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JĂLIO POMAR. DEPOIS DO NOVO REALISMOLEONOR VEIGA2025-05-24![]() Alexandre Pomar, Júlio Pomar. Depois do Novo Realismo, Lisboa: Guerra & Paz, 2023, 310 pp.
Esta monografia sobre o pintor Júlio Pomar (1926-2018) revela um artista completo, que usa todos os meios plásticos e contextuais ao seu dispor, e resistente a categorizações simples. Alexandre Pomar aborda a obra de Júlio Pomar ao longo de oito décadas, cruzando-a com os escritos do e sobre o artista (entre os quais alguns da sua autoria), desde os tempos de estudante até ao final da vida. O livro mostra como Pomar escapa às classificações que vários autores, nomeadamente José-Augusto França, lhe atribuíam (p. 93), sobretudo a relação com o neo-realismo, movimento que teve origem na literatura, que em França se estendeu às artes plásticas. O próprio Júlio Pomar designava-o de “Novo Realismo”, como explicitado no título do livro: em 1953, quando José-Augusto França iniciou um panorama geral da arte portuguesa, Pomar afirmou que “O conteúdo [de uma obra] é a síntese dialéctica entre o tema e a experiência pessoal e vivida do artista” (p. 22). Este posicionamento distancia-o da vertente neo-realista militante – “uma arte do povo, pelo povo e para o povo” – e revela o seu difícil enquadramento dentro dos discursos doutrinários. Pomar, pelo contrário, advoga uma “pesquisa pessoal e vívida” na procura de uma linguagem própria (p. 22). O livro começa com a “Apresentação” do programa (p. 11-14) – um manifesto de intenções a cumprir ao longo da investigação. Nesta parte, o autor afirma que “O neo-realismo não é o que dele se disse” (p. 11). Explicará mais tarde que este movimento começou em Portugal em 1945, o qual, apesar de abraçado pelo Partido Comunista, era de filiação americana – inspirada nos murais mexicanos resultantes do New Deal que se seguiu à crise de 1929 – e não francesa, mais tardia, a partir de 1948. Esta particularidade resultou do tempo em que o Portugal metropolitano e neutral, durante o conflito mundial, fora submerso de propaganda cultural por parte dos americanos (p. 145). Alexandre Pomar afirma que “Quase tudo aconteceu na obra de Pomar depois do neo-realismo” (p. 11), que durou apenas uma década (1945-1955). A sua intenção maior é libertar o legado de Júlio Pomar das “habituais sínteses historiográficas” (p. 23), dedicando-lhe os primeiros cinco capítulos do livro. Nestes, cruza elementos biográficos com escritos, caracteriza o panorama nacional político e artístico, recupera informação ignorada para proceder a outras correcções históricas, e mostra a importância de outras cidades, sobretudo o Porto (e Évora) para a afirmação de uma geração de artistas portugueses, sempre divididos ideologicamente. É neste contexto que Júlio Pomar se situa nos interstícios dos grupos, algo que é mostrado através da sua amizade com Fernando Lanhas, que recorda como “o mais generoso dos meus camaradas de ofício e na real prática deste com quem mais aprendi. Ele católico de confissão, eu todo marxista para os íntimos” (p. 125). A partir do capítulo 6, o livro distribui-se por temas: os frescos da Batalha, recentemente recuperados, os retratos, as exposições dentro e fora do país, a obra gráfica, o Brasil, a sua ligação à literatura (inter)nacional e a sua relação com os seus pares. O autor adicionou dois Anexos, um, com textos de Júlio Pomar e outro, de correspondência com artistas, como Paula Rego e Mário Dionísio – crítico de arte e artista que sempre identificou a singularidade de Pomar no panorama nacional. Sem pretensões nem exageros, o livro mostra como Júlio Pomar foi um artista de matriz internacional, embora toda a obra se encontre coleccionada em Portugal (p. 162 e 179). É provável que da ausência de