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VÂNIA DOUTEL VAZ: CADA DECISÃO É A PONTA DE UM ICEBERGFILIPA BOSSUET2025-04-23![]()
Em família era chamada de engenhocas e aqui poderá surgir o que Vânia Doutel Vaz refere uma questão antropológica “do que faz uma pessoa”. Manuseava qualquer objeto eletrónico intuitivamente, o manual de instruções era o conhecimento que tinha sobre o próprio corpo formado desde os cinco anos pelo ballet, ensinado pela professora Nanda (Fernanda Mafra) na Quimigal, pela expansão da relação dos mecanismos do mundo material com outras formas de existir mais orgânica, habilidade aplicada no seu mundo que se inicia na Margem Sul. A neta da avó Odete, aluna da Escola de Dança do Conservatório Nacional, estagiária da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, bailarina membro da Revista à Portuguesa Parque Mayer, Nederlands Dans Theater, Cedar Lake Contemporary Ballet (CLCB) e PUNCHDRUNK. Em toda esta trajetória colaborou com Trajal Harrell, Zia Soares, Ligia Lewis, Sónia Batista, Aurora Negra, Lubanzadyo Mpemba Bula, entre outros, que a fizeram permitir-se falar da maneira que fala e interessar-se pelo que a interessa. Criadora da vídeo-performance, ad aeternum, a performance KaraoKoncert, o espetáculo O Elefante no Meio da Sala e Violetas - espetáculo em construção.
Por Filipa Bossuet
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Lembro-me de já ser capaz de criar memórias quando os meus pais compraram uma casa na Baixa da Banheira através de um financiamento de 100%. Lembro-me de estar num quarto com a minha irmã e estarmos a celebrar termos uma cama para cada uma. Recentemente tenho tentado encontrar memórias que antecedem esse momento e não pergunto à minha mãe e ao meu pai porque acho que há muita dor nessas memórias - o lugar de uma completa dependência financeira, que nem sequer é da tua família, mas de um Estado que te mandou fora do teu país. Cresci entre a casa da minha avó materna e da minha avó paterna. A casa da minha avó materna era no Vale da Amoreira, um dos bairros sociais mais literalmente postos de fora da grande metrópole. Há vários bairros periféricos que são mais ou menos próximos, há alguma facilidade de acessos, por exemplo, a Cova da Moura é um bairro periférico, mas tem uma proximidade do centro da capital. O Vale da Amoreira está muito longe, é a primeira paragem do autocarro que leva ao Barreiro, no terminal dos barcos. Se não tens viatura própria, tu estás dependente de uma viagem que passa por todos os bairros até chegar ao destino, mesmo de bicicleta é longe. É aquela história: vais ter que penar até chegar onde tu deverias ter acesso. É bué específico, metafórico, literal, esta localização geográfica do Vale da Amoreira enquanto conceito de bairro social - está ao pé de uma autoestrada, o verde está cuidado pelas pessoas que lá habitam porque a Câmara não está assim tão investida sobre isso. A minha avó materna, que já transicionou, é um grande exemplo para mim. É a matriarca que marcou a nossa família. Me identifico bué, eu uso o nome dela às vezes - Odete - tenho muito respeito por esse nome, então escolho bem quando é que uso. Há um bocado esta coisa dentro da minha família de se eu disser que ando a usar o nome da minha avó vão dizer: “cuidado, esse nome é sagrado”. O nome é lindo e eu quero que ela se mantenha presente na minha vida. Os meus dois primos, a Jara e o Rui, nasceram em Angola e vieram para Portugal para viver com ela porque os seus pais ficaram em Angola, portanto, eu e a minha irmã crescemos com eles, somos quatro tipo irmãos. O Rui é o único rapaz, depois são bué mulheres na família. Este lado materno é mesmo bem pesado na mulher [risos] então a minha memória é de crescer assim, ser a caçula e estar a ir meio atrás da minha irmã, da minha prima, do meu primo, estar com a minha avó – não ter que tomar decisões e seguir. Do lado do meu pai, era Setúbal. A minha avó agora mora na Quinta do Conde e ela esteve em várias casas. Ela cuidava de casas então, várias vezes morava no anexo, eram vivendas que tinham uma casinha lá atrás onde ela morava. Existiam situações em que a família comprava uma casa maior então ela ia também. Antes disso, tenho memória de morar num prédio de um bairro social em Setúbal, algures nessa zona. Palmela, também tenho família nessa zona. Aos cinco anos comecei a dançar ballet na Quimigal, no Barreiro, com a minha professora Fernanda Mafra, uma mulher que eu nunca soube muito bem, mas a família é da Índia, o que cria estes fios de ligação da ocupação portuguesa pelo mundo. Ela era uma foster parent, então tinha sempre crianças na casa dela temporariamente – anos, meses ou às vezes semanas. Estava sempre rodeada de crianças e tinha cães e gatos. Esta era a Nanda, uma mulher solteira com bué crianças à volta, uma grande professora de ballet, muito muito boa. Todas as alunas que vinham das mãos da Nanda entravam diretamente, fazíamos sempre audição, mas todas passavam porque eram as pessoas que vinham mais bem treinadas, porque a maioria das pessoas no conservatório eram as meninas ricas, não tinham grande experiência. Nós fazíamos o Royal Academy of Dance, que são as examinadoras que vão de Inglaterra a várias partes do mundo analisar bailarinos, ou seja, iriam saber em cada país, em cada cidade quem eram as pessoas com distinction, excellence, etc. Recebíamos um diploma com uma nota. Aos seis anos fiz o meu primeiro exame e estive a fazer exames anuais até aos treze anos. Isto é um formato que tem como objetivo criar um standart de educação, isto é colonização on steroids no ballet, ou seja, querem garantir que há uma uniformidade de ensino no ballet. Recebemos esse prestígio, a assinatura de que tivemos a educação da Royal Academy of Dance, mas o que isso quer dizer é a garantia de que estão de olho em toda a gente que está a fazer dança. Eu adoro falar da minha bio, porque cada vez que falo da minha biografia sai um ângulo diferente, há uma nova análise que eu faço sobre a minha própria vida e esta nunca tinha dito em voz alta. A Nanda era professora licenciada ou autorizada a ensinar este ensino da Royal Academy of Dance. Cada ano treinávamos uma aula que estava numa cassete, havia nove aulas sendo que a aula zero era a mais básica. Nós aprendíamos cada ano e um ano depois vinha uma examinadora da Inglaterra - entrávamos numa sala sem a Nanda, com a aula decorada e dizíamos “Good morning mrs x, my name is Vânia”, uma de cada vez numa fila, íamos para o nosso lugar e começávamos a aula em que ninguém dizia nada. Fazíamos a aula sucessivamente, tínhamos a aula decorada.
