FLORA CALDENSE. UMA COLABORAÇÃO PÓSTUMA DE MARTA GALVÃO LUCAS COM AVELINO SOARES BELO, JOSÉ BELO, JOSEF FÜLLER E JOSÉ LOURENÇOCRISTINA FILIPE2024-11-25
A sobrevivência da quase totalidade dos seres vivos pressupõe a existência de outros vivos: toda a forma de vida exige que já haja vida no mundo. Os homens têm necessidade daquela que é produzida pelos animais e pelas plantas. [1]
Marta Galvão Lucas é doutoranda em Escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e bolseira do VICARTE pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Esta exposição decorreu no âmbito do seu doutoramento. A área de eleição que investigo tem sido a joalharia contemporânea e, muito embora esta investigação faça convergir diferentes práticas e teorias — e a hibridez das mesmas seja um facto —, a escultura e a cerâmica são as disciplinas subjacentes. Por isso, resisti escrever sobre este projeto expositivo. Contudo, motivou-me a forma como as obras foram instaladas no espaço museológico e circundante — um aspecto que me tem interessado, especialmente nos projetos curatoriais que tenho realizado —, e o contexto geográfico em que decorreu. Caldas da Rainha, foi para mim, tal como para os intervenientes neste projeto, como refere a escultora, um local de presença (provisória) e porque as afinidades com a vida privada, mesmo que subsidiárias, se revelam capazes de perscrutar sinergias:
i. Aos onze anos, Avelino Soares Belo (1872-1927) desenhava junto ao mar na praia da Foz do Arelho e o seu pai pescava na Lagoa de Óbidos [2]. O meu também. Costumava passear pelo Parque D. Carlos I, onde se encontra o Museu José Malhoa, que circundei muitas vezes sem entrar por, nessa altura, não ser uma prioridade. A natureza convidava à contemplação — «Interrogar as plantas equivale a compreender o que significa estar-no-mundo.» [3] ii. Transplantar uma nespereira em vaso — de casa de Marta Galvão Lucas para o Parque D. Carlos I —, enquanto escultura, instalação e planta em simultâneo, recordou-me A Vida das Plantas, de Emanuele Coccia, onde o autor ressuscita «as ideias nascidas nos cinco anos de contemplação da natureza, do seu silêncio, da sua aparente indiferença a tudo o que chamamos cultura» [4], e os meus passeios pelo Parque e pelo areal da Foz do Arelho. Tal como a natureza para Coccia, a nespereira traz para a Flora Caldense a possibilidade de evasão — «Nunca compreenderemos o que é uma planta sem termos compreendido o que é o mundo.» [5] iii. Na década de 1970, costumava visitar o refugo da Fábrica SECLA (Sociedade de Exportação e Cerâmica, Lda.), em Caldas da Rainha, onde encontrávamos inúmeras peças imperfeitas empilhadas, verdadeiras instalações temporárias, onde réplicas de couve e outros motivos ligados à natureza vegetal e animal conviviam com peças de padrões geométricos. Uma quase iniciação à cerâmica naturalista e artística caldense que, desde aí, passou a fazer parte do meu quotidiano e que tanto me impressionou na infância.
