TUBOLAGEM, DE MARIA JOSÉ OLIVEIRACRISTINA FILIPE2025-01-10
Tubolagem [1] Galeria Graça Brandão
O som do batimento do coração da artista é o elemento central desta exposição. Parte integrante de Cubo [imagens 1, 2] — um grande white cube (com cerca de dois metros e meio de lado) suspenso no piso térreo —, expande-se livremente por todo o espaço da galeria e embate no nosso corpo, ecoando. Impossível alhearmo-nos desta batida cardíaca que ressoa em nós confundindo-se com o bater, silencioso e quase impercetível, do nosso coração. O som ouve-se, desta forma, em stereo através de dois canais áudio, reproduzido por duas colunas diferentes — o corpo da artista e o nosso. O título da exposição ganha, assim, sentido, pois desse cubo branco podemos imaginar múltiplas artérias (tubulares) que irrigam metafórica e sistemicamente cada uma das vinte e oito obras, mais quatro no acervo, que constituem esta exposição. Maria Nurmela, na sua passagem recente por Lisboa, visitou a exposição e, impressionada por esse pulsar da obra de Maria José Oliveira, propôs ensaiar in situ a peça As You Like It — que criou com Lisi Estaras e irá interpretar brevemente no Turku City Theatre´s Sopukka, na Finlândia, cidade natal desta performer e coreógrafa contemporânea.
Maria José Oliveira e Maria Nurmela, 2024.
Este encontro improvável entre as duas artistas resultou num breve ensaio experimental e íntimo, no qual a peça de Maria Nurmela provou estabelecer múltiplas afinidades com a de Maria José Oliveira. A performance de Nurmela pareceu referir uma das fontes de Maria José Oliveira, Gina Pane, «como um dos expoentes máximos da body art, na década de setenta, que utilizava sempre o corpo como matéria e suporte para a sua criação artística.» [2] A voz de Maria Nurmela estabeleceu relação com o som do coração de Maria José Oliveira e o seu corpo com as múltiplas representações do corpo no trabalho da artista [imagens 3, 4]. Na sua obra, Nurmela «faz referência à famosa peça de William Shakespeare com o mesmo título, que aborda temas de identidade, papéis sociais e escolhas pessoais. Através de movimentos, objetos e símbolos, Nurmela destaca o tema da liberdade de escolha: a possibilidade de interpretar e experimentar a vida à sua maneira. Este solo profundamente pessoal e evocativo convida a refletir sobre a transformação e o legado.» [3] Este encontro não poderia, por isso, fazer mais sentido. O número significativo de obras e o espetro temporal que Tubolagem abarca lembram a exposição 40 Anos de Trabalho, de 2017, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Encontramos algumas obras revisitadas, instaladas de outro modo, e novas. Ambas as exposições são afins pelo seu carater intemporal, pois não se distinguem épocas ou tempos. O modus operandi é circular, as obras e os materiais revisitam-se permanentemente, confundem-se sem hierarquia e sem competição. Todas são vitais para a artista e cumprem um propósito imperativo. São, por isso, singulares, insubstituíveis e impressionam pelo caráter autobiográfico, pela referência incontornável e permanente ao seu corpo e ao de alguns que já partiram. O primeiro filho, Miguel, é um deles. Em ambas as exposições, como refere João Pinharanda no catálogo da primeira, Maria José Oliveira ora coloca o corpo no presente ora no passado e é nele que «fixa as suas fantasias.» [4] Quem conhece a vida e o percurso artístico de Maria José Oliveira compreenderá melhor a sua obra, mas, de modo a orientar o visitante, a Galeria Graça Brandão elaborou um pequeno manual de instruções com breves sinopses, sublinhando que a obra deverá ser entendida como a artista a pensou. Refere também, nesse manual, as principais fontes artísticas e literárias abrindo-o com excertos do livro de artista Aventuroso — cujas palavras ressoam ao som do coração que ouvimos bater: «Quantos minutos tem a nossa vida?» [5] A leitura imperativa do texto de Adelaide Duarte apresenta a essência da artista, da sua obra e desta exposição. Dignos de realce são os títulos e o modo rigoroso e atento como as obras estão instaladas no espaço pela mão da artista e do arquiteto Alberto Caetano. Sem hierarquia e ordem cronológica, a artista apresenta trabalhos em múltiplos materiais e suportes, todos resultantes da sua gestualidade: seja desenho, pintura, colagem, palavra, construção ou apropriação. São múltiplas as «coisas» que desvia do seu lugar de origem e integra nas assemblages que cria: vestuário, alimentos, restos, partes, algumas possíveis de identificar outras menos «numa mimésis de naturezas degradadas.» [6] Todas fazem parte do seu quotidiano e carregam em si uma memória específica, num verdadeiro exercício de (in)disciplina [7] , como referiu Paulo Henriques no texto que escreveu para o catálogo da exposição 40 Anos de Trabalho.