Não havia liberdade no formato, mas eu diria que a crítica parte do que é o master plan. É que o ballet é um grande treino, é como qualquer técnica, está muito bem pensada, já existe há muito tempo, já houve várias pessoas que vieram e canalizaram, pensaram. Uma comparação é o yoga na cena da inversão, de manter uma posição, é quase uma meditação. Quando se aprende ballet consegue-se dissociar, o corpo está disponível para aceder a posições que de alguma maneira trazem uma saúde porque há uma circulação do corpo, há uma noção do espaço, noção temporal da relação com a música, há uma relação dos olhos com aquilo que estás a fazer em que consegues estar presente. Ou seja, eu critico a dança clássica no seu lugar de elitismo societal e relacionado com a monarquia, mas há todo um outro lado do ballet que é bué eficaz numa relação de domínio corporal – à parte daquilo que deforma um corpo, mas imaginando que não há grande sofrimento e que o corpo tem apetência para essa formação. Se o corpo está ali a resistir é melhor fazer outra coisa, mas se o corpo tem apetência – e o meu corpo tinha – não é uma dor, não há sofrimento, desfruta-se do que são as possibilidades enquanto criança do corpo poder abrir, expressar-se e movimentar-se. A Nanda tinha toda uma programação paralela a todo esse sistema em que ela punha uma música e dizia: “vamos ouvir esta música e façam o que quiserem no estúdio”. Era sempre uma música clássica, andávamos pelo espaço a ouvir a música e a fazer o que nós quiséssemos e ela dizia: “agora vou pôr a música outra vez e vocês vão contar uma história com o corpo”. Tivemos uma relação com a música, percebemos o início, meio e fim dela – o que a memória de cada uma permite aceder – e quando voltamos a ouvir praticamos essa noção de escuta. É quase, talvez, como um académico que está a trabalhar um texto em que depois de ler várias vezes começa a perceber a estrutura do texto, como antecipa, consegue resumir, criar um ponto principal, desenvolver e terminar. É como qualquer técnica, trabalho. O que me lembro muito é desse momento antes de saber o que é um tendu, frappé, plié, port de bras, promenade, o que são estes nomes franceses que é a língua do ballet, aprendi primeiro a dançar, o que é a relação do corpo com contar uma história, que é uma noção de assumirmos que vamos ser observadas, que temos alguma responsabilidade nessa comunicação e que através do nosso corpo conseguimos comunicar, conseguimos estar conscientes do espaço. Estamos todos ao mesmo tempo pelo espaço, não era só eu sozinha num estúdio aberto a criar esta história, era eu mais as minhas sete ou dez colegas a lidar com o espaço, a passarmos umas pelas outras, a escolhermos o lugar onde íamos fazer alguma coisa. Tudo isto porque havia uma dança no primeiro ano desse tal exame em que nós fazíamos uma dancinha que era coreografada, mas era algo, por exemplo, com a temática “a bruxa com o caldeirão” onde tínhamos que fazer uma cena, mexer, fazer uma expressão. Havia um espaço para a interpretação e era aí que se via a capacidade da criança de reproduzir algo ensaiado, criar a sua própria cena e uma mistura das duas coisas. A minha professora tinha esse lugar que nos dava a liberdade de nos desenvolvermos enquanto criativas, para além de tudo aquilo que tínhamos que fazer que era estruturado. Ela era mesmo muito boa, percebia o corpo, era obviamente má – tinha umas unhas longas e arranhava-nos as pernas para esticarmos o corpo, punha os pés em cima das nossas pernas quando estávamos a fazer a espargata, ou seja, há obviamente essa tortura que está incluída na aprendizagem do ballet, como há na ginástica, etc. E quem não sofreu a tortura provavelmente desistiu porque nunca chegou a ser muito boa. Este tipo de trabalhos impõem uma entrega do corpo a um contacto com o impossível quase, o super-humano, o militarismo.
A minha base é o ballet. Fiz ballet dos cinco aos dezoito. Estive no Barreiro a fazer aulas de ballet durante cinco anos. Cinco anos depois entro no Conservatório Nacional de Dança e continuo as aulas com a Nanda, portanto, eu vinha de Lisboa e ainda continuava a fazer aulas, o que era bué exaustivo, não havia necessidade. Eu já era a melhor da turma no Conservatório, porque em comparação com as minhas colegas eu tinha corpo de bebé, mas já todo trabalhado porque fazia ballet bem feito há cinco anos. Não era aquele ballet em que se fica só ali a brincar com a roupa cor-de-rosa como aquela imagem das crianças com os tutus. Não tínhamos tutus, nós tínhamos um maiô, collants e sapatilha, para se ver o corpo todo e a Nanda ficar ali literalmente a dobrar-nos o corpo. Não havia a roupinha fofa do ballet, era a roupa técnica do ballet para se ver o trabalho. É como a ginástica, acho que na ginástica as pessoas têm mais capacidade de imaginar o que é essa restrição e essa exigência.
