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DUAS EXPOSIÇÕES NO PORTO E MUITOS ARQUIVOS SOBRE A CIDADELAURA CASTRO2021-01-30
A primeira, no Pavilhão de Exposições da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, intitula-se Vistas de Exposição – Exposições Magnas da ESBAP 1952–1968, e tem coordenação de Lúcia Almeida Matos e Luís Pinto Nunes. O Pavilhão tem desenvolvido um programa que contempla, pelo menos uma vez por ano, uma actividade relacionada com o percurso histórico da instituição, apresentado a partir de diferentes perspectivas e práticas artísticas. A segunda, na Galeria Municipal do Porto, intitula-se Que Horas São Que Horas. Uma Galeria de Histórias, e tem curadoria de José Maia, Paula Parente Pinto e Paulo Mendes. Esta exposição surge vinte anos após a abertura daquele espaço e enquadra-se numa linha programática de exposições panorâmicas que têm constituído contributos inestimáveis para a história da arte contemporânea portuguesa, a partir da produção associada à cidade do Porto. Lembrem-se apenas as recentes Sub 40 Arte e Artistas no Porto Geração pós-25 de Abril (curadoria de José Maia) Musonautas, Visões e Avarias 1960-2010 – 5 décadas de inquietação musical no Porto (curadoria de Paulo Vinhas) e a exposição inaugural daquele espaço intitulada [+ de] 20 Grupos e Episódios no Porto do Século XX, que comissariei com Fátima Lambert, cujo catálogo, particularmente o seu primeiro volume, tem servido de fonte secundária a pesquisas sobre a cultura e a mediação artística na cidade, uma vez que apresentava já um corpus de galerias, publicações e documentos relevantes do Porto moderno e contemporâneo. Esta trajectória historiográfica, a que artigos e dissertações de mestrado têm acrescentado novos dados, teve outra importante ocorrência na exposição Porto 60/70 Os Artistas e a Cidade, apresentada no Museu de Serralves e na Cooperativa Árvore, aqui dedicada aos Quatro Vintes, com curadoria de Fátima Lambert e João Fernandes, e Paula Parente Pinto na investigação. As duas exposições na Galeria Municipal e no Pavilhão de Exposições da FBAUP inscrevem-se na crescente dinâmica institucional de revisitação, evocação e reconstituição de momentos passados da história de galerias e museus ou de exposições marcantes. Ambas propõem um trabalho de arqueologia documental, envolvem algo de tautológico e assumem-se como meta-exposições: a exposição reflecte sobre si própria, a instituição pensa o seu papel, a galeria reconstrói a sua linhagem. Portanto, visitar a Galeria e o Pavilhão é participar numa mise-en-abyme. As duas experiências, no entanto, não poderiam estar mais distantes, um abismo separa-as, não pelo tema (pesem embora as distinta balizas temporais – 1952-68 para a série coerente das Exposições Magnas e 1945-2010 para o panorama das galerias portuenses), mas pelas estratégias discursivas e estritamente museográficas. Aquilo que num caso é sinal evocativo, no outro é cenografia avassaladora; aquilo que num caso é acentuação dos conteúdos, no outro é submersão; aquilo que num caso é gesto curatorial de matriz investigativa, no outro é gesto curatorial espectacular. Visitá-las é, portanto, percorrer caminhos distintos da curadoria e, fundamentalmente, perceber usos distintos das exposições que diria serem os da desmistificação e os da mitificação, admitindo embora que um tem sempre um pouco do outro e vice-versa. Por isso, o momento portuense é tão interessante. Começo pela exposição no Pavilhão de Exposições da FBAUP e cito, do texto de entrada: Promovidas pelo Arq. Carlos Ramos, as dezasseis Exposições Magnas ocorreram entre 1952 e 1968, no início de cada ano letivo, onde eram reunidos e apresentados os melhores trabalhos escolares e projetos de encomendas públicas, concretizadas no ano letivo anterior, dos estudantes e mestres da Escola nas áreas da Arquitetura, Escultura e Pintura. A curadoria abordou este assunto a partir de registos fotográficos existentes no arquivo da Faculdade e na Casa da Imagem – Fundação Manuel Leão que detém o extraordinário Arquivo “Teófilo Rego – Foto Comercial”. O discurso expositivo é organizado cronologicamente, a partir destas fontes fotográficas, que têm autor: Teófilo Rego, Tavares da Fonseca e Platão Mendes. Registos para memória futura