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NICOLE BRENEZ - CINEMA REVISITEDDASHA BIRUKOVA2020-09-29
Nicole Brenez
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Nicole Brenez é uma historiadora e teórica francesa do cinema. É professora de estudos cinematográficos na Universidade Paris III e é curadora do programa experimental e de vanguarda da Cinémathèque Française. Nas suas publicações incluem-se: De la Figure en général et du Corps en particulier. L’invention figurative au cinéma (De Boeck Université, 1998), Abel Ferrara (Illinois University Press, 2007), Traitement du Lumpenproletariat par le cinéma d’avant-garde (Séguier, 2007), Cinéma d’avant-garde Mode d’emploi (Gendaishicho-shinsha Publishers, 2012), «‘We support everything since the dawn of time that has struggled and still struggles.’ Introduction to lettrist cinema» (Moderna Muset/Sternberg Press, 2015), Jean-Luc Godard: théoricien des images (La Camera Verde, 2015). Foi uma das editoras do filme Le livre d'image de Jean-Luc Godard. Com o cineasta Philippe Grandrieux, produz a colecção de filmes “Pode ser que a beleza tenha fortalecido a nossa determinação”, dedicada a cineastas revolucionários esquecidos ou negligenciados pelas histórias convencionais do cinema. O primeiro episódio, filmado por Philippe Grandrieux e dedicado a Masao Adachi, recebeu 3 prémios: Prémio Nova Visão, Cph: Dox, Copenhagen (Dinamarca), 2011; Grand Prix Expérimental - Essai - Art Vidéo, Festival Côté Court de Pantin (França), 2012; Grand Prix du Documentaire, Festival Internacional de Cinema de Resistência Cultural em Beirute, 2013.
Entrevista por Dasha Birukova
Nicole Brenez: Toda a minha vida idolatrei completamente o trabalho de Godard. Uma das minhas primeiras aulas na universidade foi sobre ele e claro que vi todos os seus filmes, passados e presentes. Mas nunca pensei trabalhar com ele ou mesmo sequer conhecê-lo. Foi um grande presente da vida. A primeira vez que nos encontramos foi exatamente assim, tal como conversamos agora, através de ecrãs. Foi em 2004 durante a preparação da sua exposição no Centre Pompidou com curadoria de Dominique Païni. Durante dois anos, com Alain Fleischer, também um grande cineasta e artista visual, director e fundador do Atelier National des Arts Contemporains “Le Fresnoy”, trabalharam no que se tornaria Voyage (s) en utopie (2006), sendo um dos princípios fundamentais a exploração da noção de “estúdio”. Concretamente, estabeleceram uma conexão técnica entre a Le Fresnoy, no norte da França, e o estúdio de Jean-Luc Godard em Rolle, na Suíça, para que os alunos da Le Fresnoy pudessem ver como Godard trabalhava diariamente. A ideia de Jean-Luc era permitir que os alunos o pudessem ver a trabalhar, como as pessoas teriam visto Michelangelo ou Leonardo da Vinci trabalhando no seu estúdio. A ideia era dessacralizar o trabalho do artista, para que vissem o quão concreto e também invisível este era, pois não se trata só de alinhar produtos tangíveis, na realidade é tudo sobre vida e cérebro e mãos. Alain Fleischer e Dominique Païni organizaram uma série de conversas entre Jean-Luc Godard e vários especialistas na sua obra, assim como colaboradores de longa data, por exemplo, Jean Narboni ou Jean Douchet, e eu fui também uma das convidadas. A primeira vez que Jean-Luc Godard e eu nos “encontrámos” foi através dessa série de conversas. Eu estava na Le Fresnoy e Jean-Luc em Rolle, e trocámos alguns diálogos, mas sobretudo, pedi-lhe para comentar algumas imagens sobre as quais eu tinha dúvidas. Eu estava completamente impressionada e muito tímida, e ele era o Jean-Luc Godard, fabuloso como sempre. Acho que ele gostou, porque me convidou para um preview do Film Socialism (2010). Não era a estreia do filme, mas sim uma projecção para três colaboradores. Eu fui, mas não ousei dizer-lhe nada pessoalmente. Mas um dia, o seu braço direito Jean-Paul Battaggia pediu-me para começar a trabalhar para o Jean-Luc, pois ele precisava ver alguns filmes raros para o seu projecto que naquela época ainda não se intitulava Le livre d'image (2018). À medida que fui progressivamente descobrindo filmes, fui oficialmente contratada para o projeto. Foi uma história magnífica. Durante todo o processo, que durou três anos, tive a absoluta felicidade e o privilégio de estar cada vez mais perto do projecto e do próprio Jean-Luc. De acordo com a minha própria experiência, descobri alguém que é absolutamente gentil, generoso, amigável, e não terrífico, zangado ou melancólico, como às vezes é descrito.
