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YAW TEMBE
15/02/2025
Yaw Tembe: “Interessa-me muito a ideia do que é revelado e oculto, fazer coisas para ninguém ou para o vazio e ver como essas ações depois acabam por voltar ou não”
As palavras de Yaw Tembe são tocadas, num tempo de respeito ao silêncio. Materializa-se no sentir, o som produz-se a seu tempo.
Compreendendo o silêncio enquanto um espaço de sedimentação, construiu nas ruas de Lisboa aquilo que entendeu ser uma carreira em que a música teria inevitavelmente que fazer parte, isto é, arte, dado que não se separa das várias camadas que o compõem trompetista, a sua existência na Suazilândia, Moçambique e África do Sul e formação em escultura na Faculdade de Belas Artes do Porto e Jazz na Escola Superior de Música de Lisboa.
Interessado no estudo da transitoriedade, fragilidade e os fenómenos efémeros, colabora interdisciplinarmente com diversos artistas, tais como Monsieur Trinité, Francisco Cavalcanti, Raquel Lima, Joana Guerra e Lubanzadyo Mpemba Bula. É parte dos projetos musicais SIRIUS, GUME, Zarabatana e Chão Maior.
Por Filipa Bossuet
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FB: Nasceste na Suazilândia. Como foi a tua vida até chegares a Portugal?
YT: Falar da minha vida... [risos]
Sim, nasci na Suazilândia, agora é Essuatíni, mudaram de nome há alguns anos. A minha mãe é sul africana, o meu pai é moçambicano e eram já, na altura, emigrantes na Suazilândia e foi aí que se conheceram. Mudei-me para Portugal aos cinco/seis anos e durante os primeiros cinco anos da minha vida estive sempre entre esses três países - Suazilândia, África do Sul e Moçambique. Tenho a ideia que a base era a Suazilândia, mas como tinha avós e família dos dois lados, estávamos sempre em circulação. A partir de algum tempo comecei a duvidar dessas memórias que tinha porque fiquei muito tempo sem voltar para lá. Só há seis anos, pré Covid, é que voltei e pude confirmar que as memórias que tinha não estavam tão distantes da realidade. Coisas simples: paisagens, casa das minhas avós, paisagem da Suazilândia. São memórias de alguém até aos cinco anos, por isso são coisas muito diluídas.
FB: É interessante entender que com cinco anos podes não te recordar de muita coisa, mas vais sentindo a presença dessas memórias no teu corpo. Que influências trazes para o teu trabalho da Suazilândia, Moçambique e África do Sul?
YT: A nível sensorial, e se calhar não tão lógico, fui descobrindo que a Suazilândia é um país montanhoso, não existem cidades, tradicionalmente as pessoas são pastoras e vivem nas montanhas. Sempre me senti bastante próximo ou atraído pelas montanhas e isso tem estado sempre presente nas várias coisas que vou fazendo com a música. A presença da montanha, da pedra e da paisagem. Só fiz essa ligação quando visitei a Suazilândia. Outras coisas que acabo por ligar, apesar de estar distante, foi sempre ter consumido muita música sul africana, alguma moçambicana e música folclore dos três países. Falando em específico da Suazilândia, a música vocal coral é muito lenta, sem tempo, ao contrário do que se podia pensar dessa região de África. Não há percussão, mexe-se como se houvessem camadas a mexer de forma muito lenta. Isso também é outra sensação que me tem interessado há algum tempo - como pensar o tempo na música, como poder esticar esse tempo e como essas camadas podem ir surgindo e desaparecendo, o que também está ligado à ideia da montanha, o surgimento lento da paisagem, de matéria.
FB: Sobre a observação da natureza e a música mais lenta, de respeito ao tempo, o álbum Acoustic Main Suite Plus the Inner One, de SIRIUS, o dueto que realizas com o Monsieur Trinité, representa muito o respeito ao som que determinado instrumento irá transmitir, por exemplo?
