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FUCKIN’ GLOBO 2020 NAS ZONAS DE DESCONFORTOADRIANO MIXINGE E TILA LIKUNZI2020-03-24
O Fuckin’ Globo é conhecido por desafiar expectativas de ordem e conforto, e o momento vulnerável que vivemos lembra que a vulnerabilidade nos desarma e nos deixa mais atentos e sensíveis ao que se passa em nosso redor, exigindo que nos adaptemos às situações e não sejamos passivos ou fatalistas perante o desconhecido e o inesperado. Na verdade, aqueles que se arriscaram e visitaram o hotel abandonaram, por algumas horas, os seus medos e incertezas para de mente e espírito aberto vivenciar o poder transformativo da arte.
Fotografia: Cortesia de Osmar Edgar Silverio.
E não é difícil reconstruir o percurso que fizeram: a viagem começa no corredor do primeiro andar, à direita, onde a instalação de Toy Boy sugere que o conforto pode estar em qualquer lugar ou em sítio nenhum. Abrindo um caminho no silêncio das nossas dúvidas, Silence convida-nos a explorar corporalmente – apalpando, se encostando ou vendo – onde se encontra este lugar. Uma performer com burka entre aquelas almofadas é das imagens que nos ficarão na retina. À esquerda, no mesmo andar, um personagem se debate com a ausência de narrativas internas na curta-metragem Enóquio que não tinha coração de Ery e Evan Claver, que mergulha nas profundidades da alienação mental, retratando as experiências de um jovem desamparado que erra, sofre e se redime na atmosfera frenética das altas horas da noite. No segundo andar, a primeira paragem é no átrio, ante a instalação de Mussunda N’Zombo, onde, ao longo dos 7 dias da exposição, o espectador poderá rodear a proverbial ‘gaiola dourada’ e acompanhar a encenação de todos os estágios do encarceramento de um dirigente corrupto em Nguvulu, Marimbondo. Desafiando as nossas percepções do bem e do mal, personificando os vícios, o absurdo, o paradoxo, a soberba e a masculinidade tóxica do mundo dos homens poderosos, a performance vocaliza a mentalidade voraz dos acusados, disseca o tratamento judicial desses casos e a volatilidade da opinião pública perante os ‘prisioneiros de luxo’. Em seguida, o espectador pode escolher se vai para a direita ou para a esquerda. À direita, o percurso inicia no quarto 223, onde Melancholia, a delicada instalação de Keyezua, aborda a questão da sexualidade feminina durante o acto sexual, olvidada pela primazia do pénis, que domina o acto em detrimento do prazer sexual da mulher: a sua instalação é uma metáfora subtil que podemos não entender imediatamente. No 224, Yola Balanga encena silenciosamente o acto de lavar poucas horas antes a roupa escolhida como ‘a eleita’ para vestir, relativizando as propagandas governamentais ao Sukula Zwata (Lavou, Vestiu), usando o acto e o tanque de lavar roupa como meios de crítica às desigualdades sociais e o fracasso das políticas do governo para a sua resolução. Mas é, sobretudo, a presença dos tanques de lavar de cimento nos quintais dos bairros suburbanos ou, muitas vezes, nas varandas dos prédios da cidade, o elemento que contém a memória da vida de muitas famílias.
Yola Balanga, Sukula Zwata. Fotografia: Cortesia de Osmar Edgar Silverio.
O itinerário continua no quarto 225 onde Thó Simões, em resposta à pandemia global, está de quarentena, comunicando-se com o público através de gestos e mensagens escritas em folhas de papel, procurando a cura da doença num ambiente quase hermético do qual saímos para respirar, sentir, ouvir e ver, no 227, a curta-metragem e instalação de Indira Grandê, Catumbela das Conchas, que nos transporta para a história de uma criança que se perde e cuja odisseia, até ser encontrada, se interliga com os trajectos do comboio e o imaginário das tradições, sons, natureza e história da região da Catumbela, levando-nos a reflectir sobre os nossos próprios caminhos e destinos e o destino do país, onde poderemos todos estar perdidos e achados. Entre as palmeiras e a areia vermelha, a criança fica encalhada entre uma perca que até poderia ser a de um turista e a evidência de que não seria assim tão difícil que, perdido e desamparado, a sua vida se transformasse em pó. No 228, a instalação de Rui Magalhães em Paralelo Zero examina distopicamente os bairros da nossa cidade, que desumaniza pelo betão e se alimenta da incompatibilidade entre a avidez por recursos e a sustentabilidade da vida humana, produzindo fenómenos sociais e urbanísticos que perpetuam a fragilidade das mentes e a colonização dos corpos. E, ao desfrutar da instalação deste artista, as garrafas de cerveja à volta das suas imagens terminam sendo indícios do carácter devastador do alcoolismo, na sociedade angolana. No quarto 229, a vídeo-instalação de Verkron propõe uma saída: uma revolução psicológica baseada no desconhecido - desconhecido esse que se materializa nas nossas mentes quando largamos a percepção de habitarmos uma única realidade e aceitarmos como realidade INCVBVS, que projecta a nossa própria interpretação daquilo que vemos: é a realidade ritual vivenciada na hora. O espectador intrépido fica situado, então, entre a consciência da omnipresença da vídeo-vigilância e o pesadelo ao constatar de que tudo poderá ser gravado, retransmitido e vivido, mais