obras no estrangeiro – sobretudo em Paris, onde viveu entre 1963 e 1974 e expôs várias vezes, e no Brasil, através de participações na Bienal de São Paulo e de viagens nos anos 1980 – resulte alguma descontinuidade discursiva sobre Júlio Pomar. O autor refere “um longo hiato [..] sem se ver o seu trabalho em continuidade” (p. 171), a sua despreocupação em se internacionalizar de forma mais constante (p. 179), algo que associa ao facto de que lhe “Interessava mais a pintura a fazer do que expô-la” (p. 197). O capítulo 1, Pomar, 1942-1968, é o mais biográfico. A sua leitura transmite três ideias principais: 1) Júlio Pomar é dotado de um traço que não deixa ninguém indiferente, o que leva Mário Dionísio, em 1945, a perguntar: será “O princípio de um grande pintor?” (p. 25); 2) Júlio Pomar é um teórico que em jovem vive a arte de uma forma política. A partir de 1943, escreve para jornais e revistas (entre eles, O Comércio do Porto e Vértice) sobre a actividade artística dos seus pares, publicando pensamentos acerca de “uma arte útil e enérgica” de intervenção social (p. 28). Em 1953, “sem haver razão conhecida” (p. 42-43), esta actividade é abandonada. Subentende-se alguma necessidade de se proteger, dado que a esperança no fim do regime depois do conflito mundial – período em que Portugal viveu um certo cosmopolitismo – ter terminado e os artistas se terem refugiado “em soluções formais que começa[m] a sobrepor-se ao vigor do conteúdo” (p. 43); e 3) Júlio Pomar é uma pessoa que encontra inspiração na vida. Do ponto de vista do pensamento é alguém ideologicamente voltado para a vanguarda militante e de intervenção social (p. 20), enquanto que do ponto de vista referencial se centra na “informação sobre a criação contemporânea [...] de origem norte-americana e também latino-americana” (p. 20). Desta combinação surgirá um artista desenvolto, apreciado internacionalmente e em Portugal a partir de 1960. O segundo capítulo, Os Anos 40 na Arte Portuguesa, apresenta uma reflexão cuidada sobre a permanência discursiva no panorama nacional em torno “da geração que publicamente se afirmou nos anos 40” (p. 55). Segundo o autor, existiam duas tendências em simultâneo: uma, independente e marginal (p. 56-63) e outra, de gosto oficial (p. 53-56), que fez doutrina depois da exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1982. Esta apresentou a década de 1940 como tendo começado com a Exposição do Mundo Português e terminado com a “exposição de Janeiro de 1952 na Casa Jalco”, de matriz surrealista. Alexandre Pomar considera que esta interpretação retira vigor ao panorama português, que continha também as “Exposições Independentes”, fora do binómio Salões de Propaganda Nacional (SPN-SNI) e da Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), e onde, pela primeira vez, se afirmaram tendências, como o abstraccionismo (p. 62). Revela ainda o caso da exposição de 1942, “num quarto alugado como atelier, à Rua das Flores”, onde Pomar vende um quadro (p. 59). Esta exposição e a sua contribuição são vitais para a arte que virá a definir a década de 1940 e por isso dedica-lhe o capítulo 4, Rua das Flores, 1942. O capítulo 3, Realismos entre as Américas e Paris, coincidindo com a fase mais produtiva da escrita de Pomar, dedica-se sobretudo às suas reflexões teóricas e à relação com a cena internacional. Aqui conhecemos um Júlio Pomar erudito, que comenta a arte dos artistas mais reputados da época, como Picasso, Moore ou Matisse (p. 76-82). O interesse de Júlio Pomar pelo modernismo mundial revela-se sempre crítico e informado. O capítulo 4, Rua das Flores, 1942, é dos mais significativos para a proposta apresentada – um Júlio Pomar para além do novo realismo. Apresenta um acontecimento sui generis: uma exposição em que participaram