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A CULTURA NÃO ESTÁ FORA DA GUERRA, É UM CAMPO DE BATALHAVICTOR PINTO DA FONSECA2022-07-31
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A Cultura serve para fundar a Consciência Ética
Uma Guerra que não é apenas sobre Poder e Território, mas também sobre Identidade Cultural Historicamente as colonizações avulsas que reivindicam obediência e território não são novas evidentemente. A história está plena de colonizações, guerras e invasões, desde o princípio. A novidade nesta guerra é que não é apenas sobre poder e território, mas também sobre o sentimento de cultura. O autossacrifício heróico do povo ucraniano, face à potência da Rússia, significa, primeiro que tudo, não prescindir da sua história e da sua identidade cultural, ou, literalmente, da sua cultura - com a Rússia a tentar activamente apagar a identidade nacional da Ucrânia, a literatura, a música, os filmes, as artes, os museus e os monumentos deste país são campos de batalha - e língua ucranianas. Não existe distinção entre a sobrevivência do povo e do território da Ucrânia e a sobrevivência da sua herança cultural.
Violência, Terror, Vontade Tal como os nossos antepassados, conseguiremos resolver qualquer problema, e toda a nossa história enquanto país indica isto. Vladimir Putin, no Dia da Rússia, 12/06/2022. É profundamente significativo que Putin tenha feito esta declaração ao povo russo no Dia da Rússia. Para Putin a força motriz principal da história russa é a vontade e aqueles que têm poder e vontade são capazes de triunfar. Não é de espantar por isso, que o discurso patriótico de celebração da grandeza da Rússia aponte, na prática, para o “Triunfo da Vontade” de Leni Riefenstahl. Simplificando, com Putin a invasão da Ucrânia autoriza-se a si mesma. O termo ‘Triunfo da Vontade’ deve ser entendido, aqui, referindo-se a um mundo russo, em que a Rússia eterna só pode ser experienciada e concretizada em todo o seu poder aceitando-se a crença que a cultura russa deve ser expurgada da civilização ocidental para se manifestar em todo o seu poder (o que verdadeiramente poucos entendem). É preciso que todas as pessoas que pertencem ao povo russo, incluindo supostamente os ucranianos, vivam da mesma forma, o “mundo russo”. Ou seja, um claro movimento de volta às origens ao mundo soviético. (E uma vez que não é uma revolução, mas uma restauração, é triste e deprimente em espírito - é uma colonização que tomou um rumo militar violento -, parece necessariamente ‘irracional’ na sua falta de consideração pela independência e liberdade da Ucrânia, na sua finalidade apocalíptica. Esta verdade é agora sabida por todos nós.) Mas voltemos à nação ucraniana: a nova geração ucraniana de Zelensky está familiarizada com toda a civilização e pensamento europeus: Pedir que a Ucrânia ceda o seu território em troca de paz é uma forma de rendição da consciência, de abrir mão do que há de diferente ou especial em cada um dos ucranianos. Não há ambiguidade no comportamento da Ucrânia em afirmar a sua soberania nacional: não vejo a consciência dividida dos ucranianos no que se refere a não capitularem. O anseio da América capturar esta guerra explica-se depois. A vontade da sociedade ucraniana em libertar-se da estrutura imperial soviética e pertencer ao mundo democrático ocidental vai muito mais fundo. (A Ucrânia precisa do dinheiro americano? — É verdade que precisa para continuar a combater pelo seu território e identidade nacional.)