Eu não pensava assim tão à frente, eu acho que no momento estava mais obcecada com fazer bem e melhor, superar-me. Eu não sei se esta educação me criou, me tornou ou se eu já tinha esta apetência. Eu era tipo the good student, a miúda que toda a gente gostava porque estava obcecada – eu lembrava-me das cenas, fazia mais aulas do que devia. Eu era ballet obsessed. Eu tive todo este percurso mega exigente, mega devoto ao ballet sem questionar, a literal disponibilidade total do corpo sem questionar. Aos 18 anos eu saí do Conservatório, comecei a trabalhar na Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC) e foi a primeira vez que tive um momento para pensar: “deixei tudo aquilo que eu conheço, estou agora a trabalhar com pessoas adultas que já trabalham há muito tempo, não é nada uma escola. Como eu estou aqui neste nível?”. Tinha as tardes livres porque era estagiária e estava assim numa situação muito estranha. As minhas melhores amigas tinham ido embora para fazerem uma escola na Holanda, eu estava a receber dinheiro também, que era uma cena muito fora, de repente, 700 euros por mês, estava a ser paga pelo governo, uma coisa que acho que já não se faz na dança. Como era estagiária, ainda tinha muito para aprender porque quando se sai de uma escola, por mais técnica que se tenha não se está logo capaz de fazer um grande espetáculo, aí voltas à escala zero – estás só admitida a pertencer, mas tens muito para aprender. Tinha ensaios de manhã, às vezes à tarde eram ensaios de solos e eu não tinha que ficar. Tive que aprender sozinha como se lida com uma companhia de dança, como é que se lida com esta relação, e foi aí a primeira fratura nesta disciplina, de repente perceber: “ah se calhar posso começar a pensar o que me apetece fazer ou o que eu penso disto”, mas não levei muito a sério porque depois fui para Londres para outro projeto, depois comecei a trabalhar com malta das artes performativas em Portugal, fui para o Fórum Dança, tive um período que trabalhei numa loja de roupa que foi quando pensei: “espera aí, eu preciso de pensar porque é que eu danço” e comecei a trabalhar com a Revista à Portuguesa Parque Mayer, fiz go-go dancing, foi assim um grande desvio até entrar numa grande companhia na Holanda, a Nederlands Dans Theater – no formato da dança contemporânea é a companhia com maior status. Daí eu fui para Nova Iorque. Portanto, de 2003 – quando tinha 18 anos – até 2015 quando a companhia de Nova Iorque fechou, eu só parei de fazer ballet durante 2 anos. Ainda dançava, mas não era ballet. Eu parei de ter que fazer ballet porque nas companhias de repertório – que foi o meu trabalho maioritário – tu começas o dia com uma aula de ballet, é como tu acordas o corpo. Eu tinha essa cena da rotina do ballet que era parte da minha carreira, do meu contrato onde quer que eu estivesse. A companhia fecha e eu nunca mais quis fazer ballet porque este estava há demasiados anos na minha vida.
Sim.
Eu estava a fazer 30 anos e havia 25 anos praticamente da minha vida em que eu fazia ballet todos os dias. 25 anos depois you are a senior. Isto para uma pessoa da medicina – 25 anos a fazer a mesma coisa ou estar no meio – já estendem um tapete vermelho e querem ouvir o que a pessoa tem a dizer, na dança simplesmente és uma máquina. Eu queria deixar de ser uma máquina.
Em 2005, tinha 20 anos. Eu trabalhei durante quatro meses numa loja de roupa, depois entrei no Fórum Dança. Na época, uma amiga disse-me que estava a sair da Revista à Portuguesa no Parque Mayer e que me poderia dar acesso direto. Trabalhava de quinta a domingo, ao fim de semana era matiné e noite, eram seis espetáculos em quatro dias. Ganhava bem para a época. Para mim era muito fácil, só tinha vergonha porque usava pouca roupa - a cena clichê da bailarina de revista que está ali a mostrar o corpo. Esses foram os anos de loucura em que fiz estas coisas ao mesmo tempo, estava a fazer um curso no Fórum Dança em que estava a aprender coreografia com o João Fiadeiro, com a Vera Mantero, a Margarida Bettencourt e o Emmanuelle Huynh – quatro nomes da dança muito fortes naquela altura, mas da dança fora daquilo que eu fazia na altura, a dança conceptual em que o teu corpo é questionado. Eu só pensava: “o que é isto? onde é que eu estou? não percebo nada, quando é que eu posso esticar o pé e fazer uma espargata?”. Eu estava mesmo a sentir que era a bailarina que faz, não a que pensa.