dos acontecimentos que eram as Magnas, estes documentos não são, como nenhuma fonte o é, neutros e requerem interrogação, interpretação, selecção e decisões quanto ao modo de expor. A escolha foi por uma apresentação nua, sem vidros nem passe-partouts ou molduras, preservando o ar de registo de trabalho e a fronteira entre o documento e a obra original. Em duas paredes, alinharam-se as vistas fotográficas das Exposições Magnas, reutilizaram-se para a escultura suportes que já tinham servido naquele contexto e pontuou-se o espaço através de elementos próprios de outro tempo, as pesadas cortinas que servem de fundo à pintura e à escultura, o vaso com uma planta na entrada do edificio. Para lá das fotografias, um filme inédito documenta a obra de Barata Feyo mostrada na exposição de 1952. É um elemento extraordinário de registo e experimentação feito pelo escultor Fernando Fernandes que acabara de adquirir a máquina de filmar. A exposição percorre-se num vaivém entre a fotografia e as peças expostas, num diálogo entre presente e passado e entre representações dentro de representações. Desfilam as gerações de artistas e, com elas, técnicas e práticas do ensino artístico dos meados do século XX, obras e projectos que fariam a história da arte e da arquitectura em Portugal. Ao contrário do que é habitual, os catálogos ocupam uma das paredes da galeria, mostrados na vertical, com cópias das páginas dos discursos do director da ESBAP, Carlos Ramos. Estes documentos escritos e impressos constituem, a seu modo, outras vistas de exposição. A exposição na Galeria Municipal apresenta-se, segundo o folheto de divulgação, como uma reflexão sobre a paisagem histórica das galerias de arte no Porto, inscrita entre a aparente abertura cultural do final da Segunda Guerra Mundial e a retração do tecido cultural provocada pela recente crise económica. Um olhar sobre esta cronografia permite compreender as muitas faces da civitas e as cumplicidades transformadoras entre artistas, agentes culturais e públicos que a conformam. Este retrato retrospetivo atravessa as exposições independentes em livrarias que ensaiaram uma profissionalização alternativa da arte, recorda o confronto com novos públicos e espaços cívicos que só a revolução de 1974 permitiu até à celebração das inaugurações simultâneas na rua Miguel Bombarda, culminando na rede de lugares alternativos organizada para resistir à Troika. A exposição apresenta três eixos de desenvolvimento. O eixo basilar do projecto é a cronologia das galerias de exposições de arte moderna e contemporânea na cidade do Porto (1945-2010) que tem início na fundação da Galeria Portugália. Um eixo paralelo corresponde a uma selecção de artistas e obras apresentadas ao longo dessa cronologia, nem sempre com ela relacionada, mas todas mostradas em galerias e que, pontualmente, comentam o coleccionismo, a musealização e a exposição das obras de arte, outras representações dentro de representações. Ao longo deste eixo, surgem sinais de crítica institucional (antes da institucionalização da crítica) nomeadamente em lugares como a Cooperativa Árvore. Um eixo que cruza os dois anteriores é definido por projectos artísticos encomendados a Arlindo Silva, Mafalda Santos, Maria Calma [Maria Trabulo], Nuno Ramalho e Pedro Tudela que trabalharam a partir da pesquisa para a exposição ou dos acontecimentos relacionados com os dois eixos anteriores. A opção foi disseminar estes projectos pela exposição e impedir a sua identificação como interferências contemporâneas no processo histórico. O tratamento do material recolhido é irregular e a abordagem das galerias Portugália e Alvarez revela um aprofundamento que não se replica nas restantes. Nos dois casos, uma constelação de acontecimentos procura fundamentar o aparecimento dos espaços da arte moderna: a vinda para o Porto de Carlos Ramos, as exposições Independentes, os vinte suplementos do jornal A Tarde, coordenados por Júlio Pomar, a publicação de Mundo Literário, o convite a Pomar para realizar o mural no cinema Batalha, projectado pelo arquitecto Artur Andrade, autor do projecto da Portugália. Na década de 50, a galeria Alvarez e a primeira apresentação de Amadeo ao público português, após a exposição de 1915-16, é parte de um mosaico de