Da Rússia Czarista a Estaline… e Regresso Em relação a 1917, começaremos por recordar, por lembrar, a verdadeira história da Revolução de outubro e, claro, a sua regressão para o estalinismo. Analisemos mais atentamente de um ponto de vista histórico como a colonização russa da Ucrânia emergiu a partir das condições iniciais do czarismo: a primeira coisa a ter em conta aqui é que a época de ouro da identidade nacional ucraniana não foi a da Rússia czarista (durante a qual a autodeterminação da Ucrânia como nação foi derrotada), mas a primeira década da União Soviética, quando foi estabelecida a sua identidade plena. “Até a entrada da Wikipédia acerca da Ucrânia na década de 1920 diz:
Esta “indigenização” seguiu os princípios formulados por Lenine em termos consideravelmente claros: O proletariado não pode senão lutar contra a retenção forçada das nações oprimidas dentro das fronteiras de um determinado Estado, e é exactamente isto que a luta pelo direito à autodeterminação significa. O proletariado deve exigir o direito de secessão política para as colónias e para as nações que “a sua própria” nação oprime. Caso não o faça, o internacionalismo proletário manter-se-á como uma frase sem significado e a confiança mútua e a solidariedade de classes entre os trabalhadores das nações opressoras e oprimidas será impossível. V.I.Lenine, “The Socialist Revolution and the Right of Nations to Self-Determination” (janeiro/fevereiro de 1916), Collected Works, Vol.22, Moscovo, Progress, 1966, p.147. Lenine foi fiel a esta posição até ao fim. Na sua última batalha contra o projecto de Estaline para uma União Soviética centralizada, Lenine defendeu, uma vez mais, o direito incondicional de secessão (neste caso, estava em jogo a Geórgia), insistindo na total soberania das entidades nacionais que compunham o Estado soviético. O que Estaline fez no início da década de 1930 foi, então, um simples regresso à política externa e nacional czarista (como exemplo desta viragem, temos o modo como a colonização russa da Sibéria e da Ásia muçulmana deixou de ser condenada como expansão imperialista e, sim, elogiada como a introdução de uma modernização progressiva que tinha posto em movimento a inércia destas sociedades tradicionais). Não é pois surpreendente que, em 18 março de 2014, Vladimir Putin enfatizasse a questão da relação entre a Rússia e a Ucrânia ao caracterizar aquele que considerou ser o maior erro de Lenine: Os bolcheviques, por várias razões - e cabe a Deus julgá-los -, acrescentaram partes substanciais daquilo que era, historicamente, o sul da Rússia à República da Ucrânia. Fizeram-no sem qualquer consideração pela composição étnica da população, e essas áreas, hoje em dia, constituem o sudeste da Ucrânia. Discurso do Presidente da Federação Russa de 18 de março 2014, disponível em en.kremelin.ru. A direcção que Putin já estava a tomar era clara, observando o modo como a ideia de dar autonomia às regiões, no final, levou à ruína da União Sovietica. Segundo ele, a seguir à Revolução socialista de 2014, foram os bolcheviques a causar dano à Rússia: Governar usando as ideias como ponto orientador é correto, mas só quando essas ideias conduzem aos resultados certos, e não como aconteceu com Vladimir Ilyich. No final, essa ideia levou à ruína da União Soviética. E foram muitas as ideias assim: dar autonomia às regiões, por exemplo. Eles puseram uma bomba atómica debaixo do edifício chamado Rússia, e essa bomba viria mais tarde a explodir. Lenine era culpado de levar a sério a autonomia das diferentes nações que compunham o império russo e, dessa forma, de questionar a hegemonia russa: Resumindo, a política externa contemporânea de Putin é uma clara continuação da Rússia czarista e da linha estalinista de sujeitarem nações não-russas ao domínio russo.
A necessidade de uma compreensão binária do mundo numa tentativa de traçar uma História Alternativa Por trás do imperativo de condenar o envolvimento do Ocidente nesta guerra, reside o fascínio pela tipologia do povo russo de modo a ver o mundo a partir de um ângulo habitual - como uma ficção moral -, que consideram visões corretas, mantendo-se uma particular distância em relação ao assunto, por meio da cobertura retórica que é a neutralidade. Técnicas de retórica política para compartimentar as coisas… o desejo de que um argumento extraído do contexto e arranjado possa sustentar praticamente a expansão militarista russa para afastar a ideia que a Ucrânia é uma nação e um estado separado; uma anestesia de modo a sentirmos cada vez menos a realidade dolorosa e horripilante do povo ucraniano, a ponto que as suas vítimas são invisíveis... E outra coisa na invasão russa: quando as pessoas voltam as suas mentes para a URSS, elas esquecem-se que era um estado socialista. A Rússia contemporânea é um país capitalista, um país movido pelo dinheiro. Ninguém quer voltar ao socialismo, incluindo a atual liderança russa. Aqueles que mantêm o passado czarista-estalinista vivo e activo simbolicamente - se a cultura ocidental for removida, a sabedoria divina do espírito russo brilhará com a sua própria luz - ignoram a constelação presente. A verdade é que Putin traduz uma nova versão das ideias do fascista psicológico que era Hitler. Não devemos temer identificar o autoritário Putin caracterizando os ucranianos como não-pessoas à semelhança do que Hitler fez com o judeus; o que foi o recurso de Hitler ao “terror” radical senão uma espécie de histeria, sinal da sua incapacidade de vencer; e não podemos dizer o mesmo de Putin? Esta é a lição que podemos aprender com Hitler hoje em dia. Moscovo será a capital simbólica do imperialismo, como antes foi Berlim, se preferirmos. (É um facto que agora estamos a lidar com uma explosão de violência irracional descontrolada que veio da Rússia.)
