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Manifesto “A Arte do Ruído”


Primeira execução pública do Intonorumori


Russolo junto do Intonorumori


Execução conjunta do Intonorumori com orquestra

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A ARTE DO RUÍDO



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Os instrumentos musicais são ferramentas que nos permitem obter sons. Desde muito cedo os homens construíram os seus instrumentos musicais, explorando bastante as possibilidades técnicas da ocasião. A voz terá sido o primeiro a ser utilizado mas a vontade humana soube incorporar de forma interessante todos os objectos da realidade circundante. Essa vontade de pesquisa, esse desejo de realização nunca colocaram de parte um aspecto que tem sido apanágio de todos os instrumentos musicais, sempre que entendidos enquanto ferramentas: a vontade de os controlar, de os dominar, de os submeter à nossa vontade. E esse controlo nunca foi fácil de atingir; parece terem existido sempre zonas negras, significando que o domínio nunca foi total. Dessa tensão aproveitou-se muita coisa positiva: é nessa tensão facilidade / dificuldade; domínio / não domínio que reside o interesse pela exploração.

Como qualquer outra ferramenta, os instrumentos musicais sofreram evoluções. Hoje temos instrumentos que há 300 anos não tínhamos, bem como continuamos a utilizar alguns que há 150 anos já existiam. O que se verifica é que os eles têm evoluído pouco. Se repararmos bem, as ferramentas que utilizamos para produzir sons, se comparadas com outras ferramentas das épocas em que surgiram, ganham sempre em longevidade. Poucas são as ferramentas que hoje permanecem do mesmo modo que permanece um instrumento que historicamente exista há centenas de anos. E mais evidente ainda é o facto de a introdução de novos instrumentos musicais ser muito limitada.

Qualquer que seja o estilo ou género musical o que se verifica é que no contexto de uma prática musical o instrumento é sempre aquele que sofre menos alterações. Tomemos o exemplo da chamada música erudita. Um clarinete ou um violino dos nossos dias não diferem muito daqueles que eram utilizados há 150 anos atrás. Se pensarmos noutros géneros musicais o mesmo acontece. A música pop/rock surge há cerca de 40 anos atrás caracterizando-se pelo recurso a determinados instrumentos: fundamentalmente guitarra eléctrica, baixo eléctrico e bateria. O que se verifica é que, apesar de todas as mudanças, inovações e desenvolvimentos que se deram neste género musical, os instrumentos musicais nele utilizados permanecem praticamente na mesma. E se considerarmos o exemplo de determinadas práticas de música popular / folclórica a situação é a mesma, com um aspecto suplementar que é o facto de neste género musical se procurar reproduzir da forma mais fiel possível instrumentos musicais de épocas passadas, construindo-os com o recurso a toda a informação disponível de forma a vincar esse carácter de reprodução fiel.

Podemos apontar algumas razões para este facto, embora elas não esgotem a justificação. O aperfeiçoamento na execução de um instrumento pode demorar bastantes anos até que seja estabilizada uma prática sólida e de execução fidedigna. A montagem de uma estrutura comercial também demora tempo e a existência dessa estrutura comercial foi sempre vital para a subsistência de um determinado instrumento entretanto surgido: quem faça, quem venda, quem compre, quem ensine a tocar são práticas que demoram tempo. E devemos ainda considerar que o respeito e o interesse social e académico demoram também a consolidarem-se: não é comum que, conservatórios, escolas de música ou academias se dediquem a um determinado instrumento musical acabado de surgir. A tradição tem aí um peso indisfarçável.

Verifica-se também que nos instrumentos musicais a evolução tem sido pouca e muito lenta, dando por vezes a impressão que estamos a tratar de uma área que vive isolada de todas as evoluções e mudanças que se vão verificando em todo o resto. Por exemplo: as orquestras sinfónicas atravessam todo o séc. XX quase sem nenhuma mudança ao nível da instrumentação, da execução e modo de abordagem de repertórios. Tudo isto num século em que tivemos a possibilidade de registar som, reproduzi-lo – primeiro analogicamente, depois digitalmente – e distribuí-lo, possibilidades até aí inexistentes.

