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ÁLVARO LAPA: NO TEMPO TODOLAURA CASTRO2018-03-09
Uma das chaves da visita, encontrei-a na primeira sala da ala à direita, em Buraco Funcional, de 1971, que imediatamente nos alerta para a abordagem material e conceptual do artista. O modelo em questão consiste na abertura de cavidades, vazios, espaços, por vezes de configuração rectangular, onde se inserem elementos que podem ser de natureza visual - quase sempre de conotação espacial, rampas, mesas, tubos - ou de natureza verbal - colagens de textos dactilografados, palavras manuscritas, frases escritas/pintadas. Este buraco funcional tem, portanto, um carácter instrumental, na explicitação de um modelo de trabalho que será utilizado de forma intensiva por Lapa, mas tem também um carácter de convocatória da literatura, do pensamento, da política. É nestes abismos que se encontra a sua mitologia pessoal. É também aí que se encontram algumas assombrações políticas e auto-biográficas. Outra das chaves do percurso, identifiquei-a na última sala da ala à direita, numa das duas peças intituladas Museu ad hoc, datadas dos anos iniciais deste século XXI. Trata-se de dois trabalhos em que o artista miniaturiza algumas das suas pinturas e distribui-as por uma superfície entendida como espaço museológico, assim como quem quer, ironicamente, propor uma leitura possível da sua produção e controlar a sua recepção. Mediante este recurso metalinguístico encontramos, em formato reduzido, um importante trabalho que exibe o diálogo a seguir transcrito: Em que pensas / No tempo todo / Sob uma forma / A do desejo / Meu ou teu / Depende / De quê / De ti. Cada frase é introduzida por um, chamemos-lhe por facilidade, pictograma, uma assinatura visual de Lapa, constituída pela dupla silhueta de configuração humana que aparece e reaparece incessantemente na sua obra. O diálogo obriga-nos a voltar atrás, para rever dois trabalhos: um de 1979-80, precisamente intitulado Em que pensas? No tempo todo, onde aquela silhueta se apercebe claramente; outro, de 1980, sobre papel, Sem título, que retoma esse "carimbo" em vulto e as frases finais do diálogo: De quê? / De ti. Nestes diálogos desvenda-se também a origem do título da exposição que não se esgota nesta referência, como adiante se verá. Estas peças adquirem valor programático, a par da instalação das Profecias de Abdul Varetti, obra que, no eixo de toda a ala direita da exposição, a enquadra cenograficamente. A ela podemos sempre voltar até desaparecermos pelo corredor lateral. Nas Profecias irrompe em Álvaro Lapa uma dessas presenças que o habitam e que habitam a sua obra, fornecendo-nos argumentos em favor da construção da(s) sua(s), mitologias pessoais (usando, de novo, a expressão consagrada por Barthes, em 1964, e depois por Szemann, em 1972, despojada, embora da carga iconográfica e narrativa). A identificação destas chaves revela uma exposição que, embora não abandone totalmente a ordenação temporal, procura, segundo o curador, descurar "a linearidade cronológica" e opta por um discurso assente nos "dois campos de tensão visual" instaurados pelo retrato e pela paisagem, e nas "séries narrativas" que atravessam o território do artista. A opção está explícita na abertura da exposição, no texto colocado junto ao retrato de Álvaro Lapa, fotografado por João Cutileiro em 1958, e encontra uma expressiva síntese na obra de 1969 escolhida para capa do catálogo e que, não por acaso, se intitula Instrução pessoal. É pela recusa, contida, da cronologia - incapaz de servir como elemento estruturador da obra de Lapa - que descobrimos ligações fundamentais para o seu entendimento. Apenas a título de exemplo, veja-se o que acontece na grande sala da ala direita que opõe a parede dos Campéstico à parede dos Cadernos dedicados a escritores. Percorrendo uma e outra, para a seguir nos debruçarmos sobre as longas mesas ao centro, verificamos que é o caderno que institui um modelo de trabalho ao qual todos os outros seriam redutíveis. É no caderno que, de modo privilegiado, se estabelece, negando-a, a forma possível do pensamento e da reflexão. O que evoca obrigatoriamente o jogo, que só na língua francesa ganha ressonância plena, entre as palavras tableau e table: "loin du tableau unique, refermé sur soi, porteur de grâce ou de génie […] certains artistes et penseurs se sont engagés à