YT: SIRIUS é um projeto que tenho em parceria com Monsieur Trinité, o Francisco Trindade. Esse disco surge num momento em que estávamos a explorar muito uma abordagem eletroacústica da relação de música eletrónica e o espaço, com instrumentos acústicos. Tivemos a oportunidade de gravar no Panteão Nacional, que tem um tempo de reverberação gigante. A sensação que tive ao tocar é que parece que o som nunca desaparece e que tudo que foi alguma vez dito naquela sala continua, de certa forma, naquele espaço. Esse disco não tem nenhuma eletrónica, todo esse reverb é natural, por isso, a nossa relação com o tempo nessa gravação é muito específica porque sempre que um de nós tocava tinha que lidar com o eco quase que infinito do que foi dito, então é como se estivesses sempre a ver as palavras que estás a falar. Várias camadas se vão sobrepondo desse discurso ou tentativa de discurso e era o que nós sentíamos lá, ou pelo menos o que eu sentia lá, imagino que o Francisco também. Daí também esse respeito de que falavas, de tentar ouvir em cima dessas camadas, que era algo que já estava presente na nossa forma de tocar. Tocar sempre muito com o silêncio, esse projeto sempre teve esse cuidado.
Outra questão que acho interessante está na forma como nos relacionamos com o tempo, eu e o Francisco somos de gerações muito diferentes e esse é um sítio de coincidência interessante, ver como há essa tentativa de encontrar um espaço em comum, sendo que percebemos que estávamos a apontar quase para sítios diferentes. Um a apontar para uma coisa mais espacial, sideral, o céu literal, e outro para uma coisa mais terrena e mais rotineira. O Francisco não se assume como percussionista, ele diz que está a manipular objetos e às vezes parece quase que está a tentar perceber o som que um objeto contra o outro cria de forma muito direta e literal. Acho isso uma coisa boa e ele faz isso de forma consciente, como é óbvio. Há esse lado de matéria, primário, direto, e por outro lado, também por causa do espaço e do reverb, há uma certa nuvem espacial - não sei bem qual seria o termo.
FB: Há uma complexidade na construção da tua música que vai para além dos instrumentos em si e que está também no que o espaço onde estás te pode transmitir. Dizeres-me que foi feito no Panteão faz-me pensar na complexidade desse reverb. Estão pessoas sepultadas no Panteão.
YT: Uma coisa boa dessa ideia de acumulação é que quando são tantas camadas acho que podes trabalhar apenas sobre acumulação, mas também podes escolher que camadas queres trabalhar. No Panteão não foi uma escolha ou não foi consciente pelo menos. Tudo o que já foi dito continua cá, por isso, a história deste lugar para já não quero que faça parte da música que estou aqui a fazer. No caso em específico dessa gravação de SIRIUS, não me interessou trabalhar nas pessoas que estão lá enterradas nem na história escrita desse espaço. Interessava-me mais focar-me na ideia de sedimentação. Estão várias coisas a caírem em cima e vou acrescentar mais uma camada a isto.
Num outro projeto, no qual tenho trabalhado com outra música, com a Joana Guerra, temos falado muito sobre este processo e surgiu uma palavra que é orogénese, a formação das montanhas. Um processo sempre muito lento e a dada altura tens areia a cair sobre areia e tu vais escolher qual a camada que queres olhar. Acho que é a cena fixe da montanha, podes olhar só para o contorno, para o interior de uma mina ou de uma gruta e tens sempre essas diferentes perspetivas e pontos de vista.
FB: Interessou-te perceber o efeito dos instrumentos naquele espaço.
YT: Sim, perceber acima de tudo como esses corpos instrumentos são mais elementos que se sobrepõem àquele espaço, lugar. Perceber isso mais em forma de matéria e não tanto de simbolismo, porque eu ouço aquele disco e surgem muitas imagens, mas sem significado, mais como formas, não um significado necessariamente.
FB: Fizeste um curso de Escultura na Faculdade de Belas Artes do Porto e depois estudaste Jazz, na Escola Superior de Música de Lisboa?
YT: Comecei a tocar trompete na adolescência, depois mais ou menos parei quando fui para o Porto e fiz esse curso de Escultura. Anos mais tarde, fiz um curso na vertente de Jazz, em Lisboa. Comecei a tocar numa banda filarmónica em Almada e em casa sempre se ouviu muita música, a minha mãe e a minha irmã cantavam muito em casa e foi natural ter essa vontade de aprender um instrumento. É engraçado que muitos discos que há dez anos comecei a ouvir, eram discos que estavam lá em casa e que fui redescobrindo quando depois voltei a tocar.
