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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE DIGITAL (III - conclusão)AUGUSTO M. SEABRA2012-02-06No debate sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica tem de atender-se a que a própria possibilidade de reprodução e a “aura” da obra não são incompatíveis, como o mostram as serigrafias, os livros de autor ou as edições de colecionador. Todavia estas novas possibilidades implicam um problema diferente, que Walter Benjamin colocara, o de haver um “original”, um “caráter único da obra” e as suas reproduções. O “museu sem muros” preconizado por Malraux alargou-se exponencialmente e é incomparável o grau de “conhecimento” de obras de arte de que hoje dispomos. Mas não será isso, em termos benjaminianos, a sua “mercantilização”? Retome-se a premissa de Malraux, de que os museus impuseram uma nova relação com as obras de arte. “Se um álbum consagrado ao Louvre se destina a reproduzir o Louvre, o conjunto das obras consagradas à arte não reproduz um museu que não existe: sugere-o e mais rigorosamente constitui-o. Não é o testemunho ou a recordação de um local, como o álbum consagrado à Catedral de Chartres, à Galeria dos Uffizi ou a Versalhes: cria um lugar imaginário que só por si existe”. As obras de arte como a Catedral de Chartres, o Pártenon, as “scuole” venezianas com as obras de Tintoretto e Tiziano, etc., etc., são experiências únicas, que nenhuma reprodução, mesmo agora aquelas tridimensionais, permite apreender. Mas há uma aproximação à experiência da arte que é possível por meios técnicos, e nomeadamente pela reprodutibilidade digital. Tratando-se também de uma questão de perceção, vou dar alguns exemplos da experiência pessoal. Escreveu Malraux da Vitória de Samotrácia que “sem ouro e sem braços, reencontrou a proa, e encontrou o alto da escadaria do Louvre, que domina como um arauto matinal” – e essa monumentalidade reforçada pela sua colocação no espaço é ímpar e irreproduzível, o meu maior ponto de fixação no Louvre. Apenas me apercebi da importância de um pintor como Robert Ryman quando vi a sua retrospetiva no MoMA em 1993 – as suas telas monocromáticas, designadamente as brancas, são irremediavelmente banalizadas nas reproduções. Quando da grande exposição Dadá, em Beaubourg em 2005, foi-me indiferente o urinol de Duchamp, The Fontain, justamente porque não há diferença entre “original” e “cópia” – facto maior, pois que na própria História da Arte essa separação é problemática, como ainda agora se confirmou com a descoberta no Prado da mais antiga cópia da Gioconda feita na própria oficina de Leonardo, mas sobretudo na modernidade, de Duchamp a Warhol – e portanto já muitas vezes a “tinha visto”, e todavia foi uma experiência ímpar ver o outro célebre readymade, L.H.O.O.Q., tantas vezes reproduzido e já de si uma reprodução com bigodes e barbicha da Gioconda. Dou estes exemplos para salientar o outro aspeto fundamental da obra de arte: importa não apenas a sua “poiesis” mas também a sua “estesis” com o significado que tem no original grego, isto é, a sua receção, consoante as características da obra e os seus modos de perceção pública. Foi no campo da teoria da literatura que se desenvolveu a denominada “estética da receção”, na sequência dos trabalhos de Hans-Robert Jauss e da chamada “escola de Constança”, deslocando o eixo interpretativo da hermenêutica das obras para a sua capacidade dinâmica, ativa na experiência estética. E é a este nível também que se podem fruir experiências como as dos 17 museus associados ao Art Project do Google (www.googleartproject.com) ou das obras de Paula Rego dos anos 70 em Deep Zoom (www.tinyurl.com/7zbuu4k), podemo-nos “passear” entre as obras, observá-las em diferentes perspetivas, com uma enorme aproximação ao pormenor. “Visitando” o MoMA podemos nomeadamente ver a Noite Estrelada de Van Gogh, numa super resolução em gigapixels, aproximando-nos das camadas de tinta como não conseguiríamos numa visão direta. Mas mais: “navegando” entre obras e museus podemos ir constituindo a nossa própria coleção digital, como que dando continuidade ao grande projeto do Mnemosyne Atlas de Aby Warburg. Ultrapassando os limites da reprodução gráfica é afinal o “museu virtual”, assim constituído com obras de arte na era da sua reprodutibilidade digital, que consagra o “museu imaginário” de André Malraux. E se estas possibilidades nos levam a reconsiderar a noção de perda da “aura” que Walter Benjamin postulou em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, ainda assim há um aspeto benjamiano nessa constituição de um “museu” também entre links, o que curiosamente corresponde à pesquisa inicial de Larry Page e Sergey Brin dos “backlinks” e reenvios que esteve na origem da Google, como se cada um de nós constituísse a sua própria “obra” de predileção ou museu a partir de reproduções digitais ou “citações”: “Apenas o texto copiado produz esse poderoso efeito na alma daquele que dele se ocupa, ao passo que o mero leitor jamais descobre os novos aspetos do seu ser profundo que são abertos pelo texto como uma estrada talhada na sua floresta interior, sempre a fechar-se atrás de si. Pois o leitor segue os movimentos de sua mente no voo livre do devaneio, ao passo que o copiador os submete ao seu comando. A prática chinesa de copiar livros era assim uma incomparável garantia de cultura literária, e a arte de fazer transcrições, uma chave para os enigmas da China.”, escreveu Benjamin em Rua de Sentido Único. ”Copiando” as obras, guardando-as no nosso arquivo digital, no de cada um, não substituímos a relação direta com a obra de arte, mas fruímos de novas experiências e potencialidades, tal como o museu, como Malraux escreveu, “veio instituir uma relação totalmente nova [do espectador] com a obra de arte.” P.S. - Foi-me entretanto assinalado haver um texto de Douglas Davis, com o mesmo título de A obra de arte na era da sua reprodutibilidade digital, (www.tinyurl.com/7lz3aqn), para o qual remeto, e que desconhecia. De qualquer modo esse artigo é de 1995, e foram factos recentes, como o Google Art Project, e mais genericamente as questões evocadas nesta parte III, que me suscitaram a presente reflexão. Augusto M. Seabra |