Maria José Oliveira, Espaços Intermédios, 1988-2024. A sua primeira exposição individual foi numa galeria vizinha, na Travessa da Água-da-Flor. A Galeria Artefacto 3 [8] mostrava, por norma, joalharia contemporânea e, em 1988, Maria José Oliveira expôs Ourivesaria Têxtil, redenominando assim a própria terminologia convencionada e os materiais normalmente afins a esta disciplina. Como referiu na entrevista que realizei em 2012, justifica o título «Pela incongruência, pelo paradoxal…» Identificou-se na altura com a liberdade desta disciplina e com a relação estreita que estabelecia com o corpo. Sílvia Chicó escrevia o texto de sala e denominava as peças apresentadas de «anti-joalharia». Uma dessas «não joias» integra esta exposição. Surge pousada num plinto em estreita relação com um prato de café da Vista Alegre, dos anos 1940, que guardou de casa dos seus pais. O prato preenche o lugar do corpo e sublinha a forma circular implícita nesta «peça para o corpo», como a artista prefere chamar. Na altura, moldou-a e fotografou-a no corpo do filho de 12 anos. O diâmetro dos quinze círculos concêntricos em tela crua com desenhos a grafite crescia em torno do pescoço do pequeno David. Aqui, este díptico — peça para o corpo (colar) e prato — faz parte da série Espaços Intermédios.
Telão na entrada da exposição Tubolagem. Galeria Graça Brandão, 2024. © Galeria Graça Brandão. No piso 0 somos levados a seguir o corredor (mezanino) que circunda o piso -1 da Galeria Graça Brandão. Por ser estreito obriga a uma maior aproximação das obras, muito embora também possibilite vislumbrar claramente duas ao longe — Cubo e Lua [imagem 5]. Parece reunir-se aqui um corpo de trabalho de autorrepresentação e biográfico, por isso mais emotivo, não sendo fortuita a presença de Lua no início deste percurso.
Maria José Oliveira, Pés na Terra, 2022.
Pés na Terra, perto de Lua, mostra fotográfica e performaticamente, em tríptico, os membros inferiores da artista, em pé, com os pés nus no chão frio de tijoleira de uma cela do Convento de Beja, as unhas pintadas de dourado e um vestido colocado no chão embrulha as peças principais da sua exposição sobre Soror Mariana Alcoforado que ali teve lugar; duas peças de fruta vermelhas, provavelmente maçãs; e um caderno, supostamente de notas. A fruta e o caderno remetem-nos, respetivamente, para o corpo físico e mental — e, intrinsecamente, para a domus. Este autorretrato realista e monástico da artista contrapõe os dois autorretratos (su)realistas — Coluna Vertebral e Aventuroso — em representação da vida (vertical) e da morte (horizontal), recolhidos muito perto de Cubo, donde emana o som do bater do coração da artista. Coluna Vertebral [imagem 6] retrata o ADN e o modus operandi de Maria José Oliveira, «simboliza […] a memória da sua atitude recolectora, uma tubolagem, onde acoplou objetos significantes numa assemblage vertical» [9] e o Aventuroso [imagem 7] o luto. Nesta peça, que a artista descreve como livro sem palavras exatas, o seu corpo surge representado por uma cabaia de seda preta, que nunca chegou a usar, pousada numa mortalha dourada. Por cima, repousam folhas tiradas do livro homónimo manuscrito em homenagem ao filho Miguel, exposto no piso -1 [imagens 8, 9]. «As suas folhas brancas foram marcadas pelo café, exibem manchas de pingos, e as palavras, escritas frente e verso, falam da ligação de mãe e filho para além da vida.» [10], lemos no manual de instruções. No piso -1, as escadas acentuam a ideia de casa e à chegada encontramos, imediatamente à esquerda, uma cadeira e duas peças de vestuário [imagem 10]. Pode Voar à Vontade [imagem 11], um tronco de acácia fixo à parede, sustenta um casaco da artista. Camisa em Poliestireno [imagem 12] parece levitar por uma suspensão vinda do teto. O casaco pendurado torna presente a artista, como se o tivesse despido há pouco, a camisa transparente, ligeiramente insuflada, materializa o seu espírito e Caruncho [imagem 13], uma cadeira de madeira rigorosamente perfurada, o tempo. A narrativa deste tríptico é sublinhada pelo livro da artista, Aventuroso [imagem 14], pela prateleira de cartão com papari e osso de choco Comida Primordial [imagem 15] e pela Construção Abrigo. Para Espaços Alquímicos (Nas Caves ou nas Altas Torres) [imagem 16]. Impressionante como, nestas diversas assemblages, se cruzam múltiplas histórias, e tomo agora conhecimento de que os fragmentos em ouro depositados nas duas colheres de alumínio foram realizados por uma aluna, numa aula no Ar.Co, na década de 1990, sobre Ana Hatherly, orientada por Maria José Oliveira, no âmbito da disciplina Estúdio, que criei para proporcionar aos alunos de joalharia projetos interdisciplinares. Como permuta, simbolicamente, os artistas recebiam uma peça de um dos alunos. Testemunhamos, assim, como tudo se perpetua e transforma nas mãos e no pensamento desta artista. Tudo é orgânico, pão, alimento. Alquimia. Transformações; Fronteira Líquida. Até Fui a Cacilhas e Resíduos Vegetais com Jarro de Vinho Tinto, são igualmente prova disso [imagens 17, 18, 19].