FB: Tocavas trompete e depois foste estudar escultura. Já tinhas esse contacto com as Artes Plásticas? O que te fez escolher o curso de Escultura e não estudar logo Jazz, por exemplo?
YT: Estou aqui a tentar lembrar-me o que me levou a essas escolhas. Para mim era óbvio que eu tinha que seguir artes. Fiz o secundário na António Arroio e mesmo antes disso, olhando para trás, sempre quis ser muita coisa. Quando era criança quis ser agricultor, talvez a vontade também venha da Suazilândia [risos]. Houve uma altura que parecia que só ir para artes fazia sentido.
Todo o percurso nas artes sempre foi um pouco estranho - mesmo no secundário - porque quando fui para Belas Artes e pensava em Escultura tinha muitas imagens da escultura moçambicana. Os moçambicanos são muito bons escultores na cena tradicional. Os Maconde que são mais do norte, têm uma tradição de escultura muito boa.
Esculturas a serem vendidas na rua é uma das imagens que eu via muito em Moçambique e na Suazilândia, e eu sempre tive essa vontade de fazer aquilo mas, na verdade, fiz a faculdade toda e peguei em madeira pouquíssimas vezes, fui estudando arte conceptual e outras coisas, nunca tive, não sei se era tempo, de pegar naquilo que me tinha motivado a ir para Escultura, só para conectar com o início da conversa porque é uma das coisas que veio desses cinco anos no sul de África.
FB: Não te conectaste muito com as artes plásticas no fazer enquanto estavas a estudar Escultura, mas também nesse tempo paraste de tocar trompete.
YT: Eu comecei a tocar trompete por volta do sétimo, oitavo ano, e mais ou menos parei, isto é, parei as aulas - quando fui para o secundário depois finalmente consegui comprar um trompete. Andava com um trompete no Porto, tinha amigos que estudavam na faculdade Jazz e davam assim umas dicas, ainda fiz umas bandas, mas só quando acabei mesmo a faculdade é que decidi que ia voltar a tocar.
FB: Terminaste a faculdade em Escultura no Porto e voltaste para Lisboa com a intenção de voltar a tocar trompete profissionalmente?
YT: Não foi com intenção. Voltei para Almada, para a Caparica. Estava à procura de trabalho. Tinha-me candidatado para um trabalho que acho que até fazia sentido com a escultura, mas no dia em que vou fazer a entrevista vejo que o meu cartão de residência está caducado. Foi uma coisa estúpida porque toda a gente sabe quando vai caducar o cartão de residência porque à partida não consegues fazer nada [risos] e eu só percebi isso no dia da entrevista. Aí comecei a pensar no que poderia fazer porque estava a precisar de arranjar um trabalho e decidi começar a tocar na rua.
Passado algum tempo a tocar na rua é que percebi que talvez seria interessante focar-me nisto e estudar mais a fundo.
FB: Numa das poucas entrevistas que deste, disseste que o tempo que passaste a tocar na rua foram momentos cruciais para aquilo que foram os teus projetos seguintes. Como foi essa experiência de tocar na rua e o que trazes dessas vivências que passaste?
YT: Ainda a vejo dessa forma, ainda faz sentido. Vinha da escultura e tinha muito interesse em fazer coisas no espaço público. Eram coisas que tinha feito quando estava na faculdade e interessava-me voltar a explorar isso. Sendo uma coisa muito prática - estou a tocar na rua porque estou a precisar de fazer dinheiro - era muito gratificante porque havia um retorno imediato. Não era um retorno financeiro, mas de sentir que não estás a tocar para ninguém em específico e estás sempre a receber. Esta coisa de dar para o vazio e depois alguma coisa há de voltar, isso acontecia todos os dias.
Agora que já não faço isso há algum tempo e espero não estar a romantizar muito, mas não me lembro de voltar para casa e não ter valido a pena ir para a rua tocar, mais a nível emocional do que financeiro obviamente, poucas pessoas ficam ricas a tocar na rua.