É muito complexo, porque aos cinco anos eu comecei a dançar e não tive uma grande infância, no sentido em que, até aos cinco anos eu fui uma criança, depois dos cinco anos eu não fui mais. Eu estava no ensino básico, acho que terminávamos as aulas às três da tarde e eu ia fazer ballet a seguir. Eu lembro-me de uma vez estar a ir embora, olhar para trás e ver os meus amigos a brincarem na rua e estar tipo: “ah quem me dera”, mas eu não estava desolada porque estava contente por ir ao ballet. Era aquele momento em que se eu tivesse que escolher eu continuava a escolher para onde vou, mas idealmente eu podia fazer as duas coisas. Há muita gente que tem histórias de bué brincadeiras que faziam, eu não tenho grandes histórias de brincadeiras. Tenho algumas memórias de ficar na rua, de cair, esfolar o joelho e ficar a olhar para o joelho a ver a pele a sangrar – cenas mais desse tipo de descoberta. Brincava com bonecas em casa. Infelizmente não tive uma grande experiência de infância em que experimentas e cais, levantas, sobes uma arvore, brincas com um skate e uma bola, carros, corridas, escondidas, desafios imaginários…toda essa pesquisa identitária foi feita pelo ballet. O imaginário dentro do ballet, o imaginário dentro do corpo que se pode expressar nesta noção de correlação dentro de uma prática. Sobre a ideia de militarismo que falei anteriormente, tudo isto só muito mais tarde é que consegui perceber o quanto eu e toda a gente que faz ballet – sejam pessoas de classes sociais mais altas ou alguém com uma história como a minha, ou quem quer que seja – quem faz parte do ballet no nível elevado da prática, tem que sucumbir, fazer um acordo em que se deixa de fazer uma coisa para fazer esta. Qualquer carreira física, qualquer coisa que exija uma devoção física tu tens que dar – tens que alterar a maneira como comes, alterar o teu ritmo de sono, dar prioridade a uma série de coisas e cria-se um mundo à tua volta também para te proteger nisso. Os meus pais tiveram que cuidar para me fazerem garantir que eu conseguia chegar e como era óbvio, comprar os materiais de ballet. Lembro-me de ter um maiô que usava todos os dias que começou a ficar transparente por causa das lavagens frequentes, aquilo não aguentava era uma lycra, só que eu não tinha dinheiro para comprar outro maiô. Lembro-me de um dia olhar para o espelho e ficar chocada por me dar conta de que o maiô estava transparente, dando-me conta que já tinha pêlos púbicos, as mamas começarem a nascer e eu pensar que estava nua. Havia o cuidado dos meus pais de verem o que é o principal, o fundamental para garantir que eu conseguia continuar nesta carreira porque já que estamos a investir, bora investir porque ela gosta, tem talento, não vamos parar agora, ela já perdeu a infância dela basicamente…
Tornou. Depois aqui entram as questões se calhar mais antropológicas, do que é que faz uma pessoa. Em família era chamada de engenhocas. Na altura em que começou a existir a possibilidade das pessoas terem canais por cabo, havia um comando extra para a box ou um DVD Player que tinhas que emparelhar com a televisão, e essas cenas eu conseguia fazer sem olhar para o manual de instruções. Eu sabia emparelhar um comando com uma televisão, era uma das coisas que eu sabia fazer. Tinha este conhecimento, habilidade para engenharia.
Para mecanismos, e era uma coisa bué fora. Na altura dos telemóveis eu lembro-me de ter de se tirar a bateria para carregar, o telemóvel ficava fora de uso. Abria-se o telemóvel sabia-se onde o cartão e a bateria iam, via-se os cabos. A relação com o mundo material tinha muito desta coisa mais orgânica, quase semelhante a uma biologia. Nesse lugar eu tinha essa relação que pode ser feito um paralelo com o conhecer tão bem o meu corpo que conseguia conhecer um outro corpo biótico. Só que agora, em que está tudo feito de uma maneira quase mágica, tu vês um objeto que funciona, por exemplo, o meu telemóvel está aqui, não há uma maneira de abrir e ver como ele é por dentro, no máximo abres de lado e sai o cartão, mas é um espaço vazio onde o cartão entra e de repente funciona.
Eu acho que antigamente tudo o que se criava estava mais próximo do corpo humano, hoje em dia tudo o que se cria está muito mais longe e é sobre quase o corpo humano ficar mais próximo de uma tecnologia "tecnológica", não análoga à tecnologia que podemos ter no nosso corpo. Essa ideia de uma tecnologia que é quase invisível e é elétrica. É quase como antes era o corpo a inspirar a máquina e agora é a máquina a querer que o corpo a acompanhe, ou que se perca nessa máquina. Naquela altura, como o meu corpo estava em descoberta de si eu estava interessada naquilo que tinha acesso, que felizmente era muito em paralelo com essa mecânica do corpo. Hoje em dia mudámos a relação do corpo com a tecnologia e então acho que por haver essa separação não me identifico tanto – eu não tenho qualquer desejo de estar próxima, dependente da inteligência artificial ou da realidade aumentada, essas coisas não me interessam. Não tenho medo, tenho é pena porque acho que vai tirar tudo aquilo que é mais lindo, especial, particular e único ao ser humano. Isto para dizer que a minha subjetividade na dança vem desse lugar em que sempre estive interessada, em perceber também como as coisas funcionam: porque é que eu estou aqui e não ali? O que é que me faz reagir desta maneira? O que é que me faz relacionar desta maneira? Eu estava de alguma maneira sempre a instigar as interações, desde interpessoais, como interespaciais, temporais, que são na verdade coisas da dança. É quase como teres a dança, teres a pessoa e depois tens a tecnologia, que são tudo coisas com que podes fazer paralelos nas suas construções. A minha mãe é socióloga, não sei se isso terá alguma influência porque ainda ando para perceber o quão isso foi só a referência de mãe – de uma pessoa que te inspira e que é o teu ídolo, o teu tudo durante muito tempo na tua vida, até porque o meu pai terminou o 9º ano e não continuou a estudar, depois trabalhou em várias coisas diferentes como mão de obra – as coisas mais clássicas –, jogou futebol mas depois não seguiu a carreira, outra história... Então a minha mãe a nível da academia, pensamento mais lógico, mais coerente, estruturado, seguiu como exemplo de pensamento para mim durante muito tempo. Sempre tive esta relação de curiosidade de análise sobre o ser humano, então a dança obviamente também traz muito do refletir a sociedade a nível de emoções, estados. A minha subjetividade está cada vez mais a ser desenvolvida ou cimentada num lugar algures entre este militarismo, esta técnica absurda e domínio absurdo do corpo, no