DB: Como poderia descrever a obra de Godard para quem não está por dento dos estudos de cinema? NB: A obra de Jean-Luc Godard é uma síntese do cinema. Se um dia, por algum desastre, todo o cinema desaparecer (como aconteceu aos dinossauros), através dos filmes de Jean-Luc, ou mesmo de uma sequência deles – como um qualquer resto de DNA –, as pessoas no futuro poderiam entender o que é o cinema, a sua riqueza e que tipo de questões ele despoletou. Este princípio de criar algum tipo de síntese, em cada parte e no todo, é precisamente um dos significados do magnífico fresco das História(s) do cinema. Este fresco é uma síntese de tudo: as questões, as matérias, as propostas, os enigmas, os mistérios elaborados pelo cinema com o cinema, e todos os tipos de trocas entre o cinema e as outras artes, entre o cinema e a realidade, entre o cinema e a história.
DB: Godard disse uma vez que o principal problema do cinema de massas é ele fornecer uma ilusão da realidade, mas o verdadeiro cinema deve representar a realidade da ilusão. Acha que os filmes de Godard nos mostram a realidade da ilusão? NB: No caso de Godard, acho que ambas as propostas estão correctas. Mas a primeira – “ilusão da realidade”, vem, não cronologicamente mas logicamente, em primeiro lugar. Quando esta foi elaborada correctamente ou inventivamente pelo filme, apenas então se pode pretender ter uma relação com a história, o sentimento, a experiência humana. De certa forma, investigar a ilusão e elaborar a realidade. O importante neste processo, em primeiro lugar, é compreender o que é uma imagem e mais amplamente uma representação, mas também como é que permite pensar a imagem não apenas como um reflexo, não apenas como uma reprodução da realidade, mas como um criação, um acto, um gesto: uma imagem que altera a realidade. Portanto, é uma forma muito preditiva e afirmativa de gratificar o cinema.
DB: Li também que Jean-Luc Godard pensava que o cinema se estabeleceria como um instrumento de cognição, um microscópio ..., um telescópio ... O que acha que o público espera hoje do cinema? NB: Agora é difícil responder a essa pergunta de forma universal, como, por exemplo, os críticos ou teóricos do cinema o poderiam fazer durante o século XX, quando se podia pensar a partir de uma concepção única de espectador ou de cinefilia. Não acho que essa pergunta seja ilegítima, mas há tantas respostas quanto filmes. Cada grande filme é capaz de construir o seu próprio público e as suas expectativas. Um grande filme inventa as suas regras, o seu horizonte e o seu público.
