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TEORIA DE UM BIG BANG CULTURAL PÓS-CONTEMPORÂNEO - PARTE IISÉRGIO PARREIRA2020-12-29
[A primeira parte deste artigo pode ser lida aqui]
Foi em março e abril de 2020 que tivemos oportunidade de presenciar o universo das artes a reagir freneticamente na procura de soluções para dar resposta ao confinamento forçado pela pandemia da Covid-19. Da implosão involuntária inesperada, reemergiu um novo universo cultural e artístico, na grande maioria dos casos e numa fase inicial, frágil e incerto; com o passar dos meses, cuidadoso e realista, ou noutros casos, assustado, descuidado e em perpétua negação. Nove meses depois e num momento em que a vacinação mundial contra o vírus dá os primeiros passos, somos capazes de fazer uma análise das consequências deste big bang cultural, repleto de ideias e soluções, e questionar, que mundo cultural desejamos ter num futuro próximo? Que sequelas nos deixa o ano de 2020? O que é na verdade o tão desejado regresso à normalidade? Durante esta catástrofe planetária, foi muitas vezes penoso observar o grau de negação das instituições e agentes culturais perante o óbvio. A nível mundial, foram diversos os casos e exemplos de sucesso e insucesso, daqueles que ultrapassaram rapidamente a fase de choque para uma fase de aceitação e outros que ainda se mantêm num incompreensível espaço de negação. Durante este processo universal de reações diferenciadas, conseguiu-se entender o quão importante e crucial é a mediação governamental e política das nações, e o impacto que a liderança pode ter nas sociedades ao nível da própria sobrevivência do ser humano. Tentar entender este processo, em curso, é certamente uma tarefa difícil, mas fundamental para o encontro de uma orientação futura alicerçada na segurança do indivíduo, das comunidades, e da sociedade em geral. Antes de continuar, gostaria de encerrar a discussão do questionamento da realidade: a pandemia é real. A pandemia da Covid-19 até a data já matou mais de 1.8 milhões de pessoas e infetou mais de 84 milhões. As estatísticas e os números são reais, inquestionáveis, e por fim, o universo diário em imagens é fatual e verossímil. Se está a ler este texto e questiona a realidade, convido-o a redirecionar a sua energia para algo diferente, de temática fantástica, num registo ficcional imaginário, com um guião ajustado a inseguranças crónicas. Esta pandemia de um vírus respiratório mortal, levou-nos a questionar a essência do ser humano, ente predominantemente social, fortalecido pela comunicação e interação com o outro. Sendo-nos negada essa condição basilar de existência, o espaço público de interação artística, entenda-se, com obras de arte ou agentes criadores, teve necessariamente de ser reinventado. Este processo em muitos casos ainda se encontra em curso. Apesar disto, a arte e a criação artística em momento algum cessou. O criativo não findou atividade, não bloqueou o processo, e em muitos casos intensificou a produção. Este fato não é questionável nem apresenta motivo de preocupação. Para um melhor entendimento e desenvolvimento da ideia, leia-se como espaços eminentemente públicos de apresentação artística os exemplos dos museus, galerias de arte, feiras de arte, teatros, cinemas, ou qualquer zona de encontro comunal para apreciação de criações artísticas; sejam estas de obras de arte inanimadas ou humanais. Independentemente da evolução da imunização da população mundial, as experiências nestes espaços mudaram indeterminadamente, ou pelo menos deveriam ter mudado. É perfeitamente inteligível que esta metamorfose tem e vai continuar a ter um impacto na sobrevivência do espaço cultural comunal, e das atividades primeiramente alicerçadas nas receitas provenientes do espetador presencial da atividade criativa. No entanto, negar a “evolução” natural da ocorrência, em nada vai beneficiar o consumidor ou o criativo, e é precisamente nesta equação que atualmente se identificam os casos de algum sucesso e insucesso no sector. Quando pensamos num museu ou galeria, espaços de apreciação de objetos artísticos maioritariamente caraterizados pela ausência de contato ou interação humana, o processo revela-se mais simples na restituição de um “normal”. Visitar um museu continua a ser uma atividade manifestamente segura. No entanto, esta tipologia de espaços, em muitos