sentido em que é um extremo e ao mesmo tempo será que é necessário? Ao mesmo tempo permite uma outra relação com o presente, com o mundo, com a atualidade, humanidade, que me traz alguma vertigem sobre o lugar académico que é um domínio total do lado intelectual, do discurso. Por consequência de coisas que vão acontecendo na minha vida pessoal e profissional, cada momento do presente faz-me conseguir fazer uma análise melhor e maior sobre o meu passado. Ao falar contigo, estou a incluir todo o meu presente que já me está a ensinar milhentas lições pessoais, artísticas e existenciais que eu não tinha há um ano atrás. Ano a ano eu vou fazendo quase que um upload – por falar em tecnologias [risos]. Como disse anteriormente, cada vez que digo a minha bio em voz alta ela é refeita, é repensada. Eu sou zero estática. Sou Peixes, sei o suficiente da astrologia para me enquadrar de alguma maneira com aquilo que é o meu mapa astral, não sei o suficiente para fazer uma análise maior, mas o que sei é que imaginando os elementos terra, ar, água e fogo, eu sou muito água e muito fogo. O fogo que é esta coisa do impulso e do imediatismo, do quero as coisas para ontem e quero já, e o outro lado que é a água, que é tipo eu estou hoje aqui e amanhã não sei, não me ponham num aquário porque eu sou mar. Às vezes estou calma, às vezes estou em grandes ondas, tempestade, outras vezes em calmaria total. Toda a gente tem uma infinitude e uma complexidade individual, no meu caso tem mais que ver com a temporalidade da minha existência que é literalmente mutável, que é uma coisa interessante mas quase que faz com que seja impossível eu própria ganhar uma definição sobre aquilo que sou. O ballet está cada vez mais a ser usado como referência na minha prática, porque felizmente estou a conseguir fazer essa análise, também com esta conversa toda que estamos a ter. Há uns cinco anos eu não colocaria o ballet como principal foco de conversa sobre a minha carreira, diria: “sim, sim, fiz ballet, mas estou a trabalhar com esta pessoa, aquela e outra pessoa”, ou seja, a minha identidade em referência com quem eu trabalhei, por onde passei. Hoje em dia isso serve para encher o saco de que isto tudo sou eu, faz com que hoje consiga falar da maneira que eu estou a falar, que me interesse pelo que estou interessada. Atualmente estou muito interessada na ideia do Joker, do bobo da corte – alguém que tem acesso para dizer o que quiser, para falar diretamente com o rei, participar do reinado e ter informação daquele meio, das guerras, dos outros povos e vir segredar ao rei ou então fazer uma grande cena, interromper cenas. Ser perturbador, disruptivo. Um paradoxo que eu ando a fazer recentemente entre esta ideia do ballet – que faz parte de uma estrutura mega hierárquica, restrita e impositiva, em que não há discurso da pessoa que executa o ballet – e a arte do clown que não é obviamente do nariz vermelho, mas a que procuras a personagem em ti, que lida com a falha, a improvisação, a reestruturação de uma cena pelo presente, pelo instinto, diálogo, que impõe contar uma história, fazer uma crítica e impõe abandonar e baralhar tudo. Estou a sentir-me neste momento neste lugar em que poderei fazer uma ligação entre o ballet e o clown em mim. Uma característica do clown é a falha, a dança de ballet clássico não lida com a falha, é literalmente para cobrir a falha, não há espaço para a falha na dança clássica, nem no contemporâneo na verdade – a falha é mostrada de uma maneira bem elaborada, é sempre para deslumbrar. O clown usa mesmo esta coisa de cair de cara no chão, e no meu caso estou interessada nesses dois lugares porque o meu corpo já não faz o que fazia e há quase que um ajuste que tem que ser feito sobre eu perceber qual é a realidade do meu corpo hoje, dentro do meu imaginário e a minha realidade. São conceitos que para mim são super interessantes e possíveis de caber dentro deste lugar entre o ballet e o clown. É um bocado tipo: “wow, acordei agora e tenho 40 anos e já não faço espargatas e dói-me o corpo”, isto é uma perfeita cena para um clown. Desde miúda que me chamam sempre de palhaça, eu copiava caras, era bué expressiva, há um lugar meu de atriz que esteve sempre presente. Por acaso gostava de fazer um curso de clown, mas na verdade o que me interessa é mais a ideia que tenho sobre o clown do que a própria prática. Não me interessa voltar a fazer mais um estudo sobre uma prática, uma técnica, que me impõe. O que eu quero é liberdade. O Trajal [Trajal Harrell] é que me inspirou nesta ideia de me permitir apropriar de técnicas ou de trabalhos pelo seu acesso, ou seja, o meu acesso ao clown chegou como um livro chega – chega porque tu chamaste, tu precisas dele. O clown chegou a mim e eu não tenho que continuar a procurar pelo clown. O que quer que seja que eu sinto que é do clown e quero aplicar à minha prática, serve. É mais sobre o que eu faço com, do que o quanto eu sei do clown. O que é que é a minha perspetiva sobre. Acho que isso são lugares recentes do acesso que está a ser dado a mulheres negras dentro das artes, dentro do mundo. Até agora tens que fazer um estudo enorme, tens de ter não sei o quê, estado no sítio x e y, tens que ter uma série de coisas para te ser dado esse lugar de fala. Agora, nós simplesmente temos o direito de impor esse lugar que nunca nos foi dado e neste momento – falando da bolha onde estamos a pertencer, obviamente ainda há muita falta de acesso e falta de respeito – acredito que exista uma permissão para fazermos o que quisermos, pela dívida que há. É a maneira que as pessoas se desculpam. Há muitas de nós a aceitar esse desafio ou a aceitar essa oportunidade, a dar conta e a ocupar essa oportunidade no lugar de: “eu vou agora criar uma nova narrativa, então eu identifico-me assim, eu crio uma história, que é fictícia porque eu posso, porque eu quero, porque não há registo sobre a história que quero contar então eu vou ter que fazê-la. Se eu tenho que fazer, vou refazer tudo aquilo, que é como eu me apresento”. É uma autoridade que nos podemos dar para esse lugar de fala que é recente. Porque é que eu vou tentar ser o que as pessoas foram até agora? Agora que tenho acesso, eu vou criar este lugar, vou reinventá-lo, vou inventar-me e vou apresentar-me como quiser. É um lugar que acho ser muito vivenciado pela comunidade trans, por exemplo, de nova identidade, um lugar de liberdade. Até agora tivemos que nos identificar com aquilo que as pessoas reconheciam, aceitavam e nos certificavam. Agora este lugar não nos serve, serve-nos o lugar da liberdade, da possibilidade de uma identidade que se altera constantemente. Faz-me sentido esse lugar.