DB: Pode falar-nos sobre a vontade de criar o programa de obras promocionais de Godard no Curtas de Vila do Conde deste ano? NB: A ideia era primeiro reunir uma série de obras de Godard que são consideradas menores e por vezes raramente exibidas. Há três dimensões aqui: comerciais, filmes feitos para empresas e trailers. O objectivo deste programa é mostrar como Jean-Luc Godard reinventa o que chamamos em França de “le film de commande” - um filme produzido por e para uma empresa ou instituição, como Georges Franju fez para o Ministério da Defesa em Hôtel des Invalides (1952), ou Alain Resnais e Raymond Queneau para Péchiney em Le Chant du Styrène (1958), dois exemplos canónicos. O "film de commande" não é suposto ser uma declaração pessoal sobre o mundo ou uma visão pessoal sobre um fenómeno, é suposto apenas preencher as necessidades e exigências do patrocinador. É claro que os grandes autores do cinema e de outras artes ou cumprem esse “comando” de maneira brilhante, como Stéphane Mallarmé ou Alain Resnais, ou subvertem esses pedidos com génio, como Franju. Jean-Luc Godard faz os dois gestos, alternadamente ou ao mesmo tempo, porque para si o pedido não é apenas algo a subverter, a recusar ou superar, mas também algo a analisar. O pedido torna-se um material para a invenção. Um dos seus filmes mais brilhantes, Le rapport Darty (1989), oferece uma obra-prima do “film de commande”, porque é um manifesto preciso ou uma espécie de manual sobre como lidar com a ordem, e como cada filme ou cada representação vem diretamente ou indiretamente de uma ordem social, todo o filme é um “film de commande”. Nesse sentido, o artista crítico deve compreender o que é uma ordem social. Por exemplo, muitos artistas magníficos ficaram felizes em servir a Revolução de 1917, como Mayakovski, que respondeu a uma ordem social e política e, de certa forma, foi um modelo para muitos outros artistas no contexto reacionário. Mas desde o século XVIII é suposto o verdadeiro artista recusar-se a obedecer a qualquer ordem social. Há também uma proposta alternativa, que Jonas Mekas chamou de “cinema inútil”, no sentido de que a arte não deve ter nada a ver com a sociedade e deve criar o seu próprio mundo. Portanto, existem três possibilidades estéticas relacionadas com os “films de commande”: a aceitação da ordem social (quando ela é revolucionária); a capacidade de desconstruí-la, como Godard faz; ou a decisão de negá-la e construir o seu próprio mundo com as suas próprias regras.
NB: Não é um sintoma, é simplesmente a parte mais explícita ou, digamos, franca da indústria cinematográfica. Sempre existiu, fazer cinema é muito caro e existe uma enorme e fascinante tradição de artistas que lidam com o trabalho comercial. Um dos mestres desta prática foi o anarquista Georges Franju, um dos co-fundadores da Cinemathèque Française, que mostrou como cumprir e também como transgredir “le film de commande”. Existem alguns estudos interessantes sobre esta práctica, a começar pelos estudos de Gérard Leblanc, que foi professor, cineasta e líder do grupo Cinéthique, o “irmão mais novo” do grupo Dziga Vertov nas décadas de 1960 e 1970. Gérard Leblanc é um especialista nos filmes encomendados pela indústria, em Georges Franju e na dimensão ideológica das ferramentas técnicas cinematográficas.
DB: A Nicole contribuiu significativamente para a teoria do cinema. Poderia falar mais sobre a sua teoria da análise figurativa e a relação entre «régimes d'images» e «économie figurative»? NB: Sim, e está totalmente relacionado com Jean-Luc Godard, pois as suas obras foram uma grande fonte de inspiração. É uma ideia simples, a de que a arte propõe uma nova forma de ver o mundo em qualquer momento e em qualquer contexto. É fácil analisar um filme do ponto de vista narrativo, ou técnico, mas para mim o mais urgente e necessário é analisar o que um filme especificamente produz e constrói. Por exemplo, Jean-Luc Godard nos seus filmes inventa uma forma de demonstrar o que uma imagem pode ser e o que pode fazer. Mais uma vez, todos os seus filmes são reflexão e criação explicitamente estruturados por possibilidades cinematográficas. Não por algo que é, mas por tudo o que poderia ser. E é uma chave para a sua estética, porque numa sequência de qualquer um dos seus filmes pode-se ver, por exemplo, que o som não é usado de forma habitual, mas como uma exploração de muitas relações diferentes entre o som e a imagem. Todos os seus filmes oferecem uma gama de soluções. É por isso que às vezes ele é descrito como um cineasta para cineastas.
