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OPINIÃO


Sara & André, imagem para 'Inquérito a 471 Artistas'.

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CAVAQUEAR SOBRE UM INQUÉRITO - SARA&ANDRÉ €INQUÉRITO A 471 ARTISTAS€ NA CONTEMPORÂNEA



CATARINA REAL

2020-09-13




 


Lembrança para todos todos todos os que possam alguma vez ter-se referido a si próprios ou mesmo apenas só pensado em si mesmos como “artistas”: contactem saramaisandre(at)gmail.com, para que possam - talvez - responder a este inquérito a que me refiro. Piropos também são aceites, e embora não queira influenciar as vias criativas de todos os que os possam querer pensar, sublinho que um piropo é, salvo excepções, usado para demonstrar agrado, apreciação, satisfação, (...), relativa ao que é físico, ou imagético. É do corpo que falamos, sim, sim, sim, da imagem do corpo. E isso poderá ser intrusivo, mal intencionado ou mesmo criminoso. É nestes limbos em que tudo se opera: Sara & André pedem-nos o perigo! O perigo da exposição ou o perigo de ficar esquecido, o perigo do assumir ou o perigo do desvirtuar. Pedem-nos o compromisso de habitar um lugar desconfortável em que queremos estar e também não queremos e também queremos e também gostamos e também não é nada sobre nós, ou é tudo sobre nós. O nós que não importa ao autor que somos. É muito simples, e por isso é muito complexo. E é aí que a obra de Sara & André opera, inocente mas arisca, cínica mas esperançosa.

Ando em torno destas considerações há muito tempo e ainda não consigo criar uma linha de pensamento (no meu caso, todas as linhas mais longas de pensamento foram entrecortadas pelo estado pandémico) que as reúna, que recorte uma percepção unívoca sobre esta obra. É aí que considero que Sara & André são invulgares, e que esta é uma obra a que se deve fazer um sorriso cúmplice e bater palmas. A quantidade de camadas de leitura - não só pela evocação de tão extensa lista de nomes, e de criadores atrás desses nomes - é bonita de ir desvelando, com as suas ramificações e possibilidades de variação. Esta é uma peça em movimento, é instável, é esquizofrénica (no que aí poderá ser celebrado). Goza connosco, gozamos com ela, enquanto contribuidores, enquanto leitores. É risível, é divertida, é cómica, é capa de revista, é inteligente, é aguçada. E é dócil se quisermos, podemos amansarmo-nos perante ela, se calharmos de tropeçar nas contribuições que também assim o fizeram. Ou revoltarmo-nos com ela, se tropeçarmos nas contribuições fortes e lucidamente críticas.

Não tenho uma opinião quanto a esta obra, e por isso gosto. E por isso lhe vejo também uma certa necessidade. Andam desaparecidas as coisas que afastam inteligentemente a polarização - dos discursos, das opiniões, dos lados. Anda desaparecida a compreensão: e esta obra compreende, porque abarca, e acho que compreende porque abraça. Não tenho uma opinião quanto a esta obra, e por isso desgosto. Desgosto-me. Não se opina sobre uma paisagem a menos que seja bela. A menos que nos assoberbe. Esta obra é como estar dentro de uma paisagem bela quando se sofre de alergias.

Não estamos só a vê-la, estamos a sentir a experiência estranha e contraditória de gostar e não- gostar com os sentidos. Como a sensação de sermos demasiado pequenos numa paisagem gigante, da nossa própria insuficiência na relação. Ou como vivermos no entusiasmo da cidade, mas atrás do fumo do autocarro.