Bailarino, coreógrafo da Georgia, United States. Já está baseado na Europa há bué. Põe mundos quase opostos em contacto, em sobreposições. É tipo conspiracy theory, por exemplo, o que seria o the voguing scene ter descido downtown Manhattan - onde era o movimento de dança minimalista e anti virtuosismo, anti performático, literalmente o oposto do vogue. Nos anos 60, o que seria esse encontro ter acontecido – o extremo extravagante cenário do vogue encontrar-se e dialogar com o minimalismo e anti espetáculo manifesto de Judson Church. Ou então a mistura da bailarina Katherine Dunham, uma super referência da dança contemporânea, que foi ao Japão e há a possibilidade de que o Tatsumi Hijikata, um dos criadores e pioneiros do butoh, tenha visto um espetáculo dela inspirando-o para a sua prática.
Butoh é um estilo de dança japonesa que é basicamente sobre ficares feia, mostrares-te velha, mostrares o teu corpo decadente ou então apresentares-te nessa decadência, “moribundisse”. No Japão, a velhice é uma coisa muito apreciada e respeitada. Na sociedade ocidental nórdica, do Hemisfério Norte, a velhice fica escondida, é feia, cheira mal e se morrer melhor. Na cultura japonesa não, na cultura africana também não. O Trajal trabalha com butoh mas sem ter aprendido muito, só que ele permite-se. Trabalha com butoh, voguing e runway fashion, mistura os três. Ele tem uma obsessão por fashion, então ele consegue ter uma relação com a moda – uma grande maneira de se fazer uma análise social – e faz coisas que para mim e para muita gente já são um bocado básicas – de meter homens em vestidos, vestir à tua frente roupas muito justas que não servem – esta ideia do que a moda pode fazer a um corpo, o que uma roupa pode fazer a um corpo, o que acrescenta, o que um corpo vestido com um determinado material, cor, forma, pode fazer de uma pessoa. Como te observam e como uma pessoa se sente com uma determinada roupa. How do you model this item? Que é um bocado quase pôr um outro corpo ao lado, o corpo enquanto bailarina faz uma coisa e o corpo de bailarina com esta roupa, esta identidade, fantasia, como se apresenta? Depois o voguing scene, que é extravagância, que ele também faz de uma maneira muito subtil, não é óbvia, evidente, mas tem, muitas vezes, a pessoa que fala ao microfone e está a descrever. O butoh – depois dessa verticalidade toda, beleza e fantasia – é um desconstruir de toda essa exuberância. Todos estes trabalhos ele faz enquanto pesquisa própria: já foi ao Japão muitas vezes, já esteve em Harlem nos desfiles do voguing há bué anos antes de estar na moda. O acesso que ele tem à moda tem que ver com a mãe dele que era obcecada também, eles iam a thrift shops procurar várias coisas e encontravam grandes cenas. São coisas que são da identidade dele e que ele se apropria da maneira como lhe chegaram, cria um formato de linguagem artística, então para mim é super inspirador. É um intelectual, um homem negro privilegiado que teve acessos porque não era pobre, é outra relação no mundo mas que lhe permite realmente estar dentro do sistema como ele quer.
Já trabalho com ele desde 2018. Em 2017 conhecemo-nos e começámos a fazer residências. É a pessoa com quem eu mais trabalho.
Não, foi numa audição. Ele nunca fazia audições, ele trabalhava com as pessoas que conhecia e era sempre com homens brancos. Obviamente há muitas coisas para questionar, mas é fora porque também é super crítico o lugar de um homem negro trabalhar com homens brancos modelos, bailarinos, todos muito fit, bué lindos. A primeira peça que nós fizemos foi Maggie The Cat, que é um twist na história da Cat on a Hot Tin Roof do Tennesse Williams, em que na adaptação fílmica uma das personagens principais interpretada pela atriz Elizabeth Taylor chama-se Maggie. Ele sempre quis fazer esta peça porque Cat representaria o cat walk, pussy cat do vogue. Ele faz a versão the servent que ninguém vê porque no filme inteiro só vês pessoas brancas, tens algumas pessoas negras a passarem, mas não mostram a cara e são todas servent – é uma cena bué segregadora, shamefully. Nunca se sabe bem se isto foi uma coisa proposital, uma crítica social, aliás é muito uma crítica social porque a Maggie nesse filme é uma branca pobre e o marido dela é rico, ainda por cima parece que ele é gay ou bisexual. O filme é muito antigo, mas tem ali um subtexto que pode ser bué disruptivo e arriscado para a época. Foi a primeira peça que ele fez com um elenco que ele escolheu numa audição. Desde aí, a maioria dessas pessoas têm trabalhado com ele.
Exato, a audição era para fazer um trabalho em Londres, uma retrospectiva do trabalho dele. Na altura ele só tinha trabalhado com duas mulheres, todo o resto eram homens. Era para fazer uma cena no Barbican Center em que não se dava financiamento para alojamento nem nada, então tinham que ser artistas baseados em Londres e eu não era, estava em Nova Iorque na altura. E ele disse-me que não seria esse projeto, mas que tinha uma trilogia que queria que eu fizesse parte de pelo menos duas partes - fiz a peça O Medea, Maggie the Cat e entretanto já faço também a Deathbed of Katherine Dunham, porque a O Medea deixou de ser feita.