Maria José Oliveira, Resíduos Vegetais com Jarro de Vinho Tinto, anos 1990.
Neste piso, os trabalhos expostos ocupam igualmente teto, paredes e chão, e o som do batimento cardíaco da artista é constante. Agora, estremece não só o nosso o corpo, mas a própria arquitetura. «A dureza da madeira do cabide com cabo, que acompanha a coluna vertebral e o coração, simboliza a dura crueza da vida» [11] e está plasmada no desenho Para Gina Pane e Frida Khalo [imagem 2] que nos recebe quando regressamos ao piso 0. Na parede oposta, vemos duas naturezas-mortas que nos mostram dois corpos: Manga de Casaco [imagem 20], em tecido de lã, barro cru e cinza, sugere um braço amputado, e Mais Perto de Ti [imagem 21], em tripa de vaca e fio de algodão, um corpete justo cujo braço esquerdo se prolonga ad infinitum. Perto, os desenhos perfurados Mas onde Nós Estamos É a Luz e Desenho para Gina Pane [imagem 22], tal como para Lucio Fontana nas suas telas perfuradas, querem transcender o espaço, criar uma nova dimensão para a arte, relacionar com o cosmos que se expande infinitamente para além do plano confinado do quadro.
Maria José Oliveira, Le dur désir de durer (Paul Éluard), 2004-2024. Assemblage de diversos materiais, dimensões variáveis. © Maria José Oliveira / Cortesia Galeria Graça Brandão
No acervo (sala ao lado), Território — Arqueologia; Não Há Fim; Empurrar o Mundo e Le dur désir de durer (Paul Éluard) surpreendem quase no fecho deste percurso. Sobre a peça-tributo a Paul Éluard, o poeta da liberdade, podemos ler no manual de instruções: «Peça composta por uma triologia, onde três objetos se fixam à parede. Uma camiseta que a artista usou é pendurada num cabide. Imperativamente rasgada, a camiseta foi tingida com chá de camomila, bem forte, depois levada à máquina de lavar para consolidar as manchas sobe o tecido. O garfo, com que a rasgou é preso na parede por um prego num fio com um pequeno nó, em sua memória.» O lado conceptual e emotivo da peça balança com a descrição rigorosa do seu processo de realização. Cada detalhe, cada passo, cada gesto é primordial. Cérebro e Mãe [imagem 23] encerram Tubolagem, assegurando a conexão dos dois hemisférios cerebrais por uma espécie de «cabeamento» que estabelece a comunicação entre eles. O hemisfério esquerdo é responsável pelo racional, o direito pelo emocional. A «tubolagem» torna-se presente, de novo, neste complexo sistema.
Cristina Filipe
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[1] «Tubolagem é uma palavra que não figura nos principais dicionários da língua portuguesa. Palavra virgem, não fabricada, alude foneticamente ao nome feminino tubagem e etimologicamente a tubo acrescido do sufixo agem. Sugere sistema ou conduta orientadora de fluidos por meio de tubos, mas, também, a ideia de durabilidade e resistência, de estrutura e do suporte, conceitos a partir dos quais deriva muito da obra de Maria José Oliveira.», in Adelaide Duarte, Texto de Sala, Tubolagem, Maria José Oliveira, Lisboa: Galeria Graça Brandão, 2024.
Nota sobre as imagens [imagens 4 e 5] Obras:
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Duarte, Adelaide (2024), Texto de Sala, Tubolagem, Maria José Oliveira, Lisboa: Galeria Graça Brandão.
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