cinco artistas e que “atraiu as figuras que frequentavam A Brasileira” (p. 87) e onde o jovem Júlio Pomar, um dos artistas, fez sensação (p. 88). A efemeridade do evento sugere uma atitude próxima das vanguardas internacionais de espírito dadaísta, continuada nas exposições independentes, também ignoradas pela história de arte moderna portuguesa. O capítulo 5, Geração de 45, traça o percurso de Pomar e dos seus colegas. O autor mostra como “A cidade do Porto é a base dos acontecimentos,” mas a história, escrita a partir de Lisboa, refuta-lhe esse lugar (p. 93). A centralidade na Invicta prende-se com a organização das Exposições Independentes pelo Grupo de Estudantes de Belas-Artes do Porto (GEBA) (a que se lhes juntam estudantes de Lisboa, entre os quais Júlio Pomar), e com a Exposição de Primavera a partir de 1946 (p. 101). Évora surge também como central para o panorama da arte moderna portuguesa, já que, por iniciativa da Academia Nacional de Belas-Artes, ali se deslocavam anualmente os finalistas das Belas-Artes de Lisboa e do Porto (p. 97). Com este capítulo, o livro muda de tom e passa a dedicar-se a aspectos mais precisos da actividade e do legado de Júlio Pomar. O capítulo 6, Cinema Batalha, A Aventura dos Frescos, narra a história dos frescos do Cinema Batalha, da sua autoria, recuperados em 2022. Esta encomenda mostra como nos anos 1940 o vigor da modernidade se fazia sentir no Porto e como o jovem artista de Lisboa, ainda bastante politizado, foi perseguido, demitido do seu emprego e preso (p. 103). Isto, apesar de o teor da obra ser decorativo e não político (p. 35). O capítulo 7, XVI Desenhos, Retratos, fala da primeira exposição individual no Porto em Setembro de 1947 onde expõe desenhos feitos na prisão do Forte de Caxias. No catálogo, o prefácio de Mário Dionísio sugere independência ideológica de Pomar em relação ao neo-realismo (p. 112). O capítulo 8, As EGAP – um Grande Comício sem Palavras, transporta-nos para a importância da resistência “que a Sociedade Nacional de Belas-Artes acolheu de 1946 a 1956” (p. 114). Considera Alexandre Pomar que a memória histórica das EGAP seja vista como uma “luta pela afirmação do Movimento Moderno” e propõe a necessidade de se estudar o lugar da fotografia nestas exposições em futuros projectos académicos (p. 117). O capítulo 9, Trocas, Mercado, Colecções, 1945-1950, aborda as trocas de trabalhos entre Pomar e Fernando Lanhas, Victor Palla, Mário Dionísio e João Abel Manta até aos anos 1990. Estas relações permitiram completar o restauro dos painéis da Batalha, encontrar registos desconhecidos do mercado de arte (p. 123) e finalizar as fases iniciais da actividade de Júlio Pomar. No capítulo 10, Marcha, 1952. Rever o Neo-Realismo, Alexandre Pomar propõe que a pintura Marcha (1952), nunca exibida, seja utilizada para rever o pensamento do artista. Propositadamente mantida em segredo até aparecer no Catálogo Raisonné de 2004, Marcha revela um conteúdo político claro. E pode restabelecer a intenção inicial do artista em desenvolver uma arte de realismo social interventivo, projecto que abandona por completo em 1955. No capítulo 11, Vanguardas Realistas, Alexandre Pomar faz a síntese da história das tendências mundiais e das suas manifestações em Portugal com vista à valorização da arte moderna. O capítulo 12, Tapeçarias de Portalegre, “...Criar Conforto e Encanto”, revela um modernismo aplicado no panorama português a partir de 1946. Agora, seguindo o modelo francês, a modernidade discursiva aliava-se à tradição. Este vigor permitiu a muitos artistas viverem através de encomendas de obras vistas como decorativas, mas onde se cruzavam tendências abstractas de Mondrian e de De Stijl com o realismo da arte mural mexicana (p. 151). E embora as tapeçarias de