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O NEGÓCIO DO HERMITAGEAUGUSTO M. SEABRA2007-12-17O que é um museu? Dir-se-ia que a pergunta é quase descabida, de tão óbvia é a resposta, correspondendo a um modelo patrimonial e expositivo consagrado há mais de dois séculos. Contudo, esta concepção tradicional da instituição-museu, concepção mesmo “sacralizada” (no sentido em que falavam, em 1969, Pierre Bourdieu e Alain Darbel em “L’Amour de l’art – les musées d’art européens et leur public”), albergando inclusive os museus de arte moderna e contemporânea, está sujeita a fortes mutações e a não menores polémicas e riscos. São variados os museus, assim denominados e institucionalmente reconhecidos, que optam preferencialmente, em termos de actividade pública, pela função de centro de exposições, independentemente de terem ou não colecções próprias, como é exemplo o caso de Serralves. Há mutações por novas valias simbólicas, económicas, sociológicas e urbanas de museus, de que a mais “espectacular” afirmação foi o Guggenheim de Bilbao – “A ideia de museu como espaço de recolhimento dedicado à contemplação de obras de arte perdeu o seu fundamento na realidade. Os museus constroem-se agora para regenerar o espaço urbano, promover a indústria turística e conseguir créditos políticos e de imagem com a operação”, nos termos da análise de “El efecto Guggenheim” por Iñaki Esteban (Anagrama, 2006). Ulterior confirmação desta lógica, de algum modo ainda mais estrondosa, verificou-se com o projecto das “mil e uma noites” em Abu Dhabi, Saadyat, “A Ilha da Felicidade”, que juntará uma extensão do Louvre, outra do Guggengheim, um museu marítimo e um centro de artes, com projectos respectivamente de Jean Nouvel, Frank Gehry, Tadao Ando e Zahah Hadid – e foi considerável a polémica em torno do “Louvre de Abu Dhabi”, sendo que o protocolo final, que teve de ser sujeito a ratificação da Assembleia Nacional francesa, implica o pagamento pelo Emirato da astronómica soma de mil milhões de euros! A questão é mesmo esta, e trata-se uma mutação profundíssima para com a concepção tradicional e “sacralizada”: agora os museus também vendem e vendem-se – essa é, digamos, uma outra e ineludível perspectiva dos “Museus para o Século XXI”, para retomar os termos de uma exposição patente na Culturgest, no prisma arquitectónico. E vendem e vendem-se segundo novas lógicas globais e ciclos económicos, incluindo os do mercado da arte. Há casos pontuais de venda por dificuldades económicas – aconteceu há uns meses em Buffalo, no Estado de Nova Iorque, zona industrial em crise, factor que não terá sido alheio à controversa decisão (ou à falta de suficientes donativos privados), quando a Albright Knox Gallery teve de vender algumas obras antigas, tidas como um luxo que um museu vocacionado para a arte moderna e contemporânea, e fazendo face a preços inflacionados, não podia continuar a suportar. Mas houve um anterior exemplo que, olhado retrospectivamente, foi mais saliente: em 1990, Thomas Krens, então director do Museu Guggengheim, o de Nova Iorque, vendeu três quadros, de Kandinsky, Chagall e Modigliani, para comprar a colecção de arte minimalista. No início de 2005, Krens tornou-se presidente da Fundação Guggengheim, afastando Peter B. Lewis – enquanto este defendia a concentração de investimentos no museu nova-iorquino, Krens tinha desenvolvido todo o novo e ambicioso programas de parcerias – e é ele também o “master mind” do plano geral para Abu Dhabi. Há uma nova forma de economia e de governação dos museus, uma lógica em consonância com o novo espírito do capitalismo global, que foram em primeiro lugar desenhados por Thomas Krens e o Guggenheim. Mas há outro participante de particular relevo nestes negócios de museus: o Hermitage. Que de resto tem com o Guggenheim não só programas comuns, como mesmo uma “joint-venture”, o “Hermitage Guggenheim Museum” no “Venetian Resort Hotel-Casino” de Las Vegas! É de toda a conveniência então saber o ponto da situação dos diversos projectos de pólos externos do museu de São Petersburgo. Em primeiro lugar, saber que contam nomeadamente com a possibilidade de apoio de “friends of the Hermitage”, organizados ou não enquanto tal, nas cidades de acolhimento, e/ou de laços históricos. Foram os laços entre as duas cidades, estabelecidos por Pedro, O Grande, que levaram à constituição do Hermitage de Amesterdão. Por outro lado, nos negócios há riscos de vicissitudes políticas: assim, o projecto de instalação permanente de um pólo londrino, na sequência das exposições que têm ocorrido nos Somerset Rooms, parece abandonado, devido ao facto de um dos principais financiadores, o magnata petrolífero Mikhail Khodorkovsky, ter sido preso e enviado para a Sibéria pelo governo de Putin. Quanto ao novo pólo italiano, em Ferrara, sendo também expositivo, é sobretudo um centro de estudo e de formação destinado “à preparação de pessoal técnico e científico, russo e italiano, nos domínios da restauração, conservação, gestão e valorização das obras de arte, incluindo as conservadas no Museu Hermitage e em instituições italianas”. O custo previsto de funcionamento anual do pólo, compartilhada pela Itália e pela Rússia, é de 500.000 euros. São todos estes dados importantes para se perceber quão megalómano e gravoso é o disparate de que o acto I está agora exposto na Ajuda. O Hermitage alugou e o Estado Português, através da ministra da Cultura, pagou do orçamento público e do mecenato que para aí canalizou, 1, 5 milhões de euros! Isto quando, para além de serem outras as evidentes prioridades das políticas culturais públicas, das políticas para as artes e para os museus, não existem laços, “know-how” ou fundos privados possíveis que fundamentem a viabilidade e interesse de um pólo local do Hermitage. Quando se parte para tão extravagante projecto no desconhecimento de que a outra parte é um dos mais agressivos actores deste novo “capitalismo global” dos museus, o desastre anuncia-se. Ainda assim, as piores expectativas foram ultrapassadas: “Arte e Cultura do Império Russo nas Colecções do Hermitage: de Pedro, O Grande, a Nicolau II” é uma mostra sem valor pictórico algum, constituída por reservas sem qualquer relevo, apenas com algumas valias decorativas. É uma exposição que afinal comprova os conceitos mais absolutamente retrógrados de “arte e cultura”, e já que dela não serão feitas deduções sobre as lógicas de museus, é esse carácter absolutamente retrógrado o seu triste valor paradigmático. |