além do passado, do presente e do futuro que definiam antes a sequência do tempo. E, na senda de explorar realidades, é imperativo parar no 230, na instalação de Muamby Wassaby, WALÁLÁ S.A. - o espanto causado pelos cofres vazios depois do boom económico impulsionado pelo preço do petróleo que ditou o surgimento de um todo-poderoso e impune ‘empresariado das sociedades anónimas’, transfigurado eventualmente em desvios massivos do erário público, dantes referidos por ‘acumulação primitiva de capital’, hoje por ‘crimes económicos’ - uma prática que o artista avisa ser… viral. A cruz que o artista monta com caixas do Banco Nacional de Angola para transportar dinheiro traduz a ironia e o desconcerto do cidadão. As caixas transformadas em bancos de uma congregação convidam a um momento de reflexão sobre as ‘ordens de saque’. À esquerda, o espectador começa no quarto 222, onde a instalação de Flávio Cardoso, ALiEN, faz um diagnóstico da ‘mundividência eurocêntrica mediada pela televisão, por computadores e pela Internet’ em que a comunicação audiovisual da noite, dos espaços vazios, fachadas cintilantes, estruturas metálicas, superfícies de betão e iluminação néon edifica uma narrativa distópica que visa questionar a ‘sustentabilidade dos mecanismos vigentes de globalização’ num país ‘distanciado do seu potencial económico e da sua própria diversidade cultural’. Avança para o 231, onde Kiluanji Kia Henda com O Estado da Nação, o artista que se vai assumindo cada vez mais como “um político”, mostra-nos um quarto, literalmente, de “patas para o ar” como se, com isso, quisesse emular a ideia de desconforto, de disrupção e de permanente caos em suspensão, seguido por Iris Buchholz Chocolate no quarto 232, que transforma as rotas e relatos das viagens de um etnólogo alemão entre os povos Ngangela, na era colonial, numa instalação e performance iluminada que executa rituais para curar os espíritos e a história em kuthaka mahamba, reencenando práticas femininas e almejando a partilha e descolonização de conhecimentos. São belas e impactantes, as imagens das mulheres a passearem pela cidade, que ela privilegiou para a sua performance, com as suas coroas iluminadas como se não houve violência doméstica, nem disparidade social e económica de géneros em seu desfavor: carregam luz na cabeça como antes outras carregaram balaios ou como todas, habitualmente, carregam vidas. No 233, Pedro Pires diz ‘NÃO’ em Sim, ressurgindo o valor e o poder único da recusa na esfera social e política, num protesto implícito contra a habitação precária da vasta maioria das populações urbanas. Mas, é na incomodidade e na incapacidade de perceber o que vemos, de saber exatamente onde estamos, e onde vivemos, que essa recusa se transforma em manifesto: negar as evidências é, então, uma declaração simplesmente retórica, nunca a afirmação da resignação e do abandono. As letras passam a ser uma escultura composta por vários módulos, um objeto com que gozamos fruindo com ele. O espectador termina no quarto 219, onde Mestre Kapela conversa com a tela e o público em Cidade Poto Poto, revivendo os seus encontros mais marcantes na capital, e os anos na UNAP, pelo olhar e pincel da sua escola de arte preferida, que moldou as práticas e técnicas da sua longa e prolífica carreira. A instalação e a performance - em que Kapela pinta ao vivo - constituem o único diálogo intergeracional desta edição, um diálogo entre as duas escolas e num apelo ao pé de igualdade, na arte contemporânea angolana, das pinturas feitas nesse estilo, que são, largamente, relegadas à categoria de artesanato produzido para turistas. Porém, ao que nos parece, desta vez, as pinturas de Kapela têm algo diferente: documentam o seu encontro com alguns dos criadores angolanos mais importantes do panorama artístico e cultural dos últimos dez anos. Se o espectador intrépido visitou esta 6ª Edição do Fuckin’ Globo e passeou por todos os quartos do hotel, então, desfrutou da arte num mundo em tempo de coronavírus. Neste momento, em todo o mundo, a situação é absolutamente crítica: tudo está suspenso, desde as rotinas da vida de um cidadão comum aos sistemas económicos, políticos e sociais, passando pelas práticas culturais, ou a noção de propriedade privada, o medo apossou-se de tudo: do capitalismo tardio, de quem decide quem vive e quem morre, do pós-colonialismo imobilista e corrupto, do estado das Nações e do conforto, do aqui e do agora, da quarentena e da prisão. O que nos dá medo, tanto medo, nos confina e nos paralisa, são os espirros, as superfícies que tocamos, a proximidade do outro, não importa se é nosso ou se é parte do que resta do exotismo. Precisamos sobreviver ao caos, nem que for como sugere Jacques Attali, optando por uma economia de guerra: estamos a correr contra o tempo, contra a desinformação, contra a nossa ignorância e contra os erros da civilização que construímos, num momento em que isolar-se, fechar as fronteiras não é a expressão de recolhimento, mas sim a de salve-se quem puder. Neste momento, estamos todos nas zonas de desconforto: só há lugar para a distopia e ao conformismo de que todas as glórias do mundo podem esfarelar-se, ao mínimo “toque” de um vírus.
Adriano Mixinge e Tila Likunzi |