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PARAÍSO PERDIDOVICTOR PINTO DA FONSECA2019-10-06Todas as épocas são habitadas pelo temperamento controverso da Discórdia! Já Homero na Ilíade, faz referencia a Éris, deusa da Discórdia, como:
Aos Troianos incentivava Ares; aos Aqueus, Atena de olhos gastos, - Canto IV, Livros Cotovia e Frederico Lourenço, Lisboa, 2003.
Hoje, a Discórdia, já não nos é dada por uma imagem sugestiva, uma personagem como sendo real. Sem que se perca desta noção de personagem convém lembrar Frederico Lourenço, ao dizer-nos que "a linguagem poética surge como a 'roupa' que oculta 'um corpo' fictício - corpo esse a que as vestes conseguem dar uma ilusão de naturalidade e realismo. Ou seja, a 'veste' da linguagem poética por meio da qual os episódios fantásticos da "Ilíade" são descritos encontra-se a tal ponto plasmada no real que, ao 'vestir' um conteúdo narrativo intrinsecamente inverosímil, anula pela própria naturalidade do 'corte' qualquer desconfiança que se possa sentir quanto à credibilidade do 'corpo' que está a ser ocultado pela 'roupagem' do discurso poético." Mas, tal como antes, também agora a malvada Discórdia inflama os ânimos, causando problemas com as suas palavras. Motivos para que a maioria das pessoas não discorde... Nestas circunstâncias normalmente retiram-se de discordar. Isso significa que a maioria das pessoas não discorda.
Mas, aonde quero exactamente chegar é à arte contemporânea. E um só exemplo: Existe algo que ouvimos vezes sem conta — que o universo da arte contemporânea em Portugal, em rigor, é olhado com desconfiança pela maioria das pessoas, por ser indício de um sistema bastante fechado e de difícil acesso. Motivo para a maioria não ter confiança nenhuma no conceito de "arte contemporânea". No entanto, ainda que isso não implique que a pessoa que aborde questões da arte contemporânea seja livre para discordar, se o desejar, a grande maioria retira-se de discordar... Conforma-se com as mesmas histórias repetidas uma e outra vez pelo sistema artístico, e acolhe sem nenhuma reserva as determinações do sistema autoritário que está contra o veneno da discórdia! Para terminar esta introdução, metida em contextos mitológicos e um mundo entre o real e o mitológico, é preciso clarificar que não vivemos no melhor mundo possível... Temos de actuar melhor para poder transformar a pouco e pouco o sistema da arte contemporânea — de tal modo que se começaria a pensar de uma forma totalmente nova sobre muitas coisas.
"Estão a tremer de angústia! Angústia é o 'conceito' mais adequado para o sistema." - "Cada homem um artista", Joseph Beuys, pg 154.
... no presente, à medida que se vem discutindo a colecção e o museu berardo e a possibilidade da colecção berardo poder reverter futuramente para o Estado, a voz dominante que entre todos corre no sistema de arte, quase como propaganda, apela à criação de um Grande museu de arte contemporânea em Lisboa, que reuna uma extensa colecção de obras da idade moderna ao contemporâneo, reunião da colecção berardo com as colecções de arte (que por aí andam) resultantes do colapso do banco privado e do banco espírito santo; como se as coisas simplesmente se resolvessem por si mesmo apelando ao grande. No fundo, como um desejo veloz de grandeza — sinal que os tempos não mudam as pessoas. Ora, este é um apelo que devemos questionar e não podemos evitar de discordar... Para começarmos a pensar de uma forma totalmente nova! O 'pomo da discórdia'* que aqui lanço diante da comunidade artística, não é uma maçã de ouro a ser entregue "à mais bela" a ser escolhida entre as três colecções, mas, que sentido fará criar-se um Grande museu de arte contemporânea em Lisboa como um puzlle quebra-cabeças de três colecções que em nada se relacionam metodologicamente - a não ser nos métodos ilícitos e fraudulentos que em parte se encontram na base do financiamento da criação destas colecções -, ao mesmo tempo que retiramos a oportunidade das três colecções se desenvolverem independentes e dinâmicas, para uma melhor compreensão do público e dos especialistas da arte, e da própria relevância cultural de cada uma das colecções. É evidente que três colecções a dividirem um mesmo museu, implicará partilharem o armazenamento de milhares de obras de arte. Como resultado, só uma percentagem muito pequena do que realmente representará essa grande concentração de obras se encontrará visível ao público a qualquer momento, esgotando-se a colecção no armazenamento! Esse desejado Grande museu verá uma grande parte da sua despesa esgotar-se nos armazéns e um tempo de trabalho administrativo excessivo despendido em processos internos. A partir de uma perspectiva actual, não existe no momento nenhum museu em toda a Europa que se esteja a constituir com estas características de concentração e armazenamento, de um grande número de obras, para além dos principais museus que já existem como os que nos dão a ver a arte da idade moderna ao contemporâneo.
