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Délio Jasse

























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DéLIO JASSE

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A começar pelos discos de vinil, apenas de jazz, Délio Jasse é um coleccionador, que em pequenas caixas de biscoitos, arquiva histórias de vida que ao longo dos anos foi adquirindo, numa coleção que junta milhares de fotografias e documentos antigos, a partir das quais cria narrativas. Apaixonado pelos britânicos Gilbert & George e pela música electrónica, o fotógrafo, que se assume um autodidacta, está entre os finalistas do BES Photo 2014, cuja exposição se inaugura a 28 de Maio, no Museu Colecção Berardo. É numa das ingremes travessas do Bairro Alto que o artista, natural de Luanda, habita paredes meia com o atelier, onde trabalha, de rádio ligado, uma nova série azul e branca, a apresentar este ano, na galeria Baginski.

 

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CH: A tua vinda para Lisboa está ligada à guerra civil de Angola?
DJ: Na altura estava na idade militar, se não fosse a guerra civil, não me importava de ir à tropa, mas não queria participar naquilo, porque houve muita gente que foi e nunca mais voltou. A minha mãe já sonhava há bastante tempo com a minha vinda, e eu imaginava…. Tinha 18 anos, foi difícil ter de deixar a família e os amigos de infância, de um dia para o outro, porque não queria dizer a ninguém que ia sair do país. E não me despedi de quase ninguém… e depois sabia que tinha um grande caminho pela frente ao vir para Portugal, que teria de enfrentar uma nova vida. Quem emigra procura sempre uma condição melhor, e acabei por ficar 12 anos sem ir a Angola.

CH: A tua forma de sair de Angola foi peculiar, porque tu e o teu irmão mais velho decidiram juntar as mensalidades do colégio para poderem fazer a viajem.
DJ: Havia poucas hipóteses, e dentro dessas poucas possibilidades, como estava quase a chegar à idade militar não podia ir ao colégio, porque poderia ser apanhado. Então, tivémos a ideia de juntar algum dinheiro, poupar em vez de estar a pagar uma mensalidade, uma vez que não podia ir às aulas. Pensamos que com esse dinheiro conseguiríamos vir para Portugal, o que aconteceu também com a ajuda de familiares. Nessa altura não havia muitas escolhas, tinha de se crescer muito rápido, começava-se a pensar muito cedo, e a ouvir histórias de pessoas próximas que já estavam cá a estudar e a trabalhar, das oportunidades que iam tendo, e eu queria alcançar isso.

CH: E foi isso que aconteceu quando chegaste a Lisboa, estudar e trabalhar em simultâneo?
DJ: Sim, estudava à noite e trabalhava durante o dia. Arranjava biscates facilmente. Comecei por ajudar um tio, que era carpinteiro de cofragens numa construção, e ajudava também um primo, aos fins de semana, para juntar uns trocos. Só depois comecei a trabalhar em serigrafia.

CH: E o teu ponto de partida nas artes começou aí?
DJ: Sim, em que passei por três ateliers. Ou seja, essa foi a minha formação prática, uma vez que não tenho formação académica. Na serigrafia havia muitas técnicas, muitas ferramentas, e para mim destacou-se a fotografia perante essas técnicas de impressão. Não sei bem porquê a fotografia… talvez pelo lado latente, em que só após um banho de revelação é que começa a aparecer a imagem. E também pela magia do laboratório, de estar às escuras, a luz vermelha… e isso é que me fascinou e agarrou até hoje. Uso muito pouco a serigrafia, porque trabalhei nela durante 11 anos. Tecnicamente, em alguns trabalhos ela está lá, mas fisicamente não se vê. Mas uso a serigrafia no método de trabalho, no recorte, na maneira de pensar, nas camadas.

CH: E quando começas a trabalhar em fotografia, foi inicial o recurso a imagens antigas?
DJ: Surge na altura em que começo a pegar no meu arquivo pessoal, estava distante da família e frequentemente olhava para as imagens dos momentos que passávamos todos juntos. Com a minha saída de Angola separamo-nos todos: os meus pais e as minhas irmãs foram para a Holanda, o meu irmão para Itália, eu e o meu irmão mais velho viémos para Portugal. Com essa separação, nunca nos encontrávamos em momentos como o Natal ou nos aniversários, e nessas alturas reorganizava as fotografias de um álbum que trouxe de Luanda. Essa reorganização, esses momentos únicos, como se fosse ouro, levou-me a andar com uma pequena fotografia de toda a família na carteira. E essa lembrança dava-me bastante energia para me aguentar em termos emocionais. A partir dessa altura, comecei a olhar para imagens mais antigas e a pegar em anónimos, a criar uma história daquilo que se passou e ir de encontro às histórias de Angola que desapareceram. Depois de uma certa altura, iniciei a colecção de fotografias antigas. Vieram ter-me às mãos arquivos de angolanos nos anos 40 e 50, e de portugueses em Angola, em que acabo por juntar e familiarizar imagens da época colonial e pós- colonial.