São coisas que eu penso muito: o que é o público quando estás a tocar na rua?
Interessa-me muito a ideia do que é revelado e oculto, fazer coisas para ninguém ou para o vazio e ver como essas ações depois acabam por voltar ou não. Lanças uma coisa para o mundo e aquilo depois segue o seu caminho e eu sentia que tocar na rua era um pouco isso, alguém passa por mim, ouviu aquilo e não sei depois se aquilo teve impacto ou se alguma vez teve feedback e nem me interessa saber isso. De facto, durante o tempo que estive na rua, tive muitas confirmações de que houve um feedback e nunca era direto, era de alguém que ouviu, falou com alguém…
Nessa entrevista dizia que quase todas as bandas onde estive e os projetos onde estou agora vieram daí e nunca de forma muito direta. Era um karma labiríntico, o que é fixe.
FB: Respeitar o tempo e o silêncio das coisas ajuda-te a viver como artista?
YT: Sim, eu acho que tenho essa inclinação para o espaço e para o silêncio.
Por exemplo, na improvisação na música fala-se muito sobre o espaço e o silêncio e já há muitos anos tenta-se perceber o que é o silêncio, porque é uma coisa muito abstrata e é interessante quando tentas buscar o silêncio na rua. É um espaço que, às vezes, encontras e outras vezes é contaminado ou então percebes que há um silêncio - mais uma vez voltando à ideia das montanhas e das camadas - que o vazio, que é base, é uma coisa que já existe, é algo muito real. Na rua isso era algo muito óbvio, deixo de tocar e está lá o silêncio mas, de repente, o silêncio é o barulho da rua. Uma folha branca é uma folha branca, não é o vazio, é uma folha pintada de branco. Uma coisa fixe da rua e que vai para lá da produção artística é a de relacionar esses espaços vazios e silêncios com as coisas que já estão lá por baixo. É quase um exercício de focagem: não estás a ver nada e, de repente, focas numa coisa e todo o resto à volta desaparece, e perceber que é um exercício quase infinito. Uma coisa que me interessa experimentar não só na produção de coisas, mas como existir no espaço.
Para mim não faz tanta distinção entre estar a produzir ou não porque sinto que o mecanismo de perceção é o mesmo. Estou a dar atenção a esta coisa e a atenção que estou a dar é tão ativa como se estivesse a tocar ou a produzir uma coisa. Fazem parte do mesmo campo.
FB: Como tem sido existir na relação de espaços tão distintos como estes que te trouxeram ao que és hoje? Por exemplo, a experiência académica de estudar jazz e a de tocar na rua, assim como, a tua presença nas artes plásticas.
YT: São duas abordagens bem diferentes. Neste momento, sinto que tenho que encontrar mecanismos artificiais para criar um certo ruído e contexto. Quando estava a tocar na rua isso não acontecia, era a partir do ruído que tocava. Agora na forma como tenho feito as coisas acaba por vir de um lado um pouco abstrato, depois vejo a necessidade de: “ok agora está a precisar de um pouco de contaminação para isso voltar a ter vida” e acho que tem muito que ver também com a influência dessa perspetiva mais académica sobre a música. Obviamente que há coisas boas que vêm daí, por exemplo, o sentido de comunidade, perceber que houve pessoas com quem estudei e que acabam por ser, agora, das pessoas mais próximas com quem trabalho, mas o desafio é tentar expandir a música para lá da música e sinto que não tinha tanto esse problema quanto tocava na rua, por exemplo.
FB: A transitoriedade, fragilidade e efemeridade são conceitos que aparecem muito nas tuas bios espalhadas pela Internet. Ainda são o centro das tuas pesquisas?