A gestão moderna dos grandes museus distancia-se cada vez mais do passado: Hoje, o objectivo de um museu enfrenta novos e recentes desafios, como pensar a reconstrução crítica das colecções — uma potencial reimaginação da história de arte para tornar o passado e o futuro mais inclusivos, procurar formas complementares e diversas de financiamento (apoios e patrocínios), ter uma visão a longo prazo para antecipar a necessidade de criatividade do museu, ser um espaço culturalmente inclusivo para compreender a complexidade da condição contemporânea, obter interesse internacional, e até aumentar a colecção do museu, agora com um mercado de arte especulativo, que movimenta preços elevados! Por associação de ideias, um Grande museu, para realizar os seus objectivos, precisa de encontrar público (ter um suporte elevado de audiência), financiamento público [vital] e financiamento privado [não tóxico]. E só pode obter financiamento, quase sempre, claro, naqueles que têm dinheiro, sendo o museu por natureza non-profit (não dirigido ao mercado). Encontramo-nos numa época de total reflexão sobre a compreensão / potencial das extensas colecções para os museus: reconhecidamente, os grandes museus de arte moderna e contemporânea, têm vindo a revelar dificuldades de organização, para preservarem e, ao mesmo tempo, interpretarem e integrarem várias peças esquecidas das suas vastas colecções. Nestas condições procuram redefinir-se: em parte isso já se reflete: está a nascer uma nova Era nesses grandes museus. Um novo modo de pensar o armazenamento das colecções, que sugere um processo de mudança a longo prazo nos padrões de investimento — que permita investigar, estudar e produzir conhecimento contextualizado com o tempo actual (a uma realidade social diversa e em constante evolução). Novos desafios que reformulam a própria noção de museu, uma mudança cada vez mais acentuada que significa a criação de novos espaços de armazenamento nos museus - alguns gigantescos em locais deslocalizados dos museus -, infraestruturas expandidas, que incluem um elemento de armazenamento de acesso aberto às colecções para a educação do público em geral e o estudo dos especialistas; implica que vastas colecções que até recentemente poderiam ser supervisionadas por um curador, exigem agora equipas para as conservar, investigar e comunicar devidamente. A criar-se um grande museu de arte moderna e contemporânea em Lisboa (resultado das três referidas colecções), avisto já, um museu grande — onde inevitavelmente acontecerá uma cúpula suprema... E alguém, a partir de certa altura, super poderoso que serve a real politik do sistema, tão querida das pessoas que habitualmente dirigem -, vazio, fustigado pela falta de audiência e pela falta de meios financeiros e de recursos humanos correspondentes para que o mesmo cumpra as responsabilidades culturais e educativas que fundamentam a sua realização. Motivos para se deter esta ilusão que já se faz sentir de grandeza e fama** de imediato! Convém lembrar que temos de saber fazer substancialmente melhor que enredar, amontoar e centralizar as três referidas colecções! Temos de ter alternativas inteligentes e modernas do que fazer com o potencial das diferentes colecções, novas ideias que superem aqueles que pensam que um museu se deve entender com o entendimento do conceito do grande e/ou com a centralização conservadora das colecções. Ora, o que deve crescer primeiro é a qualidade dos museus; para ser preciso, a tendência mais importante no momento, é desenvolver museus de arte contemporânea com um alto grau de flexibilidade e versatilidade — modelo que contraria a celebração do Grande museu, lento! Espaços de exposição lado a lado com bibliotecas - um museu capaz de promover a pesquisa, o estudo e a educação num diálogo próximo com a arte contemporânea -, e com espaços performativos que permitam apresentar uma programação multi-disciplinar, garantia de uma cultura viva: um lugar que combine o passado com novas formas de ver e de criatividade, de intuição e de participação, que reflita o contexto cultural do momento (implementar algo que represente uma coisa nova no antigo), e se distinga menos pelo tamanho! Através deste caminho é imperativo encontrarmos um modelo alternativo para as três colecções que tome em consideração as possibilidades de cada colecção individualmente e não implique uma concentração excessiva de obras, um museu saturado. Cada colecção deve descobrir por si mesma quais devem ser as suas abordagens; por exemplo, a forma como uma colecção de fotografia (sim, estou a pensar na colecção de fotografia do novo banco) responderá em termos da actual diversidade de público e especialização de conhecimentos é muito diferente de como a colecção berardo poderá abordá-lo.
