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A GULBENKIAN, “EM REMODELAÇÃO”AUGUSTO M. SEABRA2008-04-17O discurso ora dominante tende a considerar o Estado como máquina burocrática bloqueante e o sector privado como garantia de dinamismo. Esse é afinal um estereótipo tão ideológico quanto aquela outra concepção, sinalizada à esquerda, que de modo não menos maniqueísta considerava as estruturas públicas como virtuosas e as privadas como perniciosos agentes de inconfessados interesses. É um facto que a dependência directa do poder político e dos caprichos dos seus sucessivos dirigentes, o peso burocrático e as regras administrativas e contabilísticas da máquina do Estado são factores que continuam a condicionar fortemente as dinâmicas das estruturas culturais públicas em Portugal; é um dado acrescido às razões de fundo que aconselham a preferência, sempre que possível, por estruturas autónomas e até figuras jurídicas de direito privado (ainda que de interesse público), como fundações, mesmo que possam corresponder a parcerias público-privado. Também não deve ser esquecido, contudo, mas quase nunca é assinalado, que em estruturas privadas desse tipo sucede igualmente cristalizar-se um espírito institucional e um peso burocrático também bloqueantes. É isso que sucede com a Fundação Gulbenkian, aquela que durante tantos anos, durante a ditadura, foi afinal o “ministério da Cultura”. Passadas as comemorações dos 50 anos de fundação, que em tantos aspectos se confundiram com um ritual de refundação, prestes a ocorrer o 25º aniversário da abertura do Centro de Arte Moderna, há que perguntar para onde vai a Gulbenkian, em que estado se encontra e quais as perspectivas. A questão ultrapassa em muito as políticas expositivas e de apoio e preservação das artes visuais, havendo dados mais genéricos que condicionam aquelas. Desde a presidência de Vítor Sá Machado houve uma reorientação estratégica da Gulbenkian, que veio a tomar corpo concreto na presente presidência de Rui Vilar, com vista a aproximar-se do modelo americano de fundação, certamente mais ágil, mas sobretudo de carácter mais supletivo, no sentido preferencial de apoio a iniciativas e dinâmicas exteriores, que não à intervenção directa nos campos artísticos. Haverá sempre limites a esta aproximação, desde logo estatutários (não é despiciendo recordar que, pelas situações únicas que fizeram com que a Fundação deixada em testamento por Calouste Gulbenkian ficasse sediada em Portugal, ela foi instituída por decreto-lei) mas sobretudo de património, simbólico inclusive, no capital cultural acumulado. Todavia, também a abrupta declaração pública de extinção do Ballet Gulbenkian, em Julho de 2005, foi a confirmação de que os melhores dias passaram. Nessa ocasião, tive de recordar que já três anos antes, precisamente na sequência da eleição de Rui Vilar, e assim da consagração da continuidade da estratégia definida por Sá Machado, havia escrito que com aquela se tinha iniciado “a contagem decrescente para o fim do Serviço de Música [em que o Ballet se integrava] tal como o conhecemos”. Se olhar para o presente Conselho de Administração, o dado concreto existente, a minha perspectiva para o futuro da Gulbenkian, com base em muito anos de conhecimento da “casa”, é ainda mais reservada para o possível horizonte pós-Vilar: as pressões no sentido de apoio privilegiado a programas educacionais e formativos em vez de iniciativas e estruturas próprias serão, estou em crer, cada vez mais fortes. De resto, as bases nesse sentido de desinvestimento estão criadas, com o Programa Criatividade e Criação Artística e o futuro outro programa de Educação pela Arte – e os respectivos responsáveis, António Pinto Ribeiro e Rui Vieira Nery, são justamente “responsáveis” suficientes para saber o que legitimam (e o que indirectamente deslegitimam). Como um outro (super-)Ministério de Cultura que a Gulbenkian é (além de outras coisas, nomeadamente de interesses financeiros), os passos de mudança não se fazem sem evidentes contradições e muita, desesperante lentidão. Assim, por exemplo, várias das iniciativas mais interessantes da Plataforma 2 do Fórum “O Estado do Mundo”, no ano transacto, mostraram que o papel da Gulbenkian na apresentação de espectáculos internacionais – de contemporaneidade artística genérica – deveria ainda ser uma questão de actualidade, apesar da presença de companhias de bailado estrangeiras na programação regular ter cessado em 1994 e os Encontros Acarte em 2003. Assim se vêm arrastando questões como a passagem de testemunho na “fundação dentro da fundação”, ou seja, o Serviço de Música, e o futuro do Centro de Arte Moderna. Quando se tenta uma abordagem da Gulbenkian, suponho que é de ter em conta ambas as questões, em vez de perspectivas exclusivamente sectoriais. E por isso permito-me supor também, mesmo que com perspectiva a prazo reservada, que dois anúncios recentes devem ambos ser considerados: a notícia da compra pela Gulbenkian da última parcela do Parque de Santa Gertrudes que lhe faltava e do consequente futuro alargamento do CAM e o anúncio público de um concurso internacional para apresentação de candidaturas ao cargo de director do Serviço de Música. Tendo em conta este horizonte de acontecimentos, verifiquem-se no concreto as exposições patentes na Fundação. No Museu, certamente por interesses também estratégicos, mas de todo coerentes com aquele, está “A Educação do Príncipe – Obra-Primas da Colecção do Museu Aga Khan”. Na Sede, há “O gosto ‘à grega’ – Nascimento do neoclassicismo em França, 1750-1755”, exposição que deveria justificar mais interesse, não se desse o caso de também se saber que os discursos mediáticos privilegiam o suposto “novo” ou o “acontecimento” – e, todavia, a exposição, “menor” que seja, assinala um momento da maior importância na invenção do “gosto”, da estética, e de um olhar retrospectivo. No CAM, há a interessante proposta de um artista português emergente, Pedro Cabral Santo, mas o fundamental do espaço está ocupado durante mais de seis meses (seis!) pela primeira, espampanante e substancialmente mal-lograda incursão no novo e prolífero campo da arte cinemática, “Ida e Volta: Ficção e Realidade”. Deste enunciado factual não é difícil de concluir, sem mesmo estar a rememorar os últimos anos, que é fundamentalmente a letargia do Centro de Arte Moderna que está em causa. Mas, ainda assim, voltaria ao edifício da Sede para recordar que no piso inferior a galeria está vedada com a indicação “em remodelação”, óh quanto apropriada à situação da Gulbenkian nos campos expositivos! Muito do fundamental contributo da Fundação ao longo dos anos tem sido de outro teor, com apoios individuais, nomeadamente a nível de bolsas. Cabe essa vocação também ao Serviço de Belas-Artes, mas não se esgotando este nessas, seria desejável, primeira questão, que a sua vocação e a do CAM fossem claramente definidas. E depois, segunda questão, há propriamente a do CAM. Tem este estado cerceado em anos recentes. Ocorre para mais a situação ambígua de ser dirigido por um artista, Jorge Molder. Ora, por princípio, e até tanto mais porque muito o aprecio como personalidade artística, este é o tipo de situação que creio perniciosa. A todos os títulos a clarificação impõe-se mas, antes do mais, e em vez de simplesmente anunciar uma ampliação, cabe à administração da Gulbenkian esclarecer o que entende ser o Centro, como vai valorizar o seu património e como o vai reforçar enquanto espaço expositivo. Daí que, com o precedente ora criado no Serviço de Música, e que é inteiramente justificado pelo nível de excelência internacional da programação daquele, haja reforçadas razões para secundar o entendimento publicamente expresso por Raquel Henriques da Silva: “Gostaria que o CAM fosse dirigido por alguém que ganhasse um concurso internacional rigorosamente aberto, alguém que possa marcar, que tenha um plano e que seja escolhido em função desse plano através de concurso, pela primeira vez, e contra a tradição da Gulbenkian” (PÚBLICO de 23/12/07). Ou seja, cientes de que o problema não é em si mesmo apenas de director, mas de uma tradição da Gulbenkian que, no que tem de pior, de letargia burocrática, se faz sentir há anos na asfixia de uma valência tão capital como o Centro de Arte Moderna. Augusto M. Seabra |