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NO MODELO NEGRO, O OLHAR DO ARTISTA BRANCOMARC LENOT2019-07-15
A exposição "Le modèle noir" no Musée d'Orsay (até 21 de julho) é ao mesmo tempo necessária e decepcionante. Adopta duas perspectivas, uma, indispensável, mais propriamente histórica, e a outra, no espírito dos lugares, mais artística. Há muito poucas grandes exposições em França sobre a escravatura, a colonização e o racismo (e ainda demasiados vestígios memoriais, como os nomes das ruas em Bordéus por exemplo), e só podemos regozijar-nos da dimensão histórica desta exposição, que vai da Revolução Francesa (e a primeira abolição da escravatura em certas colónias, excepto na Martinica ou nas ilhas Mascarenhas), até 1940. Para a escravatura, o tráfico de escravos e a sua abolição, a apresentação, nos textos afixados e no catálogo (especialmente o ensaio de Stéphane Guégan), dessa cronologia, das suas aventuras e dos seus heróis é importante. É lamentável, no entanto, que não haja um esclarecimento económico sobre as consequências da abolição. E era sem dúvida o lugar para se fazer mais história da colonização e do racismo metropolitano, que teria sido tão pertinente para a compreensão do percurso artístico; mas o que vemos não é mais do que uma exposição. De forma que se observa a emergência de figuras simbólicas desta emancipação, nomeadamente o convencional Jean-Baptiste Belley, primeiro deputado negro da nossa história, pleno de dignidade republicana, contudo pintado por Anne-Louis Girodet como sob a égide de um branco, o abade abolicionista Guillaume-Thomas Raynal morto um ano antes. Este indispensável percurso documental funde-se confusamente com o percurso artístico. Começamos com a Revolução, mas claro que já havia antes representações dos negros, do rei Balthazar a van der Kerckhoven, que na maioria das vezes eram apenas tipos, não identificados, não-individualizados. Alguns serviçais negros foram, no entanto, identificados pelo nome (Paul Zaigre de Pigalle, Auguste de Carmontelle), mas muito poucos dos retratos são dignos e respeitosos, por falta de sujeitos suficientemente "respeitáveis", sem dúvida. Uma rara excepção (ausente da exposição) é o retrato atribuído a Pierre Gobert da beneditina de Moret, que se presume ter sido o fruto dos amores da rainha Maria-Teresa e do seu jovem pajem negro.
Pierre Gobert (atribuido a), Mauresse de Moret, 1695, Bibliothèque Ste Geneviève
A exposição começa verdadeiramente com a famosa pintura de Marie-Guillemine Benoist. Notemos primeiro que esta exposição é acompanhada por um desejo de renomear as obras de uma maneira "moderna" e correcta, de modo que não se diz Preto mas Negro (e amanhã, as rebatizarão como retrato de um Afro-descendente?), ou melhor, encontrar o nome do modelo (daí a instalação bastante mal sucedida de Glenn Ligon no hall do Museu). A pintura que nós conhecemos há 200 anos como "Retrato de uma Negra" é doravante chamada "Retrato de Madeleine", no pressuposto de que a modelo seria a empregada doméstica do cunhado da artista. (Na mesma linha normativa, "Olympia" é descrita como "trabalhadora do sexo" no catálogo pela co-comissária americana...). "Retrato de Madeleine" é uma pintura essencial porque uma das primeiras onde se parece estabelecer um diálogo entre pintor e modelo, uma comunicação igualitária: ilusão sem dúvida, dada a posição social das duas mulheres e especialmente o facto de Benoist a desnudar e a fazer assim um objecto sexual, arquétipo do suposto erotismo desenfreado dessa raça (eu não sou um especialista na Sra. Benoist, mas parece-me que, se ela gostava dos decotes profundos, não descobre o mamilo rosa de nenhuma mulher branca na sua obra). Madeleine conjuga assim em si as duas características que são constantemente encontradas na representação das mulheres negras, a sexualidade e a domesticidade. O que está em questão aqui é o olhar do pintor sobre o modelo, e a maneira como o modelo se dobra às normas desse olhar. Quer seja "Aspasie" de Delacroix, a "Vénus Africana" de Charles Cordier, "Maria" de Félix Nadar ou "Aïcha" de Kisling, o estereótipo racial da hipersexualidade negra é totalmente integrado sem vergonha pelo artista. Mais ainda, Josephine Baker, no limite da obscenidade, ou a artista de circo Miss Lala, apropriaram-se elas mesmas desse estereótipo e fizeram dele o seu "negócio" de alguma forma. E muitos são assim também os serviçais, de dócil obediência: em "Esther" de Chassériau, na "Toilette” de Bazille, no "Bain Turc" de Gérôme, ou a gentil ama do "Beijo infantil" de Feyen e a "Vendedora de peónias" de Bazille. Talvez o pináculo seja a empregada de "Olympia" (cujos comissários se orgulham de ter identificado o nome, Laure, e o endereço, 11 rue de Vintimille). Sem duvida Jeanne Duval, amante