Eu quero liberdade. Esta ideia de ser artista é uma mentira se nós dissermos “eu estou a fazer arte para mim” até porque nem deve ser assim, não faz sentido fazeres arte para ti senão chama-se um hobby - é aquilo que fazes para te entreter no teu tempo livre, tu e tu. Quando implicas um público ou quando te posicionas num lugar em que te dás à observação e opinião alheia, tu tens uma responsabilidade de alguma maneira, não é só andar na rua. Até andar na rua é uma responsabilidade cívica, nem todos os corpos são ajudados pelas regras e leis impostas, mas há uma ideia de organização social, enfim. Isto para dizer que quem é artista quer um reconhecimento, quer garantir que é entendida. Eu imagino-me no campo das pessoas que preferem fazer aquilo que têm vontade e ter, por exemplo, O Elefante no Meio da Sala cinco vezes em cena e ficou por aí. Eu adorava que a peça girasse mais, mas se a peça não voltar a ser feita, ela já existiu, já foi vista, não teve uma grande vida nos palcos mas, para mim, tem uma longa vida porque faz parte da minha vida. Daqui a alguns anos imaginando que o mundo não explodiu e não se extinguiu, que ainda existem seres humanos daqui a 100 anos e já há um outro acesso a arquivos, imagino que possam dizer: “ah mas houve ali aquela pessoa, a Vânia Doutel Vaz, que fez isto e aquilo, e muito engraçado, na altura ela não sabia e não apreciaram mas, isto no grande contexto, ela era uma das pessoas das várias pessoas que existiu no mundo que tinham este percurso”. Sabes quando se cria um movimento que só se percebe pós? Eu prefiro essa ideia do que estar agora na luta com o spotlight. Esse momento no Kilombo, eu estava só a fazer aquilo que me apetecia e depois comecei a dar por mim a fazer vários Karaokê’s pela rua, porque havia esta cena da malta com quem eu estava a andar naquela altura. Eu fiquei a Whitney Houston porque sempre que dava a música dela chamavam-me para cantar e não era porque eu sabia cantar, mas toda a gente adorava aquela música e adoravam ver-me a adorar cantar aquela música, então era uma forma de colectivamente criar aquela energia boa desse momento. Isto foi criando em mim o gosto por cantar e eu canto mal, não canto profissionalmente bem, canto bem a nível de paixão mas desafino, não consigo atingir as notas que ela atinge. O Elefante no Meio da Sala é muito à base das improvisações que fazia e ver aquilo que foi ficando, o cantar de repente acaba por fazer parte. Criei um medley final que era Tina Turner, Whitney Houston, Lauryn Hill e Nina Simone – as maiores, pelo menos da pop culture a que temos acesso, depois existem outras mulheres maravilhosas, também de outros estilos, que eu ainda nem sequer conheço. No Elefante fez todo o sentido eu estar a trazer e pô-las juntas, pô-las num medley da minha boca, eu saboreei-as, eu autorizei-me e lá está, eu permiti-me trazê-las para me acompanharem. O Elefante vem realmente duma maneira muito disruptiva de pensar: “ai dão-me este lugar? então vou fazer aquilo que eu quero”. Foi uma oportunidade de eu ver o que eu tenho andado a fazer, o que me interessa no momento e fazer uma peça não sobre a atualidade do mundo, mas sim, a minha atualidade. Obviamente que eu sinto como a Nina Simone fala: “é responsabilidade da artista representar os tempos que correm”, de alguma maneira, talvez, em retrospectiva eu ter feito aquilo que eu quis é uma maneira de falar sobre os tempos que correm. Foi-me dado este lugar que nunca antes foi dado e ao ser dado eu tenho o direito, eu escolho o direito de dizer aquilo que eu quero. Isto é político, isto é um gesto.
Aí eu tive a Nina Botkay, uma grande amiga minha também bailarina e que agora faz figurinos. Começou com a ideia de ter um figurino cebola – nessa ideia de camadas, um bocado na ideia da cobra que vai mudando a pele – em tons de castanho, os tons da nossa pele. Esta ideia identitária. Na altura estava a pensar no que seria ter um fato justo por baixo, eventualmente ter fatos maiores. Esta ideia já estava presente desde há algum tempo. Em residência fiz várias experiências de tirar a roupa na improvisação, muita coisa de ter calças, tirar e ter mais collants por baixo – esta ideia de parecer que vais mostrar o teu corpo, a tua pele e não mostras. Foram pesquisas que foram surgindo enquanto estava sozinha em estúdio. Depois, eu tenho várias roupas com padrões de flores. A Nina foi sempre acompanhando a minha caminhada, jornada de ideias, do que é que seria o figurino. Ela apanhou ganchos do que eu estava sempre a falar, fazer, e sugeriu que as flores poderiam ser algo no espetáculo. E pensei que as flores cheiram bem, são bonitas, são decorativas, são a natureza, também um presente que se dá às grandes divas, portanto, também fazem parte do pós espetáculo, a palavra em si é um presente da atualidade, ou seja, no que toca ao tempo. Eu gostava de toda a articulação das flores. Um drama em particular foi a Nina ter começado a ver entre as escolhas de uma peça e de outra, que todos os padrões tinham uma base preta e cores por cima, eu adorei isso. A única peça que tem um fundo branco pérola, são os sapatos. Comprámos uns sapatos parecidíssimos aos que andava a usar. Há um momento em que digo: “nada nesta peça é branco” porque a parte de dentro das roupas é branco, o que é muito comum. Quando me estou a despir, há esse momento em que digo: “eu tenho que tirar isto sem mostrar a parte de dentro que é branca porque não há nada branco nesta peça”. Outra camada das flores é nesse momento em que abro o chão e surgem mais flores e digo: “já sei o que vou fazer, vou descansar um bocadinho porque estou um bocado cansada” e tapo-me, depois vem o texto em voz off. Na verdade, esse momento também é uma morte. As mortes podem ser vistas como inícios de outras coisas, mas também, enquanto morte literal, funerais, tens a decoração das flores para prestar uma homenagem a alguém que já não está cá ou que já transicionou, o que seja. Uma criação também é uma morte, estás ali a dar tudo, estás-te a expor de uma maneira em que vão te matar com as palavras de análise daquilo que acabaste de fazer e expor, então pelo menos que faças as coisas em liberdade para poderes pensar: “digam o que disserem pelo menos fizeste aquilo que querias”. Vais sempre ser aniquilada, vai sempre existir alguém que vai ter uma crítica sobre o que escolheste fazer, vai ter uma opinião sobre aquilo que deverias ter feito. Várias pessoas disseram-me: “queria que tivesses dançado mais” e eu: “malta vocês viram a peça ou não viram a peça. A peça é exatamente sobre isso, eu estou a começar sentada a fazer um monólogo do que poderia ter sido, vocês não viram a mesma peça então”. Tudo o que eu faço tem uma consciência corporal por esse domínio que tenho sobre o meu corpo. Eu posso não estar a dançar, dançando. Tudo é dança. Esta constante magia do espaço que se vai revelando, cada palavra, cada escolha, cada decisão é a ponta de um iceberg. Nem eu própria sei o quanto que eu investi ali. Eu tenho domínio sobre uma grande parte do que eu decidi trazer para aquela peça, mas também sabendo que eu estou ali a abrir caminhos para outras análises e possibilidades que eu própria, talvez, em retrospectiva daqui a muitos anos vou poder ver o quanto eu estava a falar mais do que eu sabia que estava a falar. Não é para dizer que a peça é uma masterpiece, mas é a minha masterpiece porque até agora foi o único solo que fiz e cada vez que falo e ouço pessoas a falarem sobre, eu dou-me conta do quão a mensagem passou e o quão impacta em maneiras que me interessam.