Portalegre mais conhecidas de Júlio Pomar sejam já da década de 1990, o artista participa no concurso das tapeçarias do salão nobre da Gulbenkian em 1967 (p. 153). O capítulo 13, dedicado à Obra Gráfica/Estampas. Itinerário, Inventário, constitui um resumo das temáticas que sempre acompanharam Júlio Pomar: o Povo, a Festa, Eros, Animais Sábios e Ficções, que vão sofrendo mudanças ao longo das décadas. A estas Alexandre Pomar acrescenta o Retrato (p. 155). Para o autor, os temas sobrepõem-se às escolhas técnicas que passam pela gravura em linóleo, a xilogravura, a têmpera, o fresco, entre outros media, que Pomar usou durante a sua longa carreira. O capítulo está dividido em duas fases: 1951-1963, a fase portuguesa, e 1974-2000, a fase global. O ano de 1960 aparece como charneira, quer técnica, quer pessoal: técnica, porque a gravura começa a ser executada neste ano, e pessoal, porque a partir de 1960 Júlio Pomar passa a gozar de uma reputação em Portugal que lhe permitirá viver do seu trabalho artístico (p. 162). Anos Pop, o capítulo 14, aborda uma fase pouco explorada da actividade de Júlio Pomar, quer pelo próprio, quer pela crítica. Esta é, no entanto, uma fase bem demarcada de actividade entre 1967 e 1976. Resultantes da sua estadia em Paris, nela trabalha temas como os Beatles e o Catch, a luta livre francesa (p. 166-9). A partir dos anos 1980, Júlio Pomar interessa-se, e muito, pelo Brasil. Esta história é relatada no capítulo 15, Do Brasil – Goiás e Xingu, Brasília, 1986-90 a 2004. O artista torna-se etnógrafo e no seu trabalho entram temáticas de cariz antropológico, como as observações dos Índios que desenha de memória (p. 173). O artista afirma que se deixou fascinar por aquele país, não pelas semelhanças com Portugal, mas pela intensidade das invenções locais, “marca de vitalidade” cultural (p. 175). Estas deslocações e estes contactos originaram longos ciclos de produção que durariam até 2004. No capítulo 16, Retratos, Anos 70 e 80 (e 2000), o autor mostra como, a par dos temas que Júlio Pomar trabalha a vida toda, o (Auto)Retrato tem um lugar primordial na sua vasta obra. Há o ciclo Pop dos anos 1970 (p. 183-186), o retrato literário dos anos 1980, onde se contam alguns dos seus quadros mais conhecidos (p. 186-187), e os retratos de personalidades e amigos que o viriam a ocupar a partir de 2000, quando começa a desacelerar o seu ritmo de vida (p. 188). Os últimos dois capítulos, 17 e 18, referem-se sobretudo ao conteúdo da obra de Júlio Pomar. Aqui, Alexandre Pomar realça a relação do artista com a literatura e as várias fases que daí resultaram. Uma delas, a de Pintura de História, está abordada no capítulo 18. Podemos entender que Pomar sempre cruzou os temas de eleição – o Povo, a Festa, Eros, Animais Sábios e Ficções – com a literatura e daqui resultam várias possibilidades, umas mais abundantes, como Ulisses, fundador de Lisboa, e outras mais breves, como macacos e porcos antropomórficos (p. 212). Este livro, excepcional no contexto português, é de louvar pela proposta de reler e de resgatar da meta-narrativa dominante a obra de um artista singular. A forma como está escrito, próximo da narrativa linear, faz com que seja de interesse para um público mais vasto e não especializado. No entanto, constitui um importante instrumento para o público especializado, podendo ser apenas o primeiro de muitas obras monográficas que urge fazer em Portugal. O formato, entre o registo académico e o registo literário, é actual e transversal, permitindo a todos os que querem conhecer mais do universo artístico português de antes e depois do 25 de abril do ponto de vista de um artista único, que penetrou todos os contextos, e sempre se manteve igual a si próprio – mesmo quando isso não lhe convinha.
Leonor Veiga |