de Baudelaire e pintada por Manet, eleva-se acima do resto, no entanto, não é 'vista' por Manet, antes pela sua ligação com Baudelaire, e não pela sua personalidade e o seu próprio sucesso. E isso continua até 1940, com Ady Fidelin, "musa" de Man Ray, que o próprio se regozija de lhe fazer tudo, "engraxar os meus sapatos, trazer o meu pequeno almoço, pintar o fundo das minhas grandes telas, tudo com um ar de biguine ou de rumba"; quando Man Ray partiu precipitadamente para os EUA em 1940, Fidelin ficou em França e desapareceu da história da arte, contrariamente às outras três desta fotografia de Roland Penrose: Lee Miller, Leonora Carrington e Nusch Eluard. Em “Deux femmes dénudées”, o corpo negro e o corpo branco juntos, dupla sexualização sáfica: a negra não é mais serviçal, mas parceira, ou pelo menos uma serviçal-amante: é um tabu que o muito obscuro Jules-Robert Auguste ultrapassa ali, quarenta anos antes de Courbet, cento e dez anos antes de Lee Miller e Adrienne Fidelin serem fotografadas por Man Ray? O olhar sobre o homem negro é tão cheio de mitos, de estereótipos e alegorias. Primeiro, o negro é a cor do inferno: Ingres, então em Roma, pede ao jovem Chasseriau (que esconde o melhor que pode a sua condição de sangue misto e a sua cor de pele) para lhe pintar, conforme um esboço que lhe fornece sem lhe revelar no entanto o seu destino final (O Senhor afastando o demónio do alto da montanha), e no maior segredo, o corpo negro suspenso do modelo Joseph. Chassériau demora um longo tempo, Ingres abandona o seu projeto, mas esta figura do Mal voando em direção à sua queda permanece como uma das mais extraordinárias e das mais estereotipadas representações do corpo negro. Se não é necessariamente o diabo, o negro é violento e sanguinário, e o muito reacionário Puvis de Chavannes não hesita em conjugar estupidez e ferocidade nesse jovem Negro nu (à antiga) com um gorro frígio, o sabre na mão: uma pintura transgressora indubitavelmente, pró-abolição talvez, mas também fruto de um olhar de dominador. Ou então, mais tarde, na mesma linha, o negro é desportista, pugilista no século XIX, corredor ou jogador de futebol no século XX. E finalmente, o Negro é um bom trabalhador, sólido, feliz e um pouco simplista; e lá, partimos em direção a Banania passando pelos soldados senegaleses e esse “Negro carregando uma caixa”. Quem escapa a estes estereótipos racistas? Quem tem sobre o seu modelo negro um olhar não-racista e não dominador? Não muitas pessoas; Géricault, talvez, quando inclui três homens negros na “Jangada da Medusa”, e que, para fazer isso, realizou um estudo, com o mesmo modelo Joseph. Matisse, talvez, depois da sua viagem a Nova Iorque e quando desenha os seus modelos caribenhos em Cannes. Não se trata aqui de distribuir patentes de antirracismo retrospectivas, mas de constatar que o olhar branco geralmente não sabe se livrar do racismo circundante da sociedade que o envolve. Provavelmente apenas Gauguin será bem sucedido, Gauguin o proscrito, Gauguin o revoltado, primeiro na Martinica, depois na Polinésia, quando pinta as suas amantes e grita contra a destruição da sua sociedade (mas serão negros na Polinésia? A definição do catálogo inclui bem alguns árabes, mas não polinésios ...). E se não são os pintores mestiços a conduzir este combate, demasiado felizes por se integrarem na sociedade branca, demasiado inquietos de se verem rejeitados do outro lado: Chassériau, além do Satanás mencionado, pinta uma empregada negra bem sábia perto de Esther, e Guillon-Lethière, ele também filho de um escravo libertado, se ousou mostrar uma certa igualdade entre homem branco e homem negro no "O Juramento dos Antepassados", fê-lo apenas uma vez e em segredo, antes de enviar clandestinamente a sua tela para a jovem república do Haiti. Se a maioria dos ensaios do catálogo são fortemente eruditos, muitos têm dificuldade em afrontar esta problemática do olhar branco. Destaca-se claramente a excelência do posfácio de dois ex-curadores da exposição sobre os zoos humanos, Lilian Thuram e Pascal Blanchard (ambos frequentemente criticados pelas suas posições: Thuram e Blanchard), "Corpo negro, olhar branco". A análise que fazem do poder branco é assaz cruel para as outras apresentações. Como exemplo, essa pomposa tela de François-Auguste Biard celebrando a (segunda) abolição da escravatura em 1848 que analisam com razão assim: "Esta pintura glorifica a acção dos Brancos que libertam os Negros. Como se a ideia fosse deles, como se os Negros não contassem para nada. Como se as revoltas não tivessem existido". É esse o olhar branco.
Marc Lenot
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Le modèle noir. De Géricault à Matisse Musée d'Orsay, Paris
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