CH: O colonialismo é uma herança que te interessou descobrir, de uma forma mais abrangente, através das fotografias?
DJ: Apesar de as fotografias contarem partes da história, eu não a conheço porque sou uma geração pós-colonial, mas vejo nas imagens, crio uma leitura e concebo uma nova narrativa por cima dessas imagens antigas, num contexto actual. Muitas das coisas que estão nessas fotografias da era colonial, estão a acontecer novamente entre Portugal e Angola. O regresso dos portugueses, muitos deles, que deixaram uma costela em Angola, “os tinhas”, porque tinham terrenos, tinham casas, tinham bens… e que vão à procura de uma vida melhor, e para outros está a ser o “vou tentar ter”.

CH: Entras neste universo a partir da fotografia de família que guardavas na carteira, e trabalhas não só película mas também com colódio.
DJ: Colódio era uma emulsão aplicada em diferentes suportes, muitas vezes em chapas de alumínio, outras em vidro, e que por isso têm uma larga duração. Além da película trabalho muito nesse processo, ou a partir da fotografia original faço um novo negativo. Crio uma nova imagem não manipulando, mas sobrepondo a imagem por cima, criando uma nova narrativa, ou associando histórias com camadas, ou layers. É assim que processo as imagens, em câmara escura. Sou muito ligado à fotografia analógica, mas também gosto do Photoshop e dos digitais. Mas para mim, a fotografia tem um tempo. Eu fotografo a fotografia, o que também tem um tempo. As máquinas também têm um tempo de exposição… por isso, tenho a Bilora ou a Box, dos anos 40. Nessa altura era um processo moroso fazer uma fotografia, a impressão. Demorava para se ver as imagens, não é como agora que se pode fotografar digitalmente e ter o resultado imediato. E também era algo formal, em que as pessoas posavam e em que era criado um cenário, os próprios enquadramentos, as perspectivas… havia todo um cuidado com a marca de água, o relevo, o corte serrilhado à volta das imagens, o papel… e fui aprendendo com este material. Chego a desmontar máquinas fotográficas, para perceber o seu interior, a mecânica. E até hoje, continuo a utilizar o mesmo método que se utilizava na altura, processos químicos que já não existem e que recrio. Quando fotografo, uso uma máquina muito especial, a Hasselblad, da década de 70, que me possibilita, de alguma forma, trabalhar dessa maneira.

CH: Onde encontras os passaportes, envelopes, carimbos, todos estes objectos antigos que usas no teu trabalho?
DJ: Em alfarrabistas, antiquários e mercados em segunda mão. Todos os sábados vou à Feira da Ladra, nem que seja à procura de um envelope de “aviso de morte”, os envelopes de rebordo preto. E compro sempre algo: um certificado, uma certidão de casamento, um bilhete de identidade… Na Feira da Ladra há duas ou três pessoas que sabem o que quero e guardam a documentação, as máquinas fotografias, os negativos em vidro… e não compro só objectos referentes a Portugal ou às ex-colónias. Compro material em qualquer cidade, Budapeste, Londres, em Berlim cheguei a comprar álbuns completos de famílias. Eu fotografo esses documentos que dão origem ao meu trabalho: carimbos, aerogramas (inventado pelo Fernando Pessoa), que eram cartas enviadas por correio aéreo sem precisarem de sobrescrito. Depois há histórias muito pessoais, é isso que vou pesquisando e trabalhando. Trato a fotografia como um documento e jogo muito com a burocracia…. acho que estão muito ligadas, desde a fotografia tipo passe, que tinha só um carimbo a meia lua nos documentos para não serem falsificados, ou um passaporte que marcava uma época.