Tive o privilégio de visitar o atelier de Marta Galvão Lucas, em Caldas da Rainha, durante o processo de preparação desta exposição. Interpelou-me um carro de transporte industrial, em ferro, com um lote de cerca de cem moldes diretos de plantas empilhados em prateleiras de pinho. O extraordinário arquivo que a escultora adquiriu na Fábrica Mendes & Nicolau, em Caldas da Rainha, cerne da sua investigação para o doutoramento, assumiu-se como obra escultórica de Flora Caldense — com o título Encontro n.º 3, encontrava-se instalado na Sala Multimédia junto de Herbário [imagens 3, 4]. As «plantas» que estes moldes guardam «[n]ão possuem mãos para manipular o mundo e, contudo, ser-nos-ia difícil encontrar agentes mais hábeis na construção das formas. As plantas não são apenas os artesãos mais finos do nosso cosmos, elas são também as espécies que abriram o mundo das formas à vida, a forma de vida que fez do mundo o lugar da figurabilidade infinita. Foi através das plantas superiores que a terra firme se afirmou como o espaço e o laboratório cósmico de invenção de formas e de moldagem de matéria.» [6] [imagem 5] O Herbário, uma projeção em loop de 178 slides (criados a partir de película a preto e branco em negativo, papel, caixilhos e cartolina preta) das plantas representadas nos moldes, reverberava as palavras de Coccia. A sua projeção surgia, misteriosa, de entre os moldes físicos, convidando cada um deles a apresentar-se como imagem e sua respetiva identificação [imagens 6, 7]. Ainda no atelier, Marta Galvão Lucas mostrou-me uma Travessa em faiança chacotada, muito empoeirada, na qual animais e plantas modelados a partir de moldes diretos (a)parecem fossilizados — suspensão, assinado «Belo», marcado «BELO, CALDAS, PORTUGAL» e datado «1926». É pouco comum ter acesso a uma peça desta natureza e época, assim, inacabada e em tão bom estado de conservação, sendo que a patine monocromática, exercida pela ação do tempo e do pó (que parece finalizá-la), contrasta com o uso da cor caraterística do estilo neopalissista em que se enquadra. É difícil distanciá-la da ideia de congelamento e suspensão. Terá sido realizada por José Belo (1893-1962?), o filho, ou por Avelino Soares Belo, o pai? Avelino Soares Belo suicidou-se em 1927, com cinquenta e cinco anos, deixando possivelmente muita obra inconclusa, em processo — como esta Travessa que repercute a sua ausência. O seu nome parece ser desconhecido do grande público, mas a força da sua obra impõe-se na história da cerâmica artística de Caldas da Rainha, na segunda metade do século XIX, princípios do XX. [7] «As referências a ela ou à sua pessoa surgem, na maioria das vezes, integrando obras generalistas, dedicadas à cerâmica portuguesa ou à cerâmica caldense, ou monografias dedicadas àqueles com quem trabalhou enquanto modelador, seja Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), enquanto director artístico da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (FFCR), seja o Atelier Cerâmico do Visconde de Sacavém, sob direcção artística de Josef Füller (1861-1927).» [8] Muito cedo iniciou o filho no mesmo ofício e estabeleceu a sua «pequena oficina» em 1899. [9] Marta Galvão Lucas esclarece que «[a] oficina, a que Avelino chama inicialmente Atelier Cerâmico, passará consecutivamente a Fábrica Avelino Belo e a Fábrica de Faianças Artísticas Avelino Belo. Em 1923, funda a sociedade industrial e comercial “Avelino Belo & Filhos, Lda.”. […] José Belo irá deixar a sociedade por desentendimentos com o pai, mas voltará à fábrica após a morte deste, em 1927, altura em que assume a sua direcção, com os oito operários que estavam ao serviço.» [10] A integração da Travessa na exposição tornou-se, assim, imperativa, assumindo o papel principal de um, quase, «agente provocatório» [imagem 8]. Instalada na grande vitrina da Sala 3, dedicada à obra cerâmica de Bordalo Pinheiro, impôs-se pela sua beleza e crueza [imagem 9]. Perto, foi exposta Díptico, uma fotomontagem, impressa a jato de tinta sobre papel montada sobre alumínio, com os retratos dos Belo, (também) em díptico com o retrato de Rafael Bordalo Pinheiro — que integra a exposição permanente —, sublinhando a incerteza das autorias [imagens 10, 11]. As fotografias documentais de Avelino Soares Belo e de José Belo, sobre as quais adiante falarei com mais detalhe, constituem-se como uma das fontes primordiais da investigação subjacente à exposição. A par dos moldes — alguns já identificados, por Marta