchia e Stefania Macua.
Marisa Paulo, (In)visivel. © Ricardo Campino
O nome do festival remete-nos imediatamente para Catarina Eufémia, a trabalhadora agrícola alentejana que, aos vinte e seis anos, foi assassinada com três tiros por um agente da GNR. Catarina Eufémia é um símbolo político da resistência anti-fascista portuguesa, mas também um símbolo de emancipação feminina face à cultura patriarcal dominante. Desta maneira, o festival invoca as mulheres trabalhadoras, as suas lutas, as diferentes formas de violência do sistema patriarcal-heteronormativo-branco, a força e a vulnerabilidade das que são mães, o direito e o dever de falar e o direito e o dever de dizer não. Uma das linhas de pensamento que está por trás da programação do festival vai no sentido de configurar as prácticas performativas como prácticas políticas. Ou seja, procuram que a potência transformadora das prácticas políticas seja partilhada pelas prácticas performativas. O festival Eufémia está portanto alinhado com o fenómeno cada vez mais recorrente nas artes performativas contemporâneas de que, as performances (espectáculos, peças, etc.), além de serem uma manifestação artística, são também um manifesto político. Os temas abordados pelo festival passam pela violência contra as mulheres, a violência de género, as diferentes formas de opressão pós-colonialista, a relação da sociedade com a memória histórica, a desigualdade no mercado do trabalho, as novas masculinidades, o racismo, a discriminação e a homofobia. É evidente a urgência deste festival dado que caminhamos a passos largos para um mundo cada vez mais nacionalista, securitário, perverso e fascista. Projectos como este são lugares de resistência importantíssimos para que estas lutas não percam o seu rosto, abrindo desta maneira espaço e visibilidade a quem é permanentemente vítima destas formas de violência.
Tita Maravilha, Tita no pais das maravilhas. © Gadutra
Na programação da primeira edição do Festival Eufémia: Mulheres, Teatro e Identidades destacam-se artistas como Joana Craveiro, Tita Maravilha, Marisa Paulo e Ana Woolf. Joana Craveiro, fundadora do Teatro do Vestido, apresentou Silêncios Persistentes, uma performance sobre tudo o que fica por dizer numa conversa, sobre a deterioração das imagens, sobre aquilo que não contam e aquilo que se perde com os que morrem. Tita Maravilha apresentou Tita no País das Maravilhas, uma criação artística baseada na fisicalidade subjectiva e no corpo político. Tita transforma-se, vive aventuras e é confrontada com o absurdo e o impossível. Mistura a personagem da Alice no País das Maravilhas com a sua intimidade e trajectória. Marisa Paulo estreia (IN)visível, uma performance que coloca em pauta a visibilidade invisível do corpo da mulher africana na Diáspora. Visível pela sua expressão numérica, mas ao mesmo tempo, ainda invisível no cenário artístico e político. Que corpo é esse? Que movimento tem esse corpo? São algumas das questões que a artista coloca em cena. Ana Woolf apresenta Semillas de Memoria, um espectáculo que fala sobre a ausência e apresenta o testemunho de uma mulher que sofre o desaparecimento do seu irmão, vítima da ditadura militar argentina. A encenação é de Julia Varley.
Ana Woolf, Semillas de Memoria.
Nas Mesas Redondas destacam-se as conversas: Arte, Política e Memória como Estratégia de Resistência; Feminismos, Interseccionalidade e a Desconstrução de Estereótipos de Género-Raça-Classe; Artes, Corporalidades e Construção de Identidades.
Projecto Suigeneris. © Maurício Centurion
Nas Formações sublinhamos o Projecto Suigeneris, de Nuno Labau, André Vasconcelos e Juan Fresina, assim como a exibição do filme As Mulheres do Meu País (2019), de Raquel Freire. Suigeneris é o resultado de uma residência de criação artística nas áreas da dança, teatro, circo e explora os processos de configuração das identidades de género, questionando os limites e potencialidades da ideia de novas masculinidades. O filme As Mulheres do Meu País trata-se do cruzamento de quatorze histórias, sobrepostas, contrastadas e colocadas em diálogo. São quatorze testemunhos de vida, de resistência, de dignidade, que nos emocionam e interpelam. Em cada mulher há uma história onde se cruzam múltiplas opressões, em cada sujeito uma singularidade que é também a síntese de múltiplas determinações sociais. Em síntese, é um retrato de Portugal, das estruturas, das desigualdades, mas também da inteligência, da coragem e da emancipação da luta pela felicidade.
Rodrigo Fonseca
Licenciado em História da Arte pela FCSH/UNL, e pós-Graduado em Artes Cénicas pela mesma faculdade. Viajou pela Europa central, pelos Balcãs, América do Sul, e viveu em Itália, Grécia e Brasil. O seu trabalho artístico desenvolve-se na música e no corpo. Organiza e programa os festivais culturais Dia Aberto às Artes (Mafra) e Sintra Con-Cê (Sintra) e é membro fundador da associação cultural A3 - Apertum Ars e da editora CusCus Discus.