No entanto, as três colecções podem e devem partilhar projectos curatoriais e artísticos entre elas, inter-relacionar-se... ainda que com orientações diferentes e separadas; quanto mais interessantes tornarmos as colecções mais brilhará a cidade de Lisboa! A colecção / museu berardo deverá manter-se lado a lado com o Centro Cultural de Belém: no entanto, deveriam partilhar sinergias estratégicas para a criação de um programa integrado, como por exemplo a criação de um espaço multidisciplinar comum dedicado para performances que ajude o museu e o centro a atrairem novos artistas e públicos à sua lista, e a tornarem a performance em algo relevante para a cidade de Lisboa. Hoje, a performance, tornou-se um modus operandi central para a arte contemporânea respondendo à nova maneira [imersiva] como os jovens encaram a criatividade. Existe um vazio enorme entre as possibilidades do que se pode fazer e o que [não] se faz entre o CCB e o museu berardo! O museu nacional de arte contemporânea-Museu do Chiado, receberia a colecção do ex.banco privado com o espaço do museu ampliado com a concretização de um projecto que parece estar ao abandono há vários anos; porque é imperativo o museu exibir uma vertente internacional a partir deste ponto estratégico da cidade, como um complemento à colecção de arte moderna e contemporânea (portuguesa) existente no museu, criando condições para uma perspectiva global e planetária da arte e, esperançosamente, promoveria o número de visitantes do museu (além do turismo). Um outro espaço a estabelecer - por agora sem nome - receberia a colecção de fotografia do ex. BES, como um centro de actividades exclusivamente dedicado à fotografia contemporânea, que promovesse uma programação que ampliasse a perspectiva do público e visasse o contacto próximo com a imensa comunidade de interessados e especialistas em fotografia, público em geral e pesquisadores, por meio de um programa de exposições, filmes, vídeos, edição, residências artísticas, workshops realizados por especialistas, passeios fotográficos, etc. Estamos simplesmente num ponto em que a única forma confiável de pensar as três colecções, é ter uma lente apertada, caso contrário, é uma inclinação exactamente oposta, e estaremos a dar passos para trás! De maneira a pôr em prática um modelo tripartido na sua verdadeira forma, essas relações inter-colecções, ainda podem ir mais longe. Pode-se criar um bilhete combinado de acesso que forme um todo comum às três colecções, que permitiria que qualquer pessoa podesse visitar os três espaços se assim o desejasse (num determinado período de tempo): se visitassem um museu, pagariam x, se visitassem dois, pagariam menos, se visitassem os três pagariam ainda menos!
"... porque quero provar que só a arte pode criar algum futuro. É claro, como é natural, ampliei muito o conceito de arte. Falo de criatividade e autodeterminação." - "Cada homem um artista", Joseph Beuys, pg 163.