Galvão Lucas, como sendo da autoria de Avelino Soares Belo e outros de José Lourenço (?) —, do Livro de Empreitadas, de 1895 a 1899, de Avelino Soares Belo, e do Manual do Formador e Estucador, de 1920, de Josef Füller (1861-1927), inspirando-se neste último para realizar as esculturas Suspensão, alicerces deste projeto. Suspensão, uma série de seis esculturas em gesso corado com pigmento negro de fumo (negro carvão) [11], material de eleição na prática escultórica de Galvão Lucas, gaze (algodão), rede de capoto (fibra de vidro), aglomerado cru e madeira, exposta numa das paredes da Sala de Exposições Temporárias, seguia o alinhamento dos contrafortes exteriores das paredes dessa sala, e parecia sugerir uma galeria de retratos «velados», sublinhando a fragilidade e a incerteza subjacentes [imagem 12]. A previsibilidade de queda e rotura era-nos sugerida pelos estuques circulares, em gesso, suspensos (como indica o título) por frágeis estacas, que os tensionavam contra a parede [imagens 13, 14], e pelos sobresselentes, empilhados, sobre três plintos, em trânsito, que se impunham, inusitadamente, numa das portas de entrada da sala [imagem 15] — uma das instalações temporárias que Marta Galvão Lucas criou recorrendo a encontros e relações in situ. Os estuques circulares replicam a forma dos estuques dos tetos de sua casa, também em Caldas da Rainha, e, como já referido, seguem a técnica de realização do Manual de Füller. Flora Caldense estabeleceu um consistente diálogo com o mobiliário desenhado pelo arquiteto João Santa-Rita para o Museu José Malhoa, em 1997. E esse estímulo permanente às obras e ao desenho expositivo, sugerido não só pelo mobiliário, mas também pela arquitetura e história do museu, esteve presente nos quatro núcleos da exposição: Sala de Exposições Temporárias, Sala Multimédia, Sala 3 e Parque D. Carlos I. De destacar a intervenção arquitetónica que ocultou, com cartolina preta, as claraboias da Sala Multimédia — conquistando a escuridão necessária a Herbário e Encontro n.º 3, já referidos. E o Encontro n.º 1, na Sala de Exposições Temporárias, alinhou quatro plintos sublinhando as afinidades intrínsecas desta colaboração póstuma através da exposição de duas folhas de nespereira, o molde direto em negativo de Soares Belo e Sem Título em positivo de Galvão Lucas — realizadas em c. 1910/13 e 2023, respetivamente —, de uma pedra de gesso proveniente da pedreira de Alvarela, Óbidos, período Jurássico da escala de tempo geológico (201,4 a 145 milhões de anos), e do Manual do Formador e Estucador, de Füller — a segunda edição de 1920 — aberto na página que ensina o processo de realização da réplica dos estuques circulares [imagens 16, 17, 18, 19, 20]. A tensão implícita na instalação destas obras in situ pressupôs o foco no trabalho, na pessoa e no legado de Avelino Soares Belo, nomeadamente em Sem Título (cortina) e Díptico, que lhe conferem o lugar de um dos protagonistas na história da cerâmica caldense e deste projeto de investigação e expositivo:
— Sem Título (cortina) apresentava uma impressão a jato de tinta a partir de fotografia original intitulada Fábrica de Faianças da Companhia das Caldas da Rainha, Fundada em 1884: Grupo de Bordalo Pinheiro com parte do seu menor (Aprendizes) tirada em 1888 onde surge Avelino Soares Belo identificado com o n.º 5 e o diretor artístico Rafael Bordalo Pinheiro. Tímida, surgia por detrás de uma cortina de tecido aveludado preto (com quatro metros de altura e um metro e meio de largura) que a cobria parcialmente. A escultura revisita, assim, as grandes cortinas que demarcavam o espaço expositivo no Museu José Malhoa, nos finais da década de 1950, documentadas pelo fotógrafo Mário Novais [imagem 21]. Em Flora Caldense, a cortina permitiu, metaforicamente, a inversão dos protagonismos, mostrando-nos apenas Belo, ocultando deliberadamente Bordalo [imagem 22]; — Díptico apresentava a fotomontagem dessa mesma fotografia, à direita, e do retrato de José Belo com os seus aprendizes e operários na Fábrica Belo, também Caldas da Rainha em c.1949, à esquerda. Plena, surgia — com uma legenda que identificava todos os representados [12] — ao lado do retrato de Rafael Bordalo Pinheiro pintado por José Malhoa, em 1905, que integra a coleção permanente, como já referido. Avelino Soares Belo impõe-se, assim, a Rafael Bordalo Pinheiro, que bem conhecemos. Contudo, desconhecemos Belo, cujo dom inato de criador e modelador parece ter sido velado por Bordalo.