Sara & André foram convidados pela editora da revista Contemporânea, Celina Brás, a criar um conteúdo para a revista que “partisse da ideia de correspondência com a comunidade artística e pudesse de alguma forma esboçar uma reflexão sobre este momento que estamos a atravessar”. A sua abordagem a este convite dá-me mais do que uma reflexão sobre este momento, uma reflexão sobre o que é a massa artística, entrando por leituras mais-ou-menos psicologistas. Grandes e pequenos egos aparecem, assim como produção discursiva que se liga a grandes ou pequenos ou inexistentes compromissos com a vida, com os fenómenos políticos, com a arte - o A cai para que não haja problemas. Sara & André lançam aos artistas um isco, e eles - nós! - que queremos ser agarrados a todo custo, queremos ser mapeados, constar, fazer parte das listas, das selecções da visibilidade - agarramos o isco como podemos. Uns atiram-se a ele como se ser pescado fosse mais importante do que nadar em liberdade, outros brincam com ele como um gato e divertem-se no jogo de tocar e fugir, outros ficam amedrontados, outros afrontados. Muito poucos se recusam com altivez. E muito pouco diz respeito aos discursos que estas 471 pessoas desenvolvem enquanto autores. O que é que isso significaria? São dúbias - embora muito provocadoras, de qualquer perspectiva de onde se possa olhar - as intenções da dupla de artistas que tem levado o seu caminho neste movimento transformista ou de dupla captura entre o lugar da vítima e do vitimizado, alargando o movimento de construir um lugar discursivo que é crítico, que está dentro, e que aumenta o volume. Estão a brincar, mas a brincar a sério. Com as expectativas, com as imagens projectadas, com todas as imagens lugar-comum do artista - do que é ser-se, do que é estar-se artista - e qual é a nossa pertinência. As respostas são uma paisagem. Os documentos-resposta .pdf arrumam-se por ordem alfabética. O individual importa muito pouco a estas respostas, a esta situação. Individualmente encontramos tipologias de resposta, lendo o conjunto vemos uma paisagem. “Não sei, não sei.” Há quem tenha sido sério, certeiro, natural ou desinteressante. Melhor, desinteressado. Há quem não saiba e quem saiba tudo, há a falta de dinheiro e a preocupação, a de não ir para o atelier por constrangimentos à liberdade de movimento versus a preocupação de ordem social.

O título do editorial do “Inquérito a 471 Artistas” é “Porque fizemos isto” e é na forma de frases soltas, mais ou menos, mas nem sempre, contraditórias que Sara & André partilham as suas motivações. Ficamos a saber que estão atentos, o primeiro verso desta lista. Há humor, despudor e uma relação equilibrada entre o compromisso e o descompromisso. Duas entradas me chamaram a atenção. Uma, marcada pela diferença do início. Não “Foi”, mas “É”. “É simplesmente uma obra”. A outra, a motivação da compreensão de que há um “nós, artistas”. Considerando-o, e, mesmo sem intencionalidade primeira, entra no movimento agregador que todo o seu trabalho representa. Sobre um questionário relativo a uma imagem, que define uma paisagem, dão-nos uma imagem de conjunto e tornam relativamente inexpressivos os retratos individuais. Muito embora também me pergunte, depois de me aborrecer na constante abertura e desabertura de pdfs: quem serão os visitantes desta peça?, leitores selectivos? Haverá no nome do índex um peso?

Com referência - e reverência? - a Julião Sarmento e à obra “Inquérito a 60 Artistas Plásticos” apresentada na exposição Alternativa Zero, Sara & André convidaram muitos artistas a responder a quatro perguntas, em relação com uma imagem anexa, produzida pelos artistas: O que representa, na sua opinião, esta imagem? / Em quê ou como é que o assunto representado afectou a sua vida e / ou prática artística? / O que deve mudar para que tudo fique na mesma? / E o que fazer daqui para trás?

Puseram em perspectiva perspectivas alheias. Foi para mostrar que estão atentos, parafraseio.

Há bloqueios nas respostas, há imagens que respondem e há imagens-provocação. Há convicções expressas da necessidade de pensar a liberdade, mas também personificações do vírus. Houve complicações burocráticas, cancelamentos, atrasos. Há pensamento crítico sobre o espaço virtual. Há muita ironia na primeira resposta e muitos apelos à reflexão geral, e à reflexão condicionada ao sector artístico, aos problemas sistémicos, e à procura de melhores funcionamentos.

Proponho que esta obra, tal como outros recenseamentos, se refaça, se redobre a cada dez anos, para que possamos tirar dela ilações sobre sobreexposições da mesma paisagem. Talvez isso nos possa elucidar colectivamente sobre o que fazer daqui para trás. Da minha parte, e no exercício de lembrar, em 2010 os meus recortes ainda andavam muito próximos dos que fazia para colorir as capas dos cadernos pretos da ambar - e talvez não andem muito longe das minhas respostas a este inquérito, embora menos preocupados, ou atentos, ou conscientes. Talvez compreenda agora que há pavores maiores do que as centopeias - ano em que esse confronto foi celebrado em todas as casas onde pousei no Porto, curiosamente a cidade onde vi o espectáculo do João Fiadeiro - e talvez compreenda melhor também o porquê de achar que o Mauro Cerqueira era digno de um trabalho para Métodos de Investigação, com o professor Pedro Góis. Fui procurar, que pena já não encontrar o blog de desenhos.

 

 


Catarina Real
(Barcelos, 1992) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica nos campos expandidos da pintura, escrita e coreografia; maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. 

 

 

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‘Inquérito a 471 Artistas’ na Contemporânea