|
O FOLHETIM DE VENEZAAUGUSTO M. SEABRA2009-02-171 â Quando por oportuna iniciativa de um partido polĂtico, o CDS-PP, o plenĂĄrio da Assembleia da RepĂșblica aprovou por unanimidade a chamada do Ministro da Cultura Ă comissĂŁo especializada a fim de prestar esclarecimentos sobre o atraso da definição da representação portuguesa na Bienal de Veneza (bem como da falta de apoio Ă presença de galerias na ARCO de Madrid), o complexo processo, sendo do campo artĂstico, tornou-se tambĂ©m polĂtico. A posterior indicação da dupla JoĂŁo Maria GusmĂŁo e Pedro Paiva, e de Natxo Checa como comissĂĄrio, nĂŁo encerra o processo; pelo contrĂĄrio, as peripĂ©cias foram de tal ordem que solicitam mesmo uma reflexĂŁo sobre o conceito de ârepresentação nacionalâ em que entrosam os campos da arte e da polĂtica. 2 â Bem antes de se consagrar o termo de âglobalizaçãoâ, houve uma âmundivĂȘncia expositivaâ associada Ă revolução industrial e aos impĂ©rios coloniais. A primeira Feira Mundial, âGreat Exhibition of the Works of All Nationsâ, ocorreu em Londres em 1851 e a Exposição Universal de Paris ocorreu em 1900. Foi entre essas duas datas que se iniciou, em 1895, uma mostra assumidamente cultural, a Bienal de Veneza, e a partir da edição seguinte começaram a ser erigidos os diversos pavilhĂ”es nacionais. Evento artĂstico, a Bienal de Veneza Ă© tambĂ©m assim um acontecimento inter-nacional, em que os diferentes paĂses estĂŁo representados por artistas singulares. 3 â Entre o carĂĄcter geral do projecto e a singularidade dos artistas expostos, coloca-se agudamente o problema dos âartistasâ em si mesmo, como Nathalie Heinich o analisou em LâĂlite artiste â Excellence et singularitĂ© em rĂ©gime dĂ©mocratique (Gallimard, 2005). Ora os poderes artĂsticos e literĂĄrios em regime democrĂĄtico devem ser exercidos de forma transparente. Ă nessa transparĂȘncia que tanto mais se exerce a mediação quanto a singularidade, e a excelĂȘncia, tĂȘm um valor artĂstico para alĂ©m do âsenso comumâ, sendo que os artistas se representam a eles prĂłprios mas estĂŁo tambĂ©m na situação de representar um paĂs. 4 â O que sucedeu no rocambolesco folhetim da representação portuguesa na prĂłxima bienal foi uma dupla crise de mediação, da mediação polĂtica exercida atravĂ©s da Direcção-Geral das Artes e da mediação artĂstica propriamente, na escolha de um curador responsĂĄvel â mais do que falar na dupla JoĂŁo Maria GusmĂŁo e Pedro Paiva, cabe aliĂĄs falar numa tripla GusmĂŁo, Paiva e Natxo Checa, escolhida em recurso em funçÔes das suas capacidades como plataforma produtiva. 5 â Chegou-se a essa solução, como foi noticiado, nĂŁo sem que antes o Estado, atravĂ©s da DGArtes tivesse anteriormente contemplado a hipĂłtese do cineasta Pedro Costa. Ă certo que a partir dos seus filmes ele vem realizando algumas mostras como âFora â Outâ com Rui Chafes em Serralves, mas uma tal hipĂłtese ainda que entretanto malograda nĂŁo deixa de suscitar alguns comentĂĄrios. Pedro Costa Ă© hoje um artista largamente reconhecido internacionalmente, e influente, mas nĂŁo tem de modo nenhum um rasto expositivo comparĂĄvel a outros artistas que vĂȘm trabalhando com materiais fĂlmicos. Por outro lado, seria surpreendente na radicalidade do seu discurso um tal selo de ârepresentação nacionalâ, colocando-se ele, como se coloca, numa hĂbrida categoria de margem. Enfim, tal hipĂłtese seria parte de um processo negocial, ao cineasta, ao tal cineasta tĂŁo Ă margem, sendo necessĂĄrio um apoio estatal para reaver a produtores, ou a um produtor, a posse de negativos de filmes seus. 6 â Por todas estas razĂ”es, a escolha de GusmĂŁo e Paiva, dupla que Ă© sem dĂșvida das mais importantes entre os ainda emergentes artistas portugueses, Ă© uma opção de contingĂȘncias, com o interesse de vir interromper a fila de candidatos mais Ăłbvios em função de currĂculos mais estabelecidos, mas criando para eles prĂłprios o imenso risco de os categorizar como âfavoritos do poderâ, o que de modo nenhum a sua obra deixava antever. 7 â Todo este processo foi por isso demasiado obscuro para se enquadrar na desejĂĄvel mediação da excelĂȘncia e da singularidade em regime democrĂĄtico. Augusto M. Seabra www.letradeforma.blogs.sapo.pt |