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ARTE CONTEMPORÂNEA E INFÂNCIAMANUEL QUARANTA2023-03-24
Partilho da ideia de impugnar um conceito de infância, tão em voga na actualidade, baseado no paradigma da queixa, da ofensa fácil e acusação ao próximo. É a infância como adiamento indefinido da idade adulta, não em sentido cronológico, o álibi perfeito para manter afastada a terrível verdade: na vida estamos sozinhos e sem desculpas. Mas existe um outro conceito de infância, ligado à inocência do devir, ao jogo das perguntas livres, à azáfama audaz, que merece a nossa apreciação. Ser criança, segundo esta perspectiva, significa arriscar, entrar no comboio do desejo. Estabelecidas as bases, prossigo. Na última sexta-feira de 2022, convidei o Milos, filho mais velho de um amigo da primária que vive em Espanha, para passar o dia em Barcelona. Barcelona, admito, não está entre as minhas cidades favoritas. A explicação pode soar naïf ou demasiado burguesa: sinto-me expulso da cidade pela pressão constante de um tipo de turismo cuja inesgotável sede converteu as ruas num parque de diversões. E eu, como a maioria das pessoas, gosto de me divertir, mas não nos parques de diversões. Talvez seja um trauma para tratar em terapia. Porém, existe um espaço em Barcelona que, quando a sorte me acompanha (na Argentina, justificamos os nossos privilégios de classe com a expressão "tive a sorte de viajar") eu visito. Diria que, ainda que pareça exagerado, vou a Barcelona só para visitar o MACBA. De facto, tenho feito isso regularmente. Apanho o comboio na estação de Tarragona, desço no Passeig de Gracia, percorro o Museu, almoço e volto para Tarragona. Durante esses anos vi no MACBA exposições e trabalhos memoráveis: The Joycean Society (Dora García, 2013), o registo das sessões de um grupo de pessoas reunidas na Zurich James Joyce Foundation, que desde 1986 se reúne para ler semanalmente o Finnegas Wake; Three posters (Rabih Mroué, 2004), vídeo performativo que tenta reconstituir as manobras de um grupo militar ou paramilitar árabe; a exposição Teatro proletario de cámara, desenhos e colagens de Osvaldo Lamborghini; a mostra sobre Oscar Masotta, La teoría como acción; e a lista continua... O pacto com Milos foi o seguinte (a ordem foi sugerida por ele, e era conveniente do ponto de vista das distâncias): primeiro o MACBA, depois a CosmoCaixa, um museu de ciência vocacionado ao público infantil. Convém esclarecer que Milos é uma criança com porte adulto, por momentos sério, embora com os seus oito anos não haja infância a que se resista. Exponho a minha hipótese: Milos viveu uma experiência mais enriquecedora no MACBA do que na CosmoCaixa. Os pisos do museu de arte contemporânea transbordavam de exposições roçando o lúdico, algumas ligadas à infância, outras requeriam o compromisso e a habilidade do espectador: passar por baixo de ripas de madeira, descalçar-se para caminhar sobre tapetes, entrar em salas completamente escuras. No segundo piso, descobrimos Una fabulación basada en un mito mixe, uma instalação composta por um totem monumental rodeado de uma dezena de pinturas belíssimas de carácter arcaico e dois ecrãs que projectavam animações realmente cativantes. O ponto extremo foi o piso térreo, dedicado na sua totalidade à artista brasileira Cinthia Marcelle. Nas suas obras, o corpo do espectador estremece ao percorrer espaços e tempos deslocados; por exemplo, precisamos evitar diferentes obstáculos na instalação desordenada La familia en desorden, um lar caótico onde é tenso o percurso em termos afectivos e se ressalta a materialidade (e precariedade) do mundo doméstico. Embora mais tradicionais, uma série de vídeos da artista atraiu a nossa atenção: uma escavadora sulca a terra desenhando o signo do infinito (numa outra exposição, no segundo piso, aparecia o mesmo signo), um camião de bombeiros traça um círculo no chão e deita água no centro, num cruzamento de caminhos confluem quatro músicos de cada lado tocando os seus instrumentos e vestidos com roupas de diversas cores, depois trocam posições e retiram-se por onde não tinham vindo. Esse vídeo vimo-lo na íntegra, porque nos outros era fácil identificar a operatória, mas em Cruzada era imprescindível manter-se expectante.