Recordar Em relação à herança imperial soviética, também começaremos por recordar, por lembrar, que na era soviética ninguém pedia às pessoas em Angola ou no Peru que vivessem da “forma russa”. Essa é a diferença entre a Rússia de hoje e a União Soviética, porque naquela época havia organizações e partidos comunistas em todos os países do mundo. A União Soviética queria que todos vivessem sob o socialismo. Era um conceito universal dirigido ao mundo inteiro. Naquela época, havia um impasse ideológico. Mas esse confronto era compreensível. Todos no Ocidente entendiam o que era o socialismo, que tipo de sistema económico era. Todo o mundo sabia sobre Marx, e Lenin e Trotsky também foram lidos. A ideologia comunista era compreensível e bem conhecida. Tudo estava claro. Mas o atual “caminho russo” não é universal. Em segundo lugar, não faz sentido para ninguém. É incompreensível até para o povo russo, do ponto de vista cultural, e ainda mais incompreensível fora da Rússia, porque ninguém entende o que é essa concepção da identidade etnocultural russa e do mundo russo. No caso do Islão, podemos apreender essa identidade, mas é simplesmente incompreensível no caso da Rússia. Que defesa dos valores tradicionais? A sua versão da sociedade - esses mesmos valores tradicionais e conservadores defendidos por Putin - é defendida por qualquer partido popular de direita conservadora no Ocidente que se oponha ao pensamento crítico, à imigração, ao aborto, aos gays, à ecologia e assim por diante. Esta é apenas uma concepção patriotica normal da Europa Ocidental. Não há nada especificamente russo nisso. Não vejo de outra maneira.
Ninguém entende o que a Rússia pretende alcançar Os russos iniciaram uma guerra com o Ocidente em território ucraniano, mas o objetivo da guerra não está claro. Qual é o objetivo? Por que fizeram eles isso? Qualquer explicação serve para as pessoas, em certo sentido. Mas não há explicação, ninguém pode encontrar uma. É impossível detectar qualquer razão prática em tudo isto. Não está claro como isto pode terminar. Não está claro qual é o objetivo e como ele pode ser alcançado. Contudo, mesmo que a invasão seja bem-sucedida, e a República Popular de Donetsk e a República Popular de Luhansk forem ocupadas e anexadas à Rússia, o que isso significaria? — A Rússia ficaria isolada do mundo inteiro. Não sabemos se será capaz de controlar esses territórios mesmo depois de vencer esta guerra. Viveria no meio de uma crescente repressão. E em algum momento, as pessoas cansar-se-ao disso. Aquilo que estou a sugerir é, na prática, a Ucrânia é demasiado grande para a Rússia actual. A única explicação é que é uma tentativa de traçar uma fronteira entre a Rússia e o Ocidente; além disso, uma fronteira que não será mais possível de atravessar. Não será uma fronteira no sentido militar, mas uma fronteira que tornará impossível para os ocidentais irem à Rússia vender mercadorias que corrompem a população russa, e para os russos virem para o Ocidente e aqui contactarem com ideias nocivas. Será uma fronteira entre o Ocidente e a Rússia ao nível da interação humana que ninguém gostaria de cruzar. Talvez por isso seja verdade, que esse confronto geopolítico entre a Europa Ocidental e a NATO, e a Rússia, que o regime russo vem tentando construir como base de um conflito real, ao ordenar a campanha militar na Ucrânia - “a desnazificação e a dismilitarizacao da Ucrânia, no sentido de haver ameaças à segurança russa” -, realmente é uma ficção russa, um argumento totalmente escrito por um sistema político de idosos (para além dos recrutas azarados), em que todos têm as mesmas coisas a dizer, todos parecem falar em moldes iguais, o que torna especialmente difícil vermos essas pessoas como indivíduos. É, isso sim, a Rússia a tornar-se vítima da sua própria invasão!