que fazem parte a Academia, a futura Alvarez Dois, a Perspectiva 74, os Encontros Internacionais de Arte, profusamente documentados. A partir deste ponto, a exposição ramifica-se em múltiplas frentes que apresentam catálogos, cartazes, manuscritos, fotografias ou revistas, em núcleos, ora organizados por tipologia de objectos, ora por espaço expositivo, ora por factos tangenciais como as propostas de Lanhas e Ângelo de Sousa para a rua Miguel Bombarda quando as galerias quiseram fazer cidade, ou o documentário fotográfico de Saguenail sobre o atelier de Álvaro Lapa, a relacionar galeria e espaço de trabalho dos artistas. Há ruídos e registos sonoros, filmes, reportagens, projecções de imagens jornalísticas, um ar de cidade dentro da galeria. A cidade entra, ainda, por outra via, o filme O Pintor e a Cidade de Manoel de Oliveira, projectado na parede final da galeria, que parece impor António Cruz no circuito da arte moderna e contemporânea. Se o mural de Nuno Ramalho, na entrada, recorda a dimensão mercantil da actividade das galerias (é feito de moedas), o mural de saída afirma uma nota intemporal. (Eu não pude deixar de pensar noutro paralelo, o de Saguenail e Oliveira). Visitei a Galeria Municipal com Paula Parente Pinto que juntou as peças dispersas e fragmentadas pela cenografia, dando voz ao que a própria caracterizou como os discursos invisíveis da exposição. Os materiais estão lá, mas o discurso histórico não se chega a efectivar e precisamos de o ouvir por cima de tudo o que vemos. Um programa de conversas com os diferentes agentes do meio artístico, artistas, historiadores, deveria ter complementado a exposição e teria trazido à superfície as histórias que, afinal, ficaram por contar. A ausência deste programa, devido às circunstâncias decorrentes da pandemia, torna mais urgente uma publicação que registe o resultado da investigação realizada.
Vistas da exposição Que Horas São Que Horas. Uma Galeria de Histórias. Fotografia: Dinis Santos, cortesia Galeria Municipal do Porto.
Estantes, caixas de arquivo, crates de transporte de obras de arte constituem o aparato cénico da exposição. Têm um papel determinante no modo como a percebemos e a vantagem de sinalizar a ocultação/desocultação que acontece durante os processos de investigação. Tais estruturas lembram a quantidade de documentação que permanece encerrada em armários e caixas, inacessível, a aguardar tratamento e disponibilização pública ou o esquecimento e a destruição. A fragilidade em que se encontram muitos arquivos familiares sem horiozonte de preservação é a mesma em que se encontram espólios provenientes de galerias e projectos afins ou acervos fotográficos de fotojornalistas. Estamos a falar de materiais marcados pela efemeridade, como cartazes e folhetos, pela dispersão, como fotografias de circunstância que nunca se organizam, ou até testemunhos que não foram registados na época e de que é necessário encontrar evidências noutros suportes. Se a primeira exposição referida é um exemplo do tratamento, estudo e uso cultural e histórico do arquivo da FBAUP e da Casa da Imagem, que uma publicação de mais um Caderno do Pavilhão de Exposições vai consolidar, a segunda é um exemplo da incerteza dos arquivos que não têm destino assegurado. Não mencionei por acaso, as exposições que, no Porto, já abordaram temas associados à cultura e à mediação artísticas na cidade. Fi-lo porque também essas exposições já levantaram muito do material que agora se retoma e porque Paula Parente Pinto lembrou que a falta de uma guarda institucional para esses arquivos provoca sucessivos recomeços. É inevitável pensar no Banco de Arte Contemporânea, lançado em Lisboa, pela sua Câmara Municipal e a EGEAC, com a participação da Fundação Carmona e Costa e do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa. É muito cedo para avaliar este projecto, mas não é cedo para pensar na incorporação e estabeleciomento de um núcleo que recolha o património disseminado pelos múltiplos actores na cidade do Porto. Pensar no como, onde e com que entidades. O Porquê e o para quê, já sabemos.
Laura Castro
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Vistas de Exposição – Exposições Magnas da ESBAP 1952–1968
Que horas são que horas: uma galeria de histórias |