|
VOYEURISMO MUSEOLÓGICO: UMA VISITA AO DEPOT NO MUSEU BOIJMANS VAN BEUNINGEN, EM ROTERDÃODENISE POLLINI2023-09-12
Um edifício de seis andares planejado pelo escritório de arquitetura holandês MVRDV, e totalmente dedicado a expor o acervo do Museu Boijmans Van Beuningen: o chamado “Depot”, foi inteiramente construído em metal e vidro e permite aos visitantes entrar em contato com as obras de arte da coleção de diversas maneiras: através de “vitrines” que expõem as estruturas tradicionais de reservas técnicas de museus para abrigar obras de arte mas não só, também em painéis de vidro com pinturas suspensas ou ainda “pontes de vidro” que cruzam o espaço e nos permitem “passear sobre a obra” e, no caso de obras contemporâneas – como por exemplo o trabalho de Maurizio Cattelan, “Untitled” (2001) – através de uma estrutura em vidro especialmente projetada para abrigar aquela obra. Uma das salas, dedicada aos highlights da coleção, apresenta as pinturas em cavaletes de vidro, cuja inspiração, a partir do trabalho da arquiteta Ítalo-brasileira, Lina Bo Bardi, é referida em um vídeo que documenta uma visita técnica ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), no Brasil, local onde os cavaletes de vidro foram originalmente projetados no final dos anos 1960. Os vídeos espalhados pelo edifício frequentemente focam sua narrativa em pessoas ligadas ao staff como, por exemplo, o guarda Renzo van Riemsdij. Graduado em música, Renzo trabalha como engenheiro de som em seu próprio estúdio durante o dia e como segurança no Depot Boijmans pela noite. O trabalho dos conservadores é apresentado e destacado pela visão oferecida pelas paredes de vidro que permitem a visão dos laboratórios, nos quais os visitantes podem observar o trabalho sendo executado pelos conservadores, rodeados de todo o equipamento técnico necessário à função. Tendo em mente que a experiência de um Museu é orientada, em grande medida, pela visão, aqui o contato visual adquire uma nova camada, uma camada voyerística: a experiência de ver aquilo que está escondido ou por trás da obra de arte – dando uma espiadela no trabalho que é desenvolvido nas obras e, obtendo um vislumbre através de um ângulo, uma janela – está em toda a parte e tudo colabora para uma experiência de um escrutínio máximo da obra. E com isso uma irresistível intimidade é promovida, de onde advém o acento voyeurístico. Tal sentimento é reforçado pela visão das etiquetas atrás das molduras das pinturas. Em um certo ponto, eu me encontrei observando escrupulosamente estas etiquetas, que são colocadas na parte de trás da moldura de uma obra cada vez que ela participa de uma nova exposição em outro Museu. A sensação era a de estar a ler a biografia daquela obra de arte específica.
@ Denise Pollini
Portanto, no Depot a experiência da obra de arte não é somente aquela da obra, mas também aquilo que é feito com ela: nos laboratórios de conservação, ao redor de seus parâmetros de segurança e, aquilo que poderíamos chamar de “dispositivo do Museu” é exposto ao visitante de uma forma espetacular. Podemos afirmar que uma nova era no domínio da experiência museológica se abre com este edifício – que, segundo consta é o primeiro acervo de obras de arte no mundo aberto à visitação pública. Primeiro porque, até a expressão negativa que frequentemente é atribuída às coleções de Museus como sendo inventários mortos, reclusos e escuros pede por uma revisão com este prédio. Quer gostemos ou não daquilo que vemos, fato é que no Depot a coleção está em movimento, em um tipo de trânsito simbólico enquanto ela é vivenciada pelos visitantes. Se a personalidade de um Museu é definida pela sua coleção, vale a pena refletir aqui sobre qual será a relação entre o Depot e o Museu Boijmans Van Beuningen, que está fechado para renovação. As expectativas são seguramente altas, tanto pelo ambicioso escopo do Depot, como pelas palavras no website da instituição que se referem a um “Museu à prova de futuro que deve abrir em 2029, [1]”. Outra reflexão importante será como tal estrutura vai envelhecer. Como o público vai se relacionar com o edifício uma vez que a frescura da novidade passe? Os visitantes vão retornar ao Depot para rever as suas obras de arte favoritas? Ou irão retornar para re-experienciar a visão das obras de arte em uma conexão tão próxima? Com a minha análise eu não desejo afirmar que o voyeurismo oferecido pelo edifício (e pela maneira como as obras de arte estão nele expostas) é negativo em si mesmo... Mesmo tendo em consideração a clara espetacularização oferecida pela experiência. O que é evidente no Depot é que este materializa um novo contato entre visitantes e as obras de arte (e um tipo de convivência que veio para ficar). O Depot não é um Museu, definitivamente não. É outra coisa, muito mais em trânsito, em estado de transição, como se estivéssemos testemunhando uma mudança sendo realizada ao vivo. Mas tudo indica que esta experiência se tornará uma nova moda entre os Museus Europeus, Britânicos e Norte-Americanos. Mas o que mais me interessa é que tipo de relação que este edifício está projetando para o futuro dos Museus e que tipo de Museu vai nascer desta relação iniciada pelo Depot. Tendo em mente a minha convicção de que os Museus são lugares de encontro: de pessoas, de sentidos, de caminhos, o que me parece relevante aqui é refletir em como este edifício, e tudo o que é feito dele, contribui para que as instituições museológicas se tornem mais inclusivas, mais porosas e mais verdadeiras. O fato do Depot não ser um Museu não o exime da responsabilidade social a que um Museu está sujeito. O tempo vai dizer o que toda esta empreitada vai fazer com essa responsabilidade.
Denise Pollini
:::
Notas [1] Renovating for the future, visitado em 06/08/2023.
|