Não sei, mas eu falo muito alto e muitas vezes vinha sempre um: “fala mais baixo” e era um desafio para mim sussurrar. É literalmente impossível para mim não ter volume de som e ao mesmo tempo eu acho piada estar a sussurrar. É uma cena que é engraçada com as crianças e obviamente muito infantil. Todas as camadas que se podem fazer de análise artística e sonora.
E a utilização do roxo no chão?
Na verdade, aquele chão era para ter sido de outra cor que estava esgotada, muito infelizmente. Ficou aquela cor que é um bocado mais rosa para aquilo que eu desejo, inclusivé, com a luz ficou muito mais presente o rosa. Eu até quase que tenho um bocado de aversão à cor.
Eu tentei fazer um grupo em que tenho uma relação de afeto para criarmos uma peça e isso tornou-se complicado.
Inevitavelmente, mas enquanto criadora ainda estou muito em definição, mesmo agora a fazer o movimento coreográfico para o espetáculo ARUS FEMIA da Zia Soares, foi o momento em que percebi: “OK, eu consigo colaborar, mas não é um lugar de criação no teatro” e acho que é importante para mim começar a definir, também se me continuam a convidar, que não faço coreografia, eu faço trabalho com intérpretes. Eu vou procurar linguagens, vou mobilizar os corpos para passarem por lugares. Não. Estou a descobrir agora e é uma loucura. A Lucília Raimundo vai entrar agora como intérprete e não faz parte do elenco original, sendo que, já existiram ensaios com o outro elenco e estamos há dois meses sem ensaios, ela pediu-me para enviar algum material escrito que seja explicativo do que se trata Violetas para estar familiarizada, eu respondi: “Lucília eu posso mostrar-te o que escrevi, a verdade é que Violetas ainda não existe”. Tudo o que trabalhei até agora para Violetas, foi quase numa perspetiva onde eu já não estou, e isto é uma coisa que é um bocado complexa porque vou basicamente criar uma peça. Agora é que estou capaz de ver a criação de frente. Eu cometi vários erros nesta criação até agora que a peça nem sequer está estreada, uma delas é que tive dificuldade em escolher uma equipa que me acompanhasse para além de quem vai estar no elenco, eu depositei tudo no elenco, e esse foi o maior erro. Dediquei ao elenco toda a responsabilidade de diálogo, de criar e materializar ideias quando não é essa a responsabilidade do elenco, ou podia ser. Agora tenho um elenco só de mulheres e faz todo o sentido, se for possível é um dos temas principais para mim – o lugar do corpo da mulher, que eu sinto que é quase mais facilmente articulável para mim. Enquanto mulher negra estou num lugar em que ainda me sinto a pedir desculpas dentro do meio. Sinto que preciso que me deixem ter lugar, que me aceitem da mesma maneira que sinto que a branquitude me impõe uma definição – não me pergunta – no lugar da comunidade negra eu sinto que tenho que confirmar se aquilo como eu me vejo é como me vêem. O lugar da identidade racial é muito complexo. Enquanto mulher, aí não há dúvidas para mim e aí eu sinto que tenho muito mais articulação dentro de todas as questões de género. Eu quero alargar as possibilidades do que é ser mulher. Esta peça agora passou a ser uma peça que é perfeitamente identitária para mim e todas estas questões de me afirmar, comunicar, neste lugar em que não é só apontar o dedo e confrontar.
Sim. A peça é sobre estas cinco mulheres [interpretadas por Lua Aurora, Lucília Raimundo, Piny, Vânia Doutel Vaz e Wura Moraes]. Sou contra uma exibição do virtuosismo óbvio, tipo acrobacias quase, interessa-me um virtuosismo que tem que ver com a capacidade de maleabilidade – a relação que se tem de se colocar atrás de alguma coisa, ao lado e à frente, é esta relação que imagino que vamos ter em cena. A ante-estreia será no Teatro Municipal do Porto - Campo Alegre, o público vai estar em quatro frentes, então vai existir essa relação de um espaço que é enorme e o que vamos dizer é no centro. O centro pode ser reduzido a uma área de um metro quadrado – onde o nosso corpo cabe, ou pode ser essa ocupação toda. É um centro dentro de um centro ou esse centro é todo esse espaço entre as pessoas? É esta ideia de como o nosso corpo se apresenta, como a nossa identidade, expressão é feita, quanto queremos revelar e o quão não querer revelar é revelar algo. Cada uma destas mulheres tem a sua relação com a arte, com a expressão, com camadas. Aí eu sei navegar e fazer todo um jogo de dilatar e esticar presenças. Acho que agora vou finalmente multiplicar uma coisa que já conheço em mim.
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