Escalar uma Montanha Alta A Rússia nada tem para oferecer à nova geração: a ausência de liberdade de expressão traduz-se em silêncio. Em público [na Rússia] não aparecem jovens a manifestarem-se pró-Putin e/ou antiguerra. Encontramos um sistema de abrigos seguros, de relações feudais - para resistir, para sobreviver. Eles sustentam-se, directa ou indirectamente. Sem jovens, não há nada de novo na Rússia. E, no entanto, lembro que as manifestações antiguerra foram um motor da cultura popular no final dos anos sessenta. A maior parte da cultura popular dos anos 70 – cultura hippie, art rock – baseava-se nesses símbolos de libertação e luta contra o regime norte-americano. Era uma situação revolucionária. Nada disso existe na Rússia. O que precisará de acontecer para que um corpo de arte e cultura cresça na Rússia em torno do que está a passar-se, em circunstâncias nas quais não podemos nem dizer a palavra “guerra” e sair para protestar? Ouvirmos diariamente clichés e ameaças ao melhor estilo da máfia siciliana, que as novas gerações deixaram para trás há muito tempo, pode explicar a razão de não encontrarmos jovens nas estruturas políticas da Rússia? Os russos sabem que estão contra a parede? Seremos capazes de compreender e avaliar o que os russos tinham em mente quando decretaram guerra à Europa? Viver na Rússia dói muito aos jovens, sem esperança de renovação geracional? É obsoleto lermos a “Ilíada”, “O Príncipe”, e os clássicos russos para conhecermos a natureza da obsessão pessoal de Putin em destruir e russificar a Ucrânia?
As Guerras Iluminam a maneira como o Homem se Vê Homero: sabemos através da narração da “Iliade” que durante os anos da guerra de Tróia se cometeram raptos, violações, assassinatos, roubos, torturas e todas as espécies de abusos, barbaridades e atrocidades. Não há novidade na guerra da Ucrânia hoje para nenhuma série de abusos que podem equivaler a “crimes de guerra” praticados pelos russos. Não temos hoje uma visão da guerra muito diferente dos gregos antigos: pelo contrário, a nossa visão contemporânea da invasão da Ucrânia é um prolongamento do conflito empreendido para a conquista de Tróia. Encontramos na “Ilíada” todas as espécies de abusos, barbaridades e atrocidades cometidas pelos russos nas áreas da Ucrânia que controlam, porque não encontramos diferença na natureza humana antes e agora, se olharmos bem para dentro de nós. A distinção entre o mundo antigo e o mundo contemporâneo consiste exclusivamente na evolução tecnológica estendida também à guerra, de modo a aumentar a eficácia no modo como matamos: o que isto significa é a utilização massiva de mísseis guiados por satélite, como se não houvesse amanhã. Não é pois, a Educação, a Cultura, a aventura do amor sexual e a esperança que valorizamos, mas questões de poder - mais precisamente aumento de poder. Sensibilidade: Alguém terá a mínima ideia de todo o sofrimento do povo ucraniano, e o que significa o extremo da atrocidade do lançamento de mais de dois mil mísseis no território ucraniano, com a literal destruição aldeia a aldeia, vila a vila, cidade a cidade, destruição dos campos de cereais e milhares de desalojados e refugiados (pessoas que já não têm controle sobre a sua própria vida)? O que sabemos de facto sobre a continuada evolução e intensidade destas experiências? Que noção temos da realidade social dos ucranianos? Que dose de mísseis pode suportar um país? A invasão é simplesmente uma atrocidade! Não tem outro significado. Confrontados com essa desumanidade, olho para os ucranianos e o que observo é coragem: pura e simplesmente admiro-os.
Uma História Diferente — Mostrar a coragem de outros é também uma oportunidade de os compreender. A cultura deve e tem de dar a sua contribuição para a total soberania das entidades nacionais. Se não lutarmos incondicionalmente pela cultura, que outro motivo haverá para combater? Defender os amigos, mesmo se forem “os colonizadores” a ficar no poder?
victor pinto da fonseca victor pinto da fonseca, é director da artecapital e da Plataforma Revólver - Independent Art Space.
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