casos, não fornece ao visitante o incentivo básico à ação. O que pode parecer uma complicação do processo da visita, é um muitos casos determinante na angariação ou não, do visitante. Muitos espaços da tipologia do museu instituíram o agendamento da visita / reserva de lugar. Este simples ato de controle revela um entendimento por parte do promotor da necessidade de outorgar ajuntamentos e respeitar o espaço físico de segurança do visitante. Não é hoje minimamente satisfatório que o espaço “museu” simplesmente comunique que respeita ou impõe normas de segurança. Estes espaços têm necessariamente de implementar, com visibilidade, a execução das normativas de segurança. Este processo em nada é complicado ou se manifesta de complexa implementação; muito pelo contrário. Aquilo com que nos deparamos hoje, como resultado da pandemia, não descurando a validade da perspetiva menos otimista, é antes de mais uma oportunidade. Por exemplo: o espaço “museu” que hoje está vazio, deveria estar a implementar e otimizar os seus sistemas de promoção, pré-venda online, que lhes proporcionaria uma ideia mais precisa na antevisão da afluência e receitas. Esta ideia estende-se a todas as ações ou eventos que estes mesmos locais possam anteriormente ter oferecido e que hoje não mais fazem sentido. Incentivar ou promover uma inauguração ou abertura de um evento não é só irresponsável, como não é seguro, nem encorajador ou atrativo para o visitante; eu iria mais longe e diria que é muito pouco inteligente. Divulgar um evento com nota de rodapé de cumprimento forçado de imposição de normas à chegada ao local, é simpresmente estúpido e desencorajador. Os tempos mudaram, o público na sua maioria já demonstrou que exige segurança, negar essa mensagem é prolongar a dificuldade de progressão e boicotar a existência da “instituição” cultural. Este mesmo público, garanto de sobrevivência e amante da arte, não deixou de seguir a criação artística nem os criadores de arte – "Nós continuamos aqui!”. O que a audiência comunicou e continua a comunicar é precisamente o oposto. Embora todos ambicionemos o regresso a “uma normalidade”, essa teoria está a ser refutada pelo passar do tempo, pelas ações do interveniente informado, que se traduzem numa expressiva ausência de presença - nunca de interesse. Gostaria de dedicar algumas linhas desta reflexão ao hashtag mais irrefletido da história dos hashtags que vem no seguimento da consideração anterior, #aculturaésegura – lançada pela Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos. Em resposta a este hashtag, uma vez mais, estão as estatísticas. E regressa-se um pouco à ideia de responsabilidade e capacidade de ação e implementação dos líderes da ideia ou conceito promovido, neste caso específico, a ideia de segurança. Dizer que uma laranja é uma banana, não vai fazer com que essa laranja passe a ser uma banana pois a realidade é que é uma laranja. A cultura não é segura, enquanto não for segura e esta constatação não tem um caráter individual ou pessoal, é simplesmente circunstancial e fatual. Claro está que ir a um espetáculo durante uma pandemia de um vírus respiratório mortal que se transmite pelo ar, num espaço fechado, onde nos é solicitada a permanência num lugar/zona de contato, por um período considerável, sem que esses espaços tenham otimizado ou adaptado os seus sistemas de ventilação/climatização, em função de uma nova realidade, é tudo menos seguro. Se a ideia é recuperar a experiência estética coletiva, mesmo que faseada ou controlada, o processo tem antes de mais que ser responsável e realista, para então se revelar eficiente. Incitar o ato, sem responsabilidade na consequência, é uma ação que só prejudica o setor em questão, independentemente da área, e não recupera a audiência responsável e informada. Hashtags à parte, a responsabilidade na restituição da cultura e acesso seguro a esta é de todos. Não é só o agente promotor, líder cultural ou político, entidade de acolhimento, “casa” cultural, que está a ser privada da subsistência, aliás essa visão é redutora, limitativa e egoísta. O espetador presencial também se encontra só. A audiência participativa está abandonada. O assegurar da restituição é uma ação coletiva e deve ser uma intervenção alicerçada na boa prática e considerar todas as partes. Uma vez mais, há que entender como sair coletivamente