redescendre pour ainsi dire, modéstement, vers la plus simple mais plus disparate table". […] l´unicité du tableau fait place, sur une table, à l´ouverture toujours reconduite de nouvelles possibilités, de nouvelles rencontres, de nouvelles multiplicités, de nouvelles reconfigurations." [Georges Didi-Huberman - Atlas ou le gai savoir inquiet: L´œil de l´histoire, 3, 2011]. E volto ao início, reforçando a ideia de que a obra total e o tempo todo são necessários para entender Álvaro Lapa e por isso a exposição se desenvolve na horizontalidade da mesa (que o curador pretendeu) e não na verticalidade do quadro. Correndo o risco do exagero, dir-se-ia que todos os quadros do artista se podem converter em mesas de trabalho, o que subentende, primeiro, a distância e a retirada da pintura do seu campo próprio, enveredando pelo universo do rudimentar, rente ao que ainda não se articula como pintura; segundo, a recusa da pintura, tal como convencionalmente se organizou e se desenvolveu no devir histórico e artístico (o que não significa a ausência de referências recuperadas do passado). Interessante é observar, nestes objectos que compõem o longo discurso contra-cultural de Álvaro Lapa, não destinados à simples contemplação, a qualidade formal e até uma certa elegância no manuseamento do seu vocabulário. Nos quatro pequenos espaços da ala à esquerda da entrada apresentam-se trabalhos dos anos 70 a 80, nomeadamente das séries Milarepa e Amnésias, bem como Gauguin e Ucello, com ligação a desenhos apresentados na ala à direita, zona onde se verdadeiramente se desenvolve a exposição. Nesta ala, o corredor acolhe um grande número de obras e, embora a sua configuração longitudinal se adeque ao carácter narrativo das séries apresentadas - nomeadamente Lâmina, Moradas, Mesas - o espaço resulta demasiado congestionado. Na zona do bengaleiro apresenta-se documentação relacionada com as exposições do artista, catálogos, cartazes, três retratos de Lapa por Ângelo de Sousa, datados de 1973 a 1975 e um por Miguel Palma, de 1994. Próximo do local onde se pode visionar o filme de Jorge Silva Melo, Álvaro Lapa: A Literatura, expõem-se ainda fotografias da estação de Metro de Odivelas com a intervenção do artista. A dispersão expositiva em três zonas do museu (relacionada com eventuais compromissos de programação?) não beneficia a visita. A extensão e a importância da retrospectiva teriam justificado a ocupação do museu. Dito isto, a densidade que se experimenta não é necessariamente desconfortável ou prejudicial à compreensão desta obra clarificada por vizinhanças e proximidades, a despertar uma leitura das constantes formais e das recorrências temáticas. E é também essa densidade de quase três centenas de obras reunidas num museu que ajuda a interiorizar o vocabulário e os dispositivos característicos deste pintor e só dele e, principalmente, o esquema de alusões (como apontou José Gil, em 2005) a que se dedica. A fechar: para que serve uma exposição, esta em particular? Para se entender a pintura, nas palavras do curador, não como "vocação disciplinar", mas como "meio (tal como a escrita, o desenho e a criação de objectos), facilitador de uma inscrição no campo alargado da cultura, com constantes remissões para os territórios da filosofia e da literatura". Não é tarefa pequena situar e conferir significado a esta obra difícil de descrever, difícil de narrar, difícil de comentar, mesmo após todas as derivas e ramificações que a pintura tem atravessado. Nela se sugere uma suposta inversão da exigência visual da pintura. Digo suposta, porque antes do primado da visão que os modernismos instauraram, o pensamento habitava o espaço da pintura, permanecia na sua rectaguarda, antecipava o seu registo visual. Aqui, o que se propõe, mais do que inversão, é a consubstancialidade de registos. E a propósito do diálogo com a pintura herdada do século XX, haveria ainda que questionar o papel de uma das primeiras obras com que se depara o visitante e que poderá - ou deverá - deixá-lo em estado de alerta. Refiro-me à pintura, que tem tanto de irónico e de provocatório como de crítico, Espaldar modernista de apedrejar o público, de 1984, onde figura um elemento que acompanha, aliás, o itinerário do artista, surgindo, nomeadamente, num Campéstico dos anos 80 ou em Museu ad hoc 1.
Laura Castro
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