Mas, uma voz crítica precisa de tempo para se formular: falar sobre o conceito de arte apenas não nos levará a lado nenhum. A arte (sinónimo de cultura) anda em paralelo com a educação! Por essa razão há que fomentar uma educação artística para o ser humano. Por onde anda o que há a pensar. Os governos devem reconhecer o valor fundamental da educação artística e estética das pessoas como sendo uma parte essencial da educação. Devem dar esperança aos jovens, investindo no ensino da arte na escola — políticas com impacto directo positivo na formação cultural e na participação das pessoas no curso da vida criativa a longo prazo, em benefício de uma maior qualidade de vida o dia todo, todos os dias, que torne especial a cidade de Lisboa e o bem estar das pessoas. Deveríamos de estar todos de acordo que crianças de baixo estratos sociais só podem ter acesso às artes através da educação: por isso um sistema que significa que apenas os jovens mais privilegiados têm acesso às artes e à cultura é um desserviço público tanto aos jovens que sofrem com o resultado - porque se eles já se sentem vulneráveis e se encontram em desvantagem, a partir daí tudo o que actua ao nível da formação intelectual vem abaixo - como para a sociedade que acredita na importância da mobilidade social e da igualdade de oportunidades. Todos somos parte disso e continua a ser uma vergonha que os benefícios da educação artística sejam um campo privilegiado. Sabemo-lo intrinsecamente! No entanto, agora temos dados que explicam que as artes e a cultura realmente são essenciais para a autodeterminação e o bem-estar das pessoas: um novo estudo, intitulado "Value of Arts and Cultue in Place-Shaping" conduzido pela empresa de pesquisa Wavehill Ltd. e encomendado pelo Arts Council England, examinou 1.756 respostas de uma pesquisa realizada no Reino Unido em 2017, e concluiu que a arte pode ajudar a sustentar as cidades através das transformações da nossa era.
Abaixo encontram-se algumas sugestões importantes do estudo do Arts Council England: A arte é crucial para a construção da comunidade. 65% dos entrevistados disseram que a arte é muito importante para se sentirem parte da sua comunidade. E quase dois terços disseram que as artes e a cultura eram essenciais para o seu bem-estar pessoal. No geral, os entrevistados destacaram as artes e a cultura em relação à integração na comunidade, promovendo um sentimento de identidade coletiva, espaço para interação, divertimento e experiência partilhada. Quarenta e nove por cento dos entrevistados disseram que participar em eventos culturais e artísticos os ajudou a sentirem-se parte de sua comunidade - o que aumentou a sua sensação de bem-estar e felicidade - enquanto 55 por cento queriam ver mais ofertas. A arte e cultura podem atrair novos moradores para as cidades. Quarenta e quatro por cento dos entrevistados disseram que a qualidade das ofertas artísticas e culturais influenciaria a sua decisão de permanecer num lugar, enquanto 43% disseram que isso afeta a sua decisão de mudar. Ambos os números foram aproximadamente equivalentes à importância dada à qualidade das escolas numa cidade. O estudo sugere que as cidades que procuram atrair jovens profissionais e graduados e elevar o perfil da cidade para trabalhadores estrangeiros qualificados precisam de promover as suas ofertas exclusivas de artes como parte de sua estratégia de marketing. — Antes de tudo, a vida dos museus e das cidades muda-se fomentando a educação artística e estética das pessoas. A cidade do futuro será testemunho do grau de inteligência, amor e sensibilidade, com que o Estado desenvolva o ensino das artes e da cultura, e souber estimular os activos criativos como a presença de um museu, um teatro, uma galeria ou uma biblioteca. Sabemo-lo instintivamente.
* de acordo com a mitologia grega, Éris, despeitada por não ter sido convidada para o casamento de Peleu e Tétis, que viriam a ser os pais de Aquiles - a discórdia, naturalmente, não era bem vinda ao casamento por conta do seu temperamento controvertido -, mesmo assim, compareceu e, vingou-se, lançando entre os presentes um pomo de ouro (o pomo da discórdia), dizendo que ele deveria ser entregue "à mais bela" a ser escolhida entre Atena, Hera e Afrodite, e fazendo com que as três deusas discutissem entre si acerca da destinatária. E foi o pomo de ouro a causa primeira da guerra de Tróia, 'o pomo da discórdia' que fez ruir a cidade lá das alturas.
** "De imediato vai a Fama pelas cidades da Líbia, nem mal algum existe como ela tão veloz. [...]. Durante a noite voa veloz entre o céu e a terra, silvando pelo meio da escuridão, impedindo aos olhos o sono tranquilo; durante o dia senta-se de atalaia no cimo dos telhados ou nas altas torres e aterroriza as grandes cidades, tão pertinaz em relação a falsidades e calúnias como pregoeira da verdade" - Virgílio in "Eneida", Bertrand Editora, Luís Manuel Gaspar Cerqueira (pg. 96). |