desta cratera criada pela implosão deste Big Bang Cultural Pós-Contemporâneo. Parece-me, antes de mais, que o início deste processo em muitos dos casos ainda está por começar, e não terá início enquanto não sair de um processo egoísta de negação crónica. Este procedimento, nalguns casos em fase de aceitação e ação, noutros de negação e ignorância, vai ditar o sucesso e sobrevivência dos atores artísticos e culturais a curto e médio prazo. Numa perspetiva mais científica e pragmática, há que respeitar e acreditar no método involuntário, que é tão simples quanto nos guiarmos pelo real, logo, pela ciência da estatística. Trata-se em muito da sobrevivência de um setor, uma restituição que tem de ser reinventada, de forma inteligente e informada, não só na apresentação, mas acima de tudo nas formas de financiamento e subsistência: uma janela “escancarada” de oportunidade. Se a ideia é a sobrevivência, enfrentar a oportunidade não é uma escolha, mas sim uma imposição urgente. Como já mencionado, foi e continua a ser crucial a responsabilidade dos líderes. Se numa perspetiva política direcionada a altos dirigentes, somos capazes de tecer uma análise responsável de opinião crítica construtiva, então, esse mesmo discernimento é-nos exigido com as nossas comunidades artísticas próximas e se necessário destituir da liderança as “cabeças” irresponsáveis, geradoras do fantástico e ilusão, incapazes de olhar além por esta janela de oportunidade, e que em muitos casos representam apenas medo e por fim a morte da “instituição” cultural. Há, à data de hoje, inúmeros exemplos do que pode ser feito, do que é realista e copiável para cada uma das sociedades: o razoável exequível, assim como o impossível e utópico. Os exemplos chegam-nos dos países mais ricos e dos menos ricos, dos mais “democráticos” e de outros menos livres. As Feiras de Arte que se revelaram em março e abril deste ano, em Nova Iorque nos Estados Unidos ou em Maastricht na Europa, como eventos de super contágio da Covid-19, já entenderam que o caminho não é seguramente a imposição do mesmo modelo. O modelo contemporâneo da mega feira de arte acabou. Na verdade, o modelo já era um formato odiado, no entanto, comercialmente muito eficiente. O ódio ao formato estava instituído assim como estava instituída a resignação e romaria dos agentes em torno deste. As feiras de arte mundiais, sem grande alternativa, agarraram a oportunidade. A redefinição do modelo contemporâneo destes eventos está em curso e a sobrevivência destes, depende do sucesso na reinvenção e implementação. Uma vez mais, passa pelo bom senso e perspicácia dos líderes neste segmento. Há que ler antes de mais as respostas das audiências e dos intervenientes, que tal como numa votação eleitoral democrática, têm-se expressado de forma inequívoca e manifestamente clara. Ainda na área do mercado e comércio de arte, houve setores que na impossibilidade da congregação comunal, conseguiram potenciar a ocasião com a oportunidade, com inesperado sucesso, como são o caso das casas de leilões. Numa operação sem precedentes, impulsionada pela tecnologia, as grandes noites de leilões continuaram, num formato planetário com simultaneidade. As grandes capitais do “comércio”, Nova Iorque, Londres e Hong-Kong, juntaram-se virtualmente num único espaço e inauguraram uma nova era em que a transmissão em direto (live streaming) revelou uma experiência até à data alheia ao público mais vasto. As vendas em leilão apesar de algumas quebras, conseguiram registar recordes nunca vistos e ao contrário das expetativas solidificaram a certeza do garante do mercado. No entanto, as feiras de arte que se converteram em modelos unicamente virtuais ou com realidade aumentada, não só se transformaram numa experiência indesejada como não reportaram o sucesso dos eventos presenciais – há a denotar que os números finais ainda não são completamente conhecidos. Mas, numa perspetiva de espectador visitante, estes eventos tornaram-se desinteressantes, apesar de gratuitos, transformando a questionável experiência estética presencial da feira de arte, numa experiência estética ausente a roçar o Peep Show de objetos artísticos em que poucos são os que conseguem aceder e retirar algum prazer do objeto de desejo. Para 2021, muitos destes eventos já reformularam o formato físico de implementação, reduzindo antes de