CH: E quando falas desse peso da burocracia, sentes-te identificado como imigrante?
DJ: Julgo que durante uns sete anos passei por várias dificuldades, sem documentação portuguesa. Tinha apenas o passaporte angolano. Uma delas foi a certidão de nascimento em Angola, que tinha desaparecido. Tive imenso tempo sem poder sair de Portugal, mas sempre a estudar e a pesquisar fotografia de laboratório, sem a documentação resolvida. Os serviços centrais portugueses dificultaram a minha legalização. Um papel com um carimbo, diz que sou legal… Foram esses códigos que me levaram a trabalhar com documentos. Foi também a partir disso, que criei a exposição Schengen, em 2009. Estava dentro do espaço europeu, mas não podia circular. Na altura queria sair, participar em residências ou em novos projectos e não era possível. Como não estava legal, não podia sequer ter uma conta bancária.

CH: E nesse universo de documentos antigos e de desconhecidos com que trabalhas, há alguma história que te tenha marcado?
DJ: Há um passaporte de uma senhora portuguesa/angolana que me interessou bastante. Em 1974 ela tratou do passaporte português em Angola, para sair. Não sei como, mas essa senhora foi de Angola até ao aeroporto de Heathrow, em Londres, e da capital britânica veio para Portugal, sem nenhum registo de saída do território angolano. Através dos vistos sabe-se por onde passou, mas não se sabe como saiu de Angola, e isso acho estranho. Houve também a história de uma família de primas e irmãs, em que há uma série de oito fotografias. De tanto pesquisar e olhar para essas imagens, em que na parte de trás havia informação dessa família, acabei por sonhar com elas. Na altura pensei que tinha de largar as fotografias antigas, mas depois comecei a trabalhar com mais força e a encarar de outra forma o meu trabalho. Não estou a fazer nada de mal a essas pessoas, estou a contar histórias de desconhecidos e a mostrar o que se passou. Recentemente tive um outro sonho, em que estava a receber uma dessas cartas de “aviso de luto”.

CH: Já tiveste vontade de descobrir se essas pessoas ainda estão vivas?
DJ: Até agora não, criei uma barreira. Na pesquisa de documentação estou a desvendar um segredo, ao não saber quem são essas as pessoas. Acho que se encontrasse alguém, não seria a mesma coisa, é como se desaparecesse o mistério.

CH: E em relação às cartas “de aviso de morte”, mexem contigo, emocionalmente?
DJ: Algumas sim, mas como estou habituado, já não me diz muito… mas imagino o que terá sido o momento em que alguém leu isso, não se trata de uma cópia, são originais. E imagino, as pessoas com estas cartas durante horas nas mãos… o luto. Aliás, só de verem as cartas, sem terem de as abrir, através do formato e do tipo de envelopes, já se sabia que era um “anúncio de morte”.

CH: Depois do Anteciparte, estás agora entre os finalistas do BES Photo 2014. O que representa este prémio?
DJ: É muito bom para a minha carreira como fotógrafo, e também para a minha geração. Sou o segundo angolano a estar no BES, depois do Kiluanji Kia Henda, e gostava que mais fotógrafos de Angola conseguissem chegar à final. Ao mesmo tempo, é também um grande desafio.

CH: O júri justificou a tua escolha com base em três séries: Além Mar, Arquivo Urbano e Contacto, que gostava que apresentasses.
DJ: A mais recente, Além Mar, são os anónimos. É uma série de imagens encontradas em arquivo que remete para a década de 70, nas cidades de Luanda e Benguela, que apresentei, através de uma projecção de slides, em Berlim na galeria SAVVY, no âmbito da exposição Ghostbusters II, com a Kara Lynch. Este trabalho fala da memória colectiva: os portugueses no Ultramar, que participavam na guerra colonial e a sua relação com os angolanos, os momentos de cumplicidade. A série Arquivo Urbano, também de 2013, que apresentei igualmente em Berlim, na exposição colectiva Open Monument, na Kunstraum Kreuzberg/Bethanien, confronta a arquitectura da década de 50, com a arquitectura moderna, em Angola. O confronto é feito a partir de duas imagens em que crio um layer único, como se estivesse em transformação. Esta fusão, das fotografias acontece da necessidade de confrontar a constante mutação que há em Luanda, de edifícios históricos que estão a desaparecer, para dar lugar a novas estruturas, como se e a história da cidade estivesse a ser apagada. A terceira série, Contacto, são os contactos que produzo a partir de negativos em vidro. Em vez de fazer um scanner da fotografia, ou fotografá-la, crio um contacto. São também imagens de Angola, mas da década de 30, sobre famílias em trânsito entre o território angolano e Portugal. É uma série em que trabalho muito sobre o retrato, onde procuro o lado poético dessas imagens, que falam por si, através de uma harmonia.