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MARLENE DUMAS ENTRE IMPRESSIONISTAS, ROMÂNTICOS E SUMÉRIOSMARC LENOT2021-10-30
Marlene Dumas, The Death of the Author, 2003, óleo sobre tela, 40x50cm, colecção Julie van Leeuwen.
Mais interessante é a reflexão em torno da pintura dessa mulher negra nua, pernas pendentes, tombada exausta sobre uma cama, que foi colocada entre um Bonnard e um Toulouse Lautrec de formas similares, mas que, em Dumas, foi inspirada por uma fotografia de David Hamilton. O título, Esperando (por significado), não tem evidentemente nenhuma relação com a imagem oferecida, mas traduz ao invés a perplexidade da artista diante da pintura, e, portanto, a do espectador, "frustrada a expectativa de um significado derivado de uma imagem”. Quanto à conversa entre a Noite Estrelada de Van Gogh e a testa brilhante de Moshekwa, Dumas tem dificuldade em convencer. Muito mais bem conseguida é a exposição no nível 2 na qual Marlene Dumas homenageia Baudelaire pelo seu bicentenário, primeiro com dois retratos (e também Jeanne Duval), em seguida ilustrando alguns dos seus poemas menos conhecidos (o brinquedo do pobre, o desespero da velha), pintando certos temas caros ao poeta (o rato, a garrafa, a vela). Nesta longa sala, no meio de uma vintena de pinturas de Dumas, é criada uma atmosfera baudelairiana, melancólica e sensual. Três grandes composições ilustram o acto artístico; intituladas a origem da pintura, o tempo e a quimera, e a feitura (The Making of), elas mostram o acto criativo ele mesmo, desenho de uma sombra ou modelagem de uma estátua. No fim da sala, a Senhora de Uruk. Uruk é a cidade mesopotâmica onde, ao que parece, a escrita cuneiforme foi inventada por volta do 4º milénio a.C.; a Senhora de Uruk é uma estátua de pedra calcária e mármore de cerca de 3.300 a.C., uma das mais antigas representações de um rosto de mulher. São esses traços que Marlene Dumas retoma aqui para celebrar uma forma de beleza eterna, intemporal (Dumas também pintou Nefertiti). Que ligação com Baudelaire? Talvez a tonalidade baudelairiana desses versos da epopeia de Gilgamesh, o rei de Uruk desesperado com a morte do seu duplo Enkidu: "Meu deus, o dia brilha, resplandece na terra, para mim o dia é negro, a tristeza, a angústia, o desespero bem dentro de mim, o sofrimento envolve-me como um ser escolhido unicamente para lágrimas.” Um pretexto ténue, mas sagaz.
Marc Lenot |