Há, no entanto, um período da história das artes que deve aqui ser considerado por nos deixar um contributo interessante para a análise da questão. Refiro-me ao movimento artístico que ficou conhecido como Futurismo Italiano e, dentro deste, às teorias e práticas desenvolvidas por um dos artistas identificados com esse movimento, Luigi Russolo. Russolo nasceu em Itália em 1885 e faleceu em 1947. Recebeu formação musical desde cedo, fruto da tradição familiar. Ainda jovem interessou-se por pintura o que o levou a estudar também essa área. Após conhecer Marinetti, integra-se com grande dedicação nas actividades daquele que veio a ficar conhecido como o movimento futurista italiano. Um dos aspectos mais marcantes da obra de Russolo é o seu manifesto “L’Arte dei Rumori” (A Arte do Ruído), que Russolo apresenta em 1913. Trata-se de um texto, escrito muito ao género dos panfletos que à época eram comuns, que reflecte precisamente sobre a necessidade de se questionar o papel que os instrumentos desempenhavam na música da época. Nomeadamente, a necessidade de criação de novos instrumentos musicais que dessem resposta aos anseios e necessidades dos compositores. Russolo estava convicto de que a produção musical teria que passar por uma reformulação do modo como era feita, centrando a questão no facto de a música não dever manter-se alheada das evoluções técnicas que se estavam a verificar na sociedade. Refiram-se alguns desses desenvolvimentos como forma de contextualização: automóvel, cinema, electricidade, microfone, registo áudio, etc. Às ideias musicais de Russolo não devem ser também indiferentes as mudanças que se estavam a verificar no contexto das outras práticas artísticas. A deriva abstracta nas artes plásticas e o experimentalismo formal ao nível da literatura, por exemplo, devem aqui ser tidos em conta por terem sido determinantes para os desenvolvimentos que se vieram a dar no futurismo. O que acaba por ser aqui de salientar é a vontade de mudança sentida por Russolo. Essa necessidade passou em grande medida pela necessidade de criação de novos instrumentos musicais. Pressuposto que Russolo levou ao extremo criando-os ele próprio e de modo a incorporarem as emergentes possibilidades técnicas da época. O Intonorumori fica como o mais óbvio exemplo proposto por Russolo. Tratava-se de uma máquina que tinha por função produzir ruídos, com um determinado nível de controle sobre a sua execução. Era uma maneira de colocar em prática um dos pressupostos expressos por Russolo no manifesto “A Arte do Ruído”: os ruídos devem ser considerados na criação musical e os desenvolvimentos técnicos possíveis à época deveriam ser colocados ao serviço desse mesmo objectivo. A vontade de alargar o leque de materiais brutos à disposição do compositor era uma necessidade urgente. “Thus we are approaching noise-sound. This revolution of music is paralleled by the increasing proliferation of machinery sharing in human labor. In the pounding atmosphere of great cities as well as in the formerly silent countryside, machines create today such a large number of varied noises that pure sound, with its littleness and its monotony, now fails to arouse any emotion.” (“The Art of Noise”, p. 5) Russolo insiste no esgotamento do leque tímbrico da maioria dos instrumentos musicais tradicionais. Para ele, essa diminuta evolução que eles haviam sofrido ao longo da sua história possuía um carácter limitador e cerceador da criatividade e da imaginação do compositor. Tratava-se sobretudo de propor um enriquecimento consolidado por esse alargamento da panóplia de sons a serem produzidos. “We must enlarge and enrich more and more the domain of musical sounds. Our sensibility requires it. In fact it can be noticed that all contemporary composers of genius tend to stress the most complex dissonances. Moving away from pure sound, they nearly reach noise-sound. This need and this tendency can be totally realized only through the joining and substituting of noises to and for musical sounds.” (“The Art of Noise”, p. 11)

E Russolo não estava apenas interessado numa simples imitação técnica de possibilidades já antes existentes. Um dos aspectos que mais o motivavam era precisamente a possibilidade de se colocar todos esses novos instrumentos ao serviço da produção de novos sons, de novas práticas de combinação desses sons. Não se tratava propriamente de reproduzir algo parecido ao que já se possuía. Mas sim de obter algo que ainda não tivesse sido conseguido, pressuposto fundamental na composição musical, segundo o que Russolo propunha. “This new orchestra will produce the most complex and newest sonic emotions, not through a succession of imitative noises reproducing life, but rather through a fantastic association of these varied sounds. For this reason, every instrument must make possible the changing of pitches through a built-in, larger or smaller resonator or other extension.”(“The Art of Noise”, p.11)

O legado de Russolo, no contexto musical, não foi esquecido. Embora a maior parte dos pressupostos artísticos do futurismo italiano se tenham diluído no tempo, compositores como Varèse e Cage, por exemplo, foram distintos executores de muitas das ideias avançadas por Russolo. Ainda assim, a criação musical, sobretudo o seu lado mais académico personificado pelas academias, orquestras e conservatórios, não quiseram, ou não souberam, seguir essas linhas propostas por Russolo. A tradição pareceu sempre falar mais forte e, eventuais adopções dessas novas ideias, foram sempre muito tímidas e tiveram que esperar pela segunda metade do séc. XX para verem uma realização mais efectiva.

Porém, o trabalho de Russolo não foi em vão. E muitos dos criadores mais directamente identificados com o contexto das artes plásticas têm sabido dar-lhe uso. Não deixa de ser interessante considerar essa proliferação de experiências sónicas no contexto das artes plásticas. Mostrando muitas vezes que estes artistas, alheios à tradição musical instituída, são os que melhor uso sabem dar a algumas das inovadoras propostas com que Russolo avançou. Hoje, o que vemos nas artes plásticas são experiências que tomam o som e as várias possibilidades de ser produzido como matéria fundamental de base na procura dessa manipulação da sua plasticidade. O que significa que o legado de Russolo continua a ser válido nos nossos dias.

Rui Pereira Jorge
Professor, Músico, Sound Designer


Bibliografia

Russolo, Luigi, “L’Arte dei Rumori. Utilizada a versão inglesa “The Art of Noise”, s.l., UBU Classics, 2004. Disponível