[imagem 21] Sala do Museu José Malhoa (Caldas da Rainha). Fotografia: Mário Novais (1899-1967). © Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
A «colaboração póstuma», que Marta Galvão Lucas preza e apresentou, faz jus à figura do «middleman» [13], debatida recentemente no 36.º Congrès du Comité International d’Histoire de l’Art (CIHA 2024), em Lyon, no qual participou. A importância do «intermediário», nesta exposição, parece ser igualmente assinalada na peça Encontro n.º 2 [imagem 23], que reunia as botas de trabalho da escultora [imagem 24], um plinto com campânula de vidro que sacralizava o Livro de Empreitadas, entre 1895-1899, de Avelino Soares Belo [imagem 25], aberto na página onde perdura um amor-perfeito seco (provavelmente ali colocado por si) [imagem 26], e a pequena nespereira (Eriobotrya japonica) com terra em vaso de terracota com prato [imagem 27]. As três peças (simultaneamente esculturas e botas, livro e planta) instaladas sobre um tapete de polipropileno e algodão cinza, de três por quatro metros, que também integrava este encontro, convocam, de novo, anteriores exposições museológicas, documentadas nas fotografias de Novais. Era também sobre o tapete — sentados num dos bancos de sala do Museu José Malhoa — que podíamos observar Belo, que, metaforicamente, nos vislumbrava por detrás da cortina. Flora Caldense encerrou com o transplante da nespereira em vaso para o Parque D. Carlos I, que envolve o Museu: uma ação performativa liderada pela artista — com a supervisão do Gabinete Técnico Florestal da Câmara Municipal de Caldas da Rainha, que determinou o lugar —, que enraíza este projeto expositivo no tempo e no espaço, conferindo-lhe uma perspetiva de continuidade. Pois «[c]ontrariamente aos animais superiores, cujo desenvolvimento se detém uma vez chegados à maturidade sexual, as plantas, essas, não cessam de se desenvolver e de crescer, mas acima de tudo de construir novos órgãos e novas partes do seu próprio corpo (folhas, flores, partes de tronco, etc.), de que haviam sido privadas ou de que se tinham desembaraçado. O seu corpo é uma indústria morfogénica que não conhece interrupção. […] A planta não é mais do que um transdutor que transforma o facto biológico do ser vivo em problema estético e faz desses problemas uma questão de vida e de morte.» [14], como refere Emanuele Coccia no livro A Vida das Plantas. Uma Metafísica da Mistura e parece referir a escultora nesta exposição. Marta Galvão Lucas interliga de modo singular a sua investigação académica e a sua obra escultórica com o espaço arquitetónico e expositivo do Museu José Malhoa e parque circundante. Promove encontros, dá nomes às coisas, reconfigura a história da flora caldense e dos seus protagonistas e coloca as peças que constituem o seu trabalho no lugar certo. Cura-as.
Cristina Filipe
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Notas [1] Coccia, Emanuele (2019) A Vida das Plantas. Uma Metafisica da Mistura. Lisboa: Fundação Carmona e Costa / Documenta, pp. 23-24.
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Coccia, Emanuele (2019). A Vida das Plantas. Uma Metafisica da
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Nota sobre as legendas das imagens
[imagem 1] Sala de Exposições Temporárias:
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