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JOãO MARçALINNER 8000erGALERIAS MUNICIPAIS - PAVILHÃO BRANCO Campo Grande, 245 1700-091 Lisboa 10 MAI - 30 SET 2018 A explicação pareceu-me bastante convincenteINNER 8000er, exposição de João Marçal (Coruche, 1980) com curadoria de Sara Antónia Matos e Pedro Faro, patente no Pavilhão Branco até 30 de Setembro é, como nos informa o texto de apresentação da exposição, descodificando o título, uma exposição que cruza referentes do alpinismo e da pintura, com jogos de analogia e associação que fazem e refazem possibilidades. Lê-se neste mesmo texto que “No planeta Terra, existem 14 montanhas com mais de oito mil metros de altitude - as “Eight-thousanders” -, todas localizadas nos Himalais e no Karakoran, na Ásia. Escalá-las é um feito conseguido por muito poucos, porque é designado como limite vertical, ou seja, o limite até onde um ser humano pode sobreviver.(...) muito poucos conseguem chegar ao cume de todas estas montanhas.” O jogo que o título propõe é então esta viragem para dentro de uma escalada limite. Continua o texto “Para Marçal, a ideia de uma montanha interior de 8000 metros, ou seja, no âmago de um ser humano, implica um ‘choque de dimensões’. Apesar de ‘sermos complexos e enormes no nosso interior’, os maiores picos dos Himalaias nunca caberiam fisicamente dentro de uma pessoa. Este choque de dimensões entre um dentro e um fora, que se reúne num estranho e metafórico paradoxo, muitas vezes brincando com a possibilidade de desconstrução de binómios, é uma excelente proposição para se pensar a poética de João Marçal. As pinturas que vemos, e que poderíamos facilmente inserir na linhagem formal de artistas como Agnes Martin ou Robert Ryman, entram em diálogo com os elementos paragráficos. Estes entram no jogo da percepção e compreensão e dilui-se aqui as fronteiras entre o que é ler e ver. É uma experiência misturada. Lemos “Migalhas” (é o título de seis pinturas, com respectiva numeração, no piso superior do Pavilhão Branco) e a pintura ganha uma dimensão de literalidade: há efectivamente algo que nos parecem ser migalhas, quase um equívoco em cima de pinturas de tons pastel tão regradas. O jogo – das possibilidades e impossibilidades da vertigem e da pintura - , e no que parece ser uma constante de associação e de memórias pessoais, é simplificado e complexificado (novamente a distorção de um binómio) quando se lê este texto, disponível no blog do artista: “Em pequeno, um dos meus hábitos matinais de fim de semana, era ir comer pão ou bolachas para a cama dos meus pais. A minha mãe já não estava lá, só o meu pai ainda a dormir. Abastecia-me durante os desenhos animados mais chatos, ou aproveitava os intervalos mais longos. O meu pai detestava que eu estivesse ali deitado, ao lado dele, a comer e a fazer barulho, acabava mesmo por me expulsar do quarto, bastante irritado. Eu fui insistindo neste curioso momento familiar, até que um dia lhe perguntei porque é que ficava tão furioso comigo. Ele respondeu me que, uma vez que dormia nu (em qualquer altura do ano), as migalhas que eu deixava cair na cama o incomodavam bastante em contacto com o corpo. A explicação pareceu-me bastante convincente e a partir daí nunca mais fui comer para a cama dos meus pais.” E depois desta leitura, assim como depois de uma gargalhada sincera (porque há muita honestidade e graça nisto), a pintura perante a qual poderíamos assumir uma posição distante [o espectador que olha] pela evocação de um imaginário pictórico, quebra-se, e transforma-se nesta pintura familiar que no fundo só mudou de plano [o espectador que vive]. Aqui, na pintura, onde as palavras ganham uma materialidade de imagem – concretíssima apesar de abstracta - permite-se que esta e outras histórias/narrativas/memórias multipliquem as possibilidades da apreensão que se situa entre o ver e o ler. Uma questão de velaturas, como é próprio ao assunto da pintura. Dentro do mesmo sistema de pensamento, evocações e des_leituras, a instalação de pinturas no piso térreo do Pavilhão Branco: quinze pinturas do mesmo tamanho, instaladas à altura do olhar nas janelas luminosas do pavilhão branco, juntamente com duas outras pinturas de maior formato, uma delas (Portrait of Voytek Kurtyka (painted in the ridiculous manner of Oporto School)) assente em duas colunas, criam uma atmosfera de arena. Apesar de ser uma forma de exposição perfeitamente normalizada (pinturas expostas na vertical à altura média do olhar do espectador), o uso da imagem do jardim sobre o qual as entidades-pintura se assumem como figura (tornando-o não mais paisagem mas apenas fundo), juntamente com o uso do som, permite que se instale a sensação de se estar rodeado, controlado e quase ameaçado por estas pinturas: um estado de alerta e de concentração. E novamente, depois da leitura dos títulos das pinturas da série Remote (as quinze do mesmo tamanho que se insurgem do jardim-fundo): Three Men and a Baby, Crocodile Dundee, Alien... a experiência de arena é simultânea à experiência máquina do tempo. Das minhas aulas de ciências do sexto ano, eu guardo a máxima sempre repetida por uma professora baixinha de cabelo loiro “pode-se dizer coisas sérias a brincar mas não brincar com coisas sérias” e a informação que as moscas têm uma temperatura ideal para viver e um espectro de vida que se rege, não só mas também, pela temperatura máxima e mínima que podem suportar. Inner 8000er fez-me relembrar isso: possuímos nós também uma altitude óptima e um limite de depressão ou de histeria (traduzindo profundidade e altitude em modo livre) onde conseguimos viver. As pinturas e a obra do João Marçal, com os seus contínuos layers que são para ser vistos (é no ver que a pintura aparece) mas são também para ser lidos (é no para-gráfico que a obra se constrói inteira), parecem-me com o mesmo tom do poema “ceci n’est pas un haiku” do Mariano Alejandro Ribeiro: “Juro que se me/ Voltas a ler Camus ao jantar/ Despedaço-te”.
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