mais a dimensão, repensando os acessos e a logística, seja esta da perspetiva dos organizadores e participantes, ou da audiência. Este processo de reequacionamento realista do acontecimento é a única forma exequível de planificação futura no momento que atravessamos. Mais, demonstra eficácia, pertinência, evolução e crença nos projetos que lidera. É esta atitude positiva, que embora aparente na generalidade um redimensionamento pela negativa dos eventos, que vai fazer com que estes subsistam ao momento. No que respeita às exposições virtuais, foram muito poucos os casos de sucesso, embora, acredite, que a tendência seja para que melhore. Muitas das galerias comerciais já tinham sites bem preparados para receber viewing-rooms que em muitos dos casos pouco acrescentavam aos sites “normais”, mas que quando bem construídos permitiam o acesso a informação selecionada com boa curadoria e que oferecia ao visitante uma experiência abrangente e completa da obra de um ou vários artistas. Uma vez mais, o lado positivo esteve em quem conseguiu visionar uma oportunidade: muitos agentes que ainda não tinham plataformas online “funcionais” foram obrigados a inaugurar a sua presença ou otimizar a existente, beneficiando o consumidor cultural e de arte. Escusado será dizer que quem nada fez neste campo manteve-se na retaguarda e candidata-se a uma merecida desclassificação, ou aniquilação, do panorama cultural e artístico. É indubitavelmente relevante reiterar que o momento que ultrapassamos é global, uníssono e involuntário. É também fundamental relembrar que todos, coletivamente, somos simultaneamente, espetadores do momento, independentemente dos outros cargos que possamos acumular enquanto agentes: liderança cultural, criadores, colaboradores, “atores”, produtores, gestores, etc. As nossas ações na restituição de uma “normalidade” têm antes de mais de partir de uma leitura de espetador coletivo para só assim podermos, potencialmente, desenhar uma solução de sucesso enquanto agentes. Ignorar ou negar o processo demonstra tamanha estupidez e ignorância, e, como já referido, pode condenar o sucesso ou sobrevivência da “instituição” cultural, negligenciar uma participação segura do espetador ou afetar irreversivelmente artistas e criadores. A frustração atual não é exclusiva deste ou daquele interveniente: a frustração é coletiva. É também coletiva a janela “escancarada” de oportunidade, assim como é óbvio que vão vingar apenas aqueles que se guiarem por uma leitura realista do momento. O futuro pós-contemporâneo não é exclusivamente online ou virtual. No entanto, não podemos negar que muito provavelmente avançámos em três meses o que se expectava acontecer num espaço de dez anos. O consumidor, independentemente da área de consumo, viu-se obrigado a instruir-se na aquisição de conteúdos de forma remota. O consumidor espetador cultural aperfeiçoou e adaptou a sua aptidão para o consumo e satisfação remota de experiências, e comunicou, na ausência de liderança, que o seu retorno ao espaço comunal não é nem será incondicional. O futuro da cultura não é seguramente, unicamente caraterizado pela experiência presencial remota, mesmo porque esta contraria em grande parte a vontade de um ser humano intrinsecamente social. Mas, este ser “animal social” conquistou num curto espaço de tempo anos de conhecimento e oportunidade no universo remoto e virtual. Uma vez mais, negar este acontecimento é assinar em muitos casos uma certidão de óbito da “instituição” cultural que se representa, independentemente da área, seja esta do cinema, espetáculos (teatro, dança, performance, pluridisciplinares, outros), festivais de áreas específicas ou multidisciplinares, museus, galerias, bibliotecas, e tantos outros. O futuro é hoje e está há alguns meses em live streaming, e não nos ligarmos a esta emissão é prolongar um ato autodestrutivo de exclusão. Hoje, não é uma opção esperar que a pandemia termine pois já temos todos os indicadores para entender o que nos vai ser solicitado amanhã. O ano de 2021 não vai devolver o que se perdeu em 2020. O presente ano e anos conseguintes vão solidificar o que se enunciou e só vão sobreviver os que já iniciaram um trabalho de conversão, adaptação e evolução. Não tenhamos ilusões, o futuro amanhã é hoje, e foi ontem.
Sérgio Parreira
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