DB: Poderia falar-nos sobre a sua relação com Portugal em termos de cinema? NB: Como sempre digo, o cinema português e o japonês são o maior cinema do mundo. Falar de cinema nacional não sei se é a melhor forma de falar de cinema, mas é uma forma tradicional. O cinema português é absolutamente fantástico, e acho que só conheço 1% do que há que conhecer. Existem os famosos monumentos Manuel de Oliveira ou Pedro Costa, mas há muitos outros que merecem ser tão elogiados na cena internacional, como por exemplo Rui Simões e a sua obra-prima Bom Povo Português (1981). Um dos meus alunos mais brilhantes, Mickaël Robert-Gonçalves, dedicou o seu doutoramento ao cinema revolucionário português e todos os autores e filmes por ele mencionados devem tornar-se referências essenciais para a história do cinema internacional. O que realmente me surpreendeu é que apesar da situação difícil em Portugal, em termos de economia e principalmente no campo cultural, existe uma grande geração de cineastas e artistas visuais. Além disso, em 2017 tive o privilégio de trabalhar com João Tabarra na preparação da sua soberba instalação 4.56.20 em Vila do Conde. Tratou-se de uma instalação dedicada ao filme Numéro Deux (1975) de Jean-Luc Godard, a partir da impressão em 16mm do trailer deste filme. Numéro Deux investiga a relação entre cinema e vídeo, entre cinema industrial e independente, bem como fala sobre o cinema político no Leste e no Médio Oriente. João digitalizou, restaurou, analisou todos os frames desse trailer – que não foi feito por Jean-Luc Godard e nem sabemos por quem – e depois compôs uma instalação monumental na Galeria Solar. Assim, o meu programa em Vila do Conde este ano é uma continuação desta colaboração com João Tabarra. Será apresentado por Caroline Maleville, uma curadora da Cinémathèque Française que teve o formidável trabalho de encontrar para esta retrospectiva todas as cópias dos filmes de Jean-Luc Godard, e em particular todos os trailers que temos a certeza que ele mesmo os criou, que foi sem dúvida a tarefa mais difícil.
DB: Ouvi dizer que está envolvida no projeto dedicado a Jorge Amaro aka Fitz, que foi o moderador português do Karagarga [um fórum de internet para partilha de filmes raros]. Poderia contar-nos mais sobre essa história? NB: Nunca conheci Jorge Amaro pessoalmente, mas antes da existência do Karagarga, trocávamos vários emails. Jorge era como um epicentro de cinefilia. Fez exatamente o que tinha que ser feito na época, inventando uma forma colaborativa de partilhar imagens raras. Eu admiro-o totalmente. Através dos seus e-mails senti que ele é uma pessoa muito sensível e eu ficaria feliz em fazer parte desse projeto, embora não saiba se ele ainda existe.
DB: Qual a sua opinião sobre a questão ética da partilha de filmes entre os cinéfilos e a existência de diferentes “pirate bays”? NB: É um problema. Como curadora que trabalha diretamente com artistas, que me fornecem cópias ou links para os seus filmes, devo ser responsável por manter esse material confidencial. Mesmo assim, idealmente acho que toda a imagem ou filme deveria ser partilhada gratuitamente, a arte deveria estar liberta da indústria. Embora o cinema tenha estado em crise desde o início, agora sentimos isso mais incisivamente, a pandemia deixou essa situação mais clara, já que os cineastas agora não conseguem realmente ganhar dinheiro com lançamentos. Assistimos ao vivo à rápida destruição da estrutura comercial dos Primeiro e Segundo Cinemas (para usar as distinções feitas por Fernando Solanas e Octavio Getino em 1968). O Primeiro Cinema (o industrial) sempre encontrará dinheiro em algum lugar, das máfias ou dos bancos (de certa forma a mesma coisa). Mas o Segundo, o cinema dos autores, precisa reinventar essa estrutura, e o Terceiro Cinema, o cinema de guerrilha, está a tornar-se um modelo para recuperar a liberdade do cinema.
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Dasha Birukova (nascida em 1985 na Rússia) é curadora e escritora sediada em Lisboa. Formou-se na Universidade Estatal Russa para as Humanidades, Moscovo, departamento de história da arte, e na Universidade Estatal Russa de Cinematografia (VGIK), Moscovo, departamento de história do cinema. As suas especialidades são o filme experimental, o vídeo e media arte. |