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EDUCAÇÃO SENTIMENTAL. A COLEÇÃO PINTO DA FONSECAJOANA CONSIGLIERI2018-11-17Os efeitos do gosto, tomados na sensibilidade, consistem em harmonizar as forças sensíveis e espirituais do ser humano, juntando-as numa íntima aliança. Schiller, Friedrich (1994). Sobre a Educação Estética do Ser Humano numa Série de Cartas e Outros. p. 105.
Se recordarmos a arte contemporânea, damos conta de múltiplas experiências estéticas muito díspares entre si, tais como o belo, o sublime, a tragédia, o horror, a vida ou a morte, bem como uma série de vivências e estilos que estejam profundamente afins ao respetivo criador, como o pensamento, a ideia, a emoção à cor, forma, luz e sombra. Educação Sentimental. A Coleção Pinto da Fonseca reflete o diálogo entre duas visões e experiências estéticas, que se cruzam e se entrelaçam intimamente entre a vida e a cultura. Apresenta-se uma coleção de autor, o colecionador António Pinto da Fonseca, pai; e do curador, Victor Pinto da Fonseca, filho, que também participou como autor nesta seleção exposta na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva. Esta exposição nasce desse encontro entre a vida e a cultura: o gosto dos colecionadores, pai e filho, que se fundem pela cumplicidade de serem amantes da arte, o que, em certa medida, provocam no espectador um sentimento desconcertante por escapar a este quem determinou este “corpo-estético” constituído por uma série de obras de arte inéditas da História da Arte portuguesa. Educação Sentimental surge da necessidade ou de uma «jornada pedagógica» para os seus filhos, enquanto valor estético ou enquanto aprendizagem de uma consciência crítica a partir de uma obra de arte, evidenciando uma paixão pela cultura e pelo conhecimento. Desta forma, o título alude ao romance do escritor francês Gustave Flaubert, A Educação Sentimental, de 1869, tal como afirma Victor Pinto da Fonseca. Todavia, não se trata de uma correspondência narrativa, nem de uma citação do conteúdo literário, mas sim, de um reflexo do que se poderá entender uma «educação sentimental», na medida em que o motivo educacional permitiu o despertar para outras dimensões inesperadas do ser. Relembramos, desta forma, o que afirmou Friedrich Schiller, filósofo germânico (1994, p. 31), sobre educação estética: «(…) uma vez que é pela beleza que se caminha para a liberdade.». Nesta exposição, misturam-se as vozes e as memórias que formam a sensibilidade estética, o belo como a constante descoberta do universo interior. Molda-se o pensamento crítico, o sentimento e a emoção, cujo eu é caracterizado pela contemplação de uma obra de arte, num descortinar do conhecimento. Gera-se um caminho altruísta, o amante da arte, uma jornada de um filantropo. Esta vontade ímpar intimista entre o “eu-sujeito” e a “obra de arte-objeto” origina laços com o outro, o artista. O amante da arte aprecia o mundo, ideias e pensamentos. A obra de arte passa a ser o mediador da vida. Usufruímos através dela múltiplas experiências sentidas por quem a fez, estimulando elos sensitivos, cujas ideias se produzem por um ato educacional da beleza. Numa construção emocional e racional de um olhar, contemplamos quem sentiu o valor estético de uma obra de arte. A vida e a cultura sofrem mutações por quem a vê, enquanto fenómeno real. Através da obra de arte, o ser humano reflete o que pensa, questiona e duvida. Vivencia mundos e sonhos, virtudes e defeitos, beleza e feio, drama e morte. Educação Sentimental emerge desta fusão, memórias e vivências que determinam o ser. Através da sensibilidade, olhar crítico e gosto pela obra de arte, diferencia-se o estado do ser no mundo. Apreciamos, assim, cerca de sessenta obras de trinta artistas portugueses consagrados, das décadas de 1960 a 1970, agrupados de modo a orientar o olhar do espectador, de maneira a educar-nos também. Percorremos as diversas salas, descobrimos a «forma-dupla» de ver quando visitamos as obras de arte. Num passeio pela coleção, viajamos através de uma «educação sentimental». Vemos, sentimos e questionamos através das obras de arte. Partilhamos o conhecimento e a emoção. A escolha é muito diversificada, constituída por grandes “nomes” da História da Arte portuguesa. Salientamos, Helena Almeida, que se situa na segunda sala, numa das suas séries que nos chama mais a atenção, em particular, por continuar a ser uma das obras de arte que questiona a própria natureza da arte. Tal como afirma Delfim Sardo (2003, p. 9): «Falar do trabalho de Helena Almeida é uma tarefa difícil, porque a corporalidade, a relação com o espaço e a singularidade do seu processo criativo colocam interrogações e questões acerca da própria natureza do que vemos: trata-se de fotografia, ou de desenho por via de um diferente suporte?». Joaquim Rodrigo coloca-nos numa outra dimensão, em que, através de uma precisa investigação de regras compositivas sobre a «terra», levanta questões de ordem política e social em “mapas codificados” e memórias subtis, cujos sentidos vibram em figuras de expressão étnica. Desta forma, recordamos o que afirmou o pintor: «pintar o certo», pois era a sua maior preocupação para criar um novo sistema. Quase na última sala, temos Álvaro Lapa. “Educa-nos”, por construir uma linguagem reflexiva do pensamento plástico. Entre a literatura e a pintura, filosofia e arte, propõe outras formas de pensar em arte. A paixão por uma obra de arte também anima o sentimento, tal como revelou Victor Pinto da Fonseca. Numa composição espacial, o movimento das pinceladas soltas rompe a tela com o enaltecimento da figura de S. António, de Júlio Pomar. Estabelece um elo entre o amante da arte e a pintura, vibrando no seu íntimo como um espelho de si próprio. Num olhar mais amplo, o espectador contempla várias linguagens que continuam a surpreender-nos. Todavia, temos de dar «livre-arbítrio» ao público para a descoberta da experiência da «Educação Sentimental», apresentando apenas pequenos detalhes para aguçar a curiosidade. E fazemo-lo passeando pela abstração não figurativa, acentuada em linhas, com Vieira da Silva, pela abstração-figurativa, em que a cor sublinha as formas com Arpad Szenes, pelas memórias que quase assumem uma melancolia, cujas figuras femininas se encontram em espaços cenográficos como em Menez, e pela figuras que se cruzam em narrativas e temáticas provocatórias, num ordenação caótica, revelando, deste modo, o inconsciente da pintora Paula Rego. Vemos também os surrealistas Dacosta e Vespeira, que regressam à sua atividade de artistas, dando lugar aos seus mundos imaginários, novas linhas imagéticas em memórias desprendidas, e as figuras emblemáticas de José Guimarães, que se cruzam transveralmente entre mundos e culturas. É preciso destacar ainda, o registo da sombra, enquanto forma imaterial para questionar a fisicalidade dos objetos, do espaço e do corpo humano de Lourdes Castro, ou de outros artistas do grupo KWY, que mobilizam linguagens e outras soluções poéticas conceptuais para o mundo da arte portuguesa. Além do mais, exaltam-se grandes superfícies de cor bidimensional, que delineam corpos em cores fortes como em Jorge Martins; e, num registo autobiográfico conceptual, encontramos uma fotografia em grande formato, a preto e branco, de Jorge Molder. O espectador desfrutará com prazer uma jornada de dois amantes da arte, onde descobrirá outras obras de arte, nesta coleção singular da História da Arte portuguesa.
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EDUCAÇÃO SENTIMENTAL. A COLEÇÃO PINTO DA FONSECA Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva |