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ARTISTA COMO MEDIADOR. PRÁTICAS HORIZONTAIS NA ARTE E EDUCAÇÃO NO BRASILALEJANDRA VILLASMIL2022-10-07
Este segundo texto como Arquivista de LA ESCUELA____ tem como foco a revisão dos escritos publicados até agora no seu Campus virtual dedicado às práticas de arte e educação desenvolvidas de forma visionária e experimental no Brasil durante as décadas de 60 e 70, um período marcado pelo golpe de Estado de 1964 e pelo Acto Institucional nº 5 (AI-5) de 1968, documento com o qual o Poder Executivo assume o controlo do país, passando a intervir nas instâncias de competência do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. É neste ambiente tirânico e sombrio de abolição dos direitos civis onde a arte participativa, a acção artístico-pedagógica e outras metodologias empíricas e intuitivas de activação da consciência social surgem como poderosos instrumentos de libertação e reivindicação num grupo de artistas, educadores, sociólogos e críticos. Uma boa introdução a estas práticas transversais encontra-se no texto Leer el mundo antes de la palabra: legados postneoconcretos y pedagogías decoloniales, da curadora e educadora radicada no Rio de Janeiro, Jessica Gogan. O seu mapeamento para LA ESCUELA___ explora intervenções em arte/educação que, de forma paralela e com orientações epistemológicas similares, se desenvolvem naquela época no Brasil, partindo da investigação-acção participativa do sociólogo Orlando Fals Borda, que foi pioneira nos anos 60 ao inverter os modelos hierárquicos relacionais para propor uma dinâmica horizontal dirigida ao "sentipensar” e à aprendizagem recíproca. Essa capacidade de afectar e ser afectado materializou-se nesse período numa praxis activa de encontro e escuta que vinculava e respondia às pessoas, contextos e situações. Um paradigma de leitura do mundo introduzido pela 'pedagogia como fazer político’ de Paulo Freire que Lygia Clark abraçaria na sua obra seminal Caminhando (1963), em que a artista convida à experimentação em grupo e ao deslocamento inovador da arte como objeto em direcção à acção. Paralelamente, Lygia Pape e Hélio Oiticica romperam com os marcos institucionais (o cubo branco) para se lançarem ao espaço público com os seus Delírios ambulatórios, acções que concebiam a arte como processo e experiência. “Para artistas como Oiticica, Pape e Clark, o aqui e agora concreto do mundo era uma tela viva na qual a criação poderia propor uma consciência consciente de ser/fazer/experimentar dentro da arte”, escreve Gogan. Nesse meio político e socialmente convulsivo, brota simultaneamente uma inclinação para o popular e o quotidiano, tanto dentro das práticas artísticas emergentes como nas pedagogias decoloniais da época, expressa de forma clara e contundente nos Parangolés (1964) de Oiticica, um artista interessado na arte experimental e participativa como forma de "libertar" o indivíduo. “De forma radical”, escreve Gogan, “o artista transforma uma experiência contemplativa individual numa experiência participativa coletiva de vestir e olhar”. Dentro da ditadura e da censura no Brasil em meados dos anos 60, a arte como “exercício experimental da liberdade” proposto pelo crítico Mário Pedrosa demonstrou ser primordial, como também o era a conexão com os outros. Segundo Gogan, “criar contextos para a experimentação, a comunidade e a conectividade converteu-se num salvamento comunitário e artístico vital”. Foi assim como, em 1971, em plena ditadura militar e no calor da experimentação artística, foram realizados no MAM Rio seis happenings participativos chamados Domingos da Criação, idealizados pelo crítico e comissário Frederico Morais à maneira de eventos que propunham a arte como uma “actividade”. Os Domingos da Criação eram “uma forma de reeducação sensorial das massas com uma crítica marxista à noção burguesa de espairecimento dominical. Contra a noção de ócio = não actividade, Morais adoptou o conceito de “crelazer” de Hélio Oiticica, um neologismo do artista [crer = 'acreditar' e lazer = ‘ócio’: ‘acreditar no ócio’] que defende o lazer criativo". O ensaio de Jessica Gogan termina com uma citação de Freire ainda vigente em qualquer latitude: “A educação é simultaneamente um acto de conhecimento, uma arte política e um evento artístico”.