Na última sala encontrámos uma instalação de grande escala, No Ar/On Air; aqui Marcelle tinha montado uma emissora de rádio na qual o espectador podia programar a sua música e interferir na programação de outros espectadores. Por sugestão de Milos, ficámos ali um bom bocado, tentando escolher uma música que agradasse a ambos. Estivémos no MACBA duas horas e um quarto. Após a primeira hora, Milos reclamou cansaço, dor de cabeça, mas notei que era um protesto automático ao universo adulto, por isso o encorajei a continuar e acabámos por ver todos os pisos, incluindo a performance com caixas de cartão que acontecia no rés-do-chão, e com a qual Milos ficou perplexo: nós no meio de um grupo de jovens acariciando caixas, dançando com elas, fundindo-se com um material intimamente ligado à pobreza, ao perecível e à fragilidade. Dali em diante, segundo o lugar-comum, começaria a diversão de Milos. Almoçámos no McDonald's, ele o seu happy meal, eu uma Signature, apanhamos o autocarro, e quase uma hora depois de entrar, saímos na paragem da CosmoCaixa, na outra ponta da cidade. O espaço da CosmoCaixa é imponente. Um edifício de 50.000 m2 destinado à aprendizagem e ao entretenimento dos mais pequenos. Mas bastaram vinte minutos para notar uma particularidade. Para além de mergulhar num bosque inundado fascinante, com pântanos, peixes pré-históricos e árvores altíssimas, o único estímulo para as crianças consistia em carregar num botão para activar os dispositivos. Não quero ser injusto, mas contavam-se pelas mãos as situações em que a intervenção humana excedia o facto de carregar num botão ou girar uma manivela. São dispositivos que efectuam experiências físicas, químicas e astronómicas, e a participação do público é bastante limitada. Não há imersão, e não me refiro às tristemente famosas experiências imersivas actuais, mas sim à restrição da experiência. De regresso no comboio para Tarragona, perguntei-lhe qual dos dois museus tinha preferido; Milos pronunciou-se, sem duvidar, a favor da CosmoCaixa. Acredito na palavra de Milos, lógico, mas a minha impressão sobre o seu percurso indica-me que as vivências no MACBA transformavam o seu trânsito numa experiência, o que não sucedeu na CosmoCaixa. Uma das provas é a memória sobre as peças do museu de arte contemporânea de que mais gostou. As mesmas que destaquei neste texto, com base na sua opinião. Ao mesmo tempo, as fotos funcionam como indício. No MACBA aparece atento, entusiasmado, executando diferentes movimentos, com o corpo alterado e alterando o espaço, com a matéria das obras em diálogo com ele, ainda que não compreendera plenamente o que sucedia à sua volta, como nenhum de nós compreende, e por isso é feliz. Em vez disso, as imagens feitas na CosmoCaixa mostram-no diante de um ecrã, pressionando botões. No museu de ciência, o único sentido em jogo é a visão: carregar para observar, e manter-se à distância. A da CosmoCaixa é uma experiência passiva, passiva no pior sentido. Em tempos de hiperactividade e hiperconsumo, nada tenho contra o carácter passivo da experiência, ao contrário, mas na CosmoCaixa incentiva-se uma espécie de hiperpassividade. No texto “Will you laugh for me, please?”, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, referindo-se à moda interativa vigente, diz: “Olham fixa e aturdidamente para o ecrã, a real ameaça dos novos meios de comunicação é que eles privam-nos da nossa passividade, da nossa experiência passiva autêntica, e assim nos preparam para a estúpida e frenética actividade – para o trabalho interminável”. Poderia parecer que Žižek fala de outra coisa, porém, está a falar sobre o mesmo. Um esclarecimento. Tenho a certeza de que se tivéssemos visitado o Prado este texto não existiria. Não distingo, portanto, entre um museu de ciência e um museu de arte, mas sim entre um de ciência e um de arte contemporânea. Um tipo de arte cuja definição (talvez caduca) fuja para a frente, transbordando qualquer classificação; uma arte que de tanto provocar, às vezes, se torna previsível, e em geral só comove (se comove) o espectador iniciado, ou seja, os participantes da área. Mas o que aconteceu com Milos demonstra a ascendência da arte contemporânea sobre as crianças, a princípio, não iniciados às vicissitudes contemporâneas nem aos conceitos. Não digo, levianamente, que Milos divertiu-se mais no MACBA: descarto de todo semelhante banalidade. O que tento dizer é que no MACBA se agenciou uma experiência, apesar, ou por causa, dos seus oito anos, e uma experiência envolve múltiplas vivências, incluindo contraditórias: entusiasmo, alegria, felicidade, tristeza, aborrecimento, cansaço, distração, incompreensão. Benjamin, no ensaio “Arte do coleccionismo”, escreve: “O preconceito, digo, de que as crianças conformam existências tão singulares e incomensuráveis que é preciso ser especialmente engenhoso na produção do seu entretenimento. É inútil estar obstinadamente atentos à fabricação de objectos – meios visuais, brinquedos ou livros – que sejam adequados para crianças. Desde o Iluminismo que se trata de uma das reflexões mais bolorentas do pedagogo”. Formulo-o de outra maneira: Milos aprendeu algo na excursão ao MACBA impossível de aprender numa instituição destinada à aprendizagem.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa.
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