O TEATRO DO OPRIMIDO No seu mapeamento, Gogan também menciona o dramaturgo e activista brasileiro Augusto Boal e o seu Teatro do Oprimido (TO), experiência vital e agitadora na qual mergulha a artista, escritora e investigadora Cristina Ribas no seu ensaio para LA ESCUELA___ intitulado La Estética del Oprimido: memoria política y pedagogía de un laboratorio poético. O Teatro do Oprimido é um método desenvolvido por Boal (Rio de Janeiro, 1931-2009) nos anos 60 - em parte inspirado na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire -, e que até aos anos 80 se ergue como uma forma estética de crítica do Estado, das instituições e da sociedade de classes imposta pelo capitalismo. Como laboratório estético e político capaz de incidir na realidade, o TO transmuta o público de passivo a activo, isto é, num “participante” com voz e ingerência no que é representado em cena. “Os espectadores tornam-se espect-actores" (...) Trata-se, portanto, de um teatro que é a sua própria escola (...), que tensiona a realidade e a representação, e que se apresenta como uma ferramenta urgente num presente que exige movimentos transformadores”. Este método de acção artístico-política, que deixou um legado no Brasil e se estendeu por todo o mundo como uma poderosa ferramenta de transformação social, foi precursor ao questionar as diferentes formas de exploração, extractivismo e colonialismo e inaugurar a investigação da opressão como forma de resistência. “Para investigar as opressões, investe-se na agitação das energias corporais, políticas, psíquicas e expressivas daqueles que estão reunidos, de tal forma que um guião ou uma cena se construam. Esta inversão de energia colectiva inaugura uma reinvenção do teatro”, escreve Ribas. Cria-se, assim, um teatro que responde às urgências do momento: racismo, xenofobia, etnofobia e sua canalização através do poder do Estado. Um teatro atento ao seu contexto político-social, capaz de reelaborar e intervir — e não apenas reproduzir — narrativas do teatro clássico internacional. E, no constante questionamento do teatro como instituição, o TO acreditava que era necessário desmontar as narrativas épicas e seus heróis grandiloquentes, colocando como protagonistas pessoas comuns, do âmbito “popular”, com as quais se identificar. Colectivizar a narrativa e o uso de não-actores (ou actores não profissionais) estava no coração da agência política da sua metodologia. “Por conseguinte [escreve Ribas] faz sentido que a investigação sobre as opressões seja realizada pelos próprios actores sociais, 'actores das suas vidas', e não por outros, actuando diretamente contra a hierarquia que marca as posições tradicionais, mesmo nos espaços mais progressistas – a separação entre quem pensa e quem é pensado, quem tem e quem não tem controlo sobre a sua própria vida –. No entanto, não se procura uma mimesis da vida, nem uma cópia da vida, mas elaborar a vida e a cultura através de si mesmas por meio do teatro”.
OFICINA DO CORPO Sobre o teatro experimental/pedagógico no Brasil, escreve também a investigadora, professora e arquitecta Débora Oelsner Lopes no seu ensaio Trabajar el cuerpo y estudiar como formas de combate, centrando-se no trabalho do cenógrafo Helio Eichbauer (Rio de Janeiro, 1941 – 2018), conhecido como um dos principais renovadores do teatro brasileiro moderno. A sua prática teatral também se diferenciava por se afastar dos convencionalismos da época. “Eichbauer era um professor da modernidade. Na sua obra convergiam vida e aula, quer dizer, ele mesmo estava imerso na investigação poética; procurava dar vazão à sua força criativa de forma horizontal com a aula, diferenciando-se apenas por ser o professor das actividades conjuntas. Finalmente, a sua actividade docente é caracterizada pela interdisciplinaridade, na qual estiveram presentes a música, a literatura e as artes visuais”, escreve a autora. Na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, em meados dos anos 70, Eichbauer apresentou a “Oficina do Corpo”, posteriormente rebatizada como Oficina Pluridimensional, bem como as conferências-espectáculo, actuações ou happenings onde o professor e alguns alunos representavam papéis e personagens relacionados com uma temática definida. A expressão corporal – por ser uma forma artística mais abstracta e, portanto, menos restringida pela ditadura militar – foi o caminho encontrado por Eichbauer para dar continuidade à sua força criativa durante a difícil década de 1970.
LYGIA PAPE, PROFESSORA No ensaio Lygia Pape, profesora: prácticas pedagógicas como prácticas artísticas, da escritora e investigadora Michelle Farias Sommer, emerge novamente Lygia Pape (Rio de Janeiro, 1927-2004) como figura central das práticas pedagógicas radicais no contexto histórico que analisa este texto. A sua actividade docente, desenvolvida entre finais de 1960 e os anos 90 em instituições museológicas e académicas brasileiras, foi permeada por experiências de participação, colaboração e acção colectiva. Os modos de criação conjunta, o 'radical', 'experimental', 'ambivalente' e 'livre', estiveram no centro do seu visionário método de convergência entre a prática artística e a prática pedagógica. Pape participou na primeira sessão dos Domingos da Criação mencionados anteriormente, e imaginou as 'anti-aulas' como um antídoto contra o convencionalismo académico. “Definindo-se a si mesma como 'intrinsecamente anarquista', as suas práticas pedagógicas seguem a mesma direcção: reivindicavam uma liberdade sem restrições para a criação e se basearam num 'descondicionamento' do ensino em direcção à entrada de 'estados de invenção'». Dos textos revisados do Campus LA ESCUELA___, depreende-se que a incidência política do/da artista-educador/a pode encontrar-se no seu papel como mediador entre acção e “receptor” (ou 'ex-espectador'), ou seja, quando este/a se assume como participante activo/a e consciente da sua realidade, capaz de aplanar as tradicionais distinções hierárquicas entre educador/a e educando e, finalmente, criar comunidade. É nestas práticas transversais e horizontais que têm em conta o "receptor final", não como sujeito a ser leccionado, mas como actor convidado a uma mudança de paradigma mediante o empoderamento colectivo, onde reside o carácter verdadeiramente transformador das experiências no Brasil de há mais de meio século. Um legado que definitivamente impactou as actuais dinâmicas de luta pela reparação do frágil tecido socio-cultural do nosso Sul Global.
Alejandra Villasmil
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa. |