YT: Sim, acho que ainda estão presentes e vêm do mesmo sítio, mais uma vez, esta ideia de nos cinco primeiros anos da minha vida ter vivido em três países diferentes, depois ter mudado para um quarto e tentar perceber qual o lugar de pertença no espaço. Eu acho que isso tem acontecido, tem sido quase um modelo padrão para várias coisas que faço. Estudar Escultura e depois decidir que quero fazer música, mas depois estou a fazer música com aquele pensamento escultórico de matéria, espaço. Tocar na rua e dizer que me interessa estudar mais a fundo esta música, mas também, não quero deixar as coisas que aprendi, que faziam sentido na rua. Estou sempre indeciso se é simultaneidade ou transitoriedade, de conseguir existir em diferentes espaços ou se agora estou neste espaço e vou para outro a carregar ainda essa memória do espaço anterior. Obviamente, dentro disso está também essa fragilidade porque não se está enraizado num sítio especifico, não há certezas de dizer que isto é isto e isto vai ser assim para sempre. Se por um lado interessam-me as montanhas, não é por serem perenes, mas por imaginar que são de certo modo efémeras, estão em movimento. Há aí uma amplitude de efemeridade gigante, desde uma coisa que fica e desaparece logo ou uma montanha que vai ficar e desaparecer logo também, mas dentro de outra escala.
Estas três ideias estão conectadas entre si.
FB: As máscaras também vêm da relação com a escultura, com as artes plásticas. Vês as máscaras como uma escultura?
YT: Sim, são esculturas. As máscaras vieram com duplo sentido, uma de uma certa proteção - eu vejo mais as máscaras do lado de dentro do que do outro lado - e também de haver um contacto com outro lado, quase dois significados opostos, paradoxais.
No início de 2024 convidaram-me para fazer uma exposição, acabei também por mostrar algumas máscaras, mas estava um pouco reticente em fazê-lo porque, para mim, as máscaras fazem sentido numa ação e vê-las só como objetos de escultura parece que perdem um pouco do valor que poderiam ter. São esculturas, mas prefiro pensá-las como objetos que estão a ser utilizados para uma interação que traz algo mais do que só alimentar a vista.
FB: Ainda na tentativa de compreender o teu trabalho através do que está disponível na Internet, a dança e o vídeo são dois dos meios artísticos de expressão que fazem parte da tua biografia. “Rádio é um Osso” é um dos trabalhos que realizaste com a Raquel Lima e que foi apresentado recentemente. É uma das obras em que o corpo é instrumento de trabalho?
YT: Sim, este projeto com a Raquel foi a gravação de uma cassete, fruto de uma residência que fizemos no Coletivo OSSO. Havia essa tentativa de coreografar muito pela ideia de repetição do som e do movimento. Antes disso fui trabalhando com vários coreógrafos e pessoas que pensavam o espaço. As primeiras pessoas com quem trabalhei foi o Miguel Bonneville - já há muitos anos - numa fase de criação de um projeto dele, depois trabalhei bastante tempo na peça Bacantes, que ainda está em circulação, com a Marlene Monteiro Freitas, que foi um contacto que surgiu enquanto tocava na rua. A partir desse projeto conheci também a Flora Detraz, uma coreografa francesa com a qual também trabalhei. Agora tenho criação com um coreógrafo brasileiro que se chama Francisco Cavalcante. São todas formas muito diferentes de pensar a dança, mas assim de forma bastante casual tenho-me deparado com coreógrafos e isso também tem contaminado a forma como penso a música.
FB: Inclusive no trabalho como programador de música no Teatro do Bairro Alto?
YT: Sim, quando apresentei uma proposta de programação para o TBA, era já em vista de como pensar o som de forma contaminada e tentar perceber até onde se pode diluir ideias de estilos e géneros. Com alguma experiência que tive a trabalhar com diferentes criadores, era apresentar uma proposta à programação de música, com esse foco e preocupação.
FB: Desde quando é que fazes programação no Teatro do Bairro Alto?
YT: Acho que entrei no final de 2020.
FB: Como tem sido esse processo?
YT: Tem sido interessante, bastante desafiante porque, de certa forma, estou a pensar as mesmas coisas que penso quando estou a produzir música ou o que quer que seja, mas de modo mais coletivo, no sentido de: “Interessa-me pensar sobre isto, com quem mais eu posso pensar esta questão?” e de repente outras pessoas entram e já surgem outras questões para serem discutidas e pensadas. É bom essa fluidez nas ideias que vão surgindo quando se programa e depois há sempre este conflito, no bom sentido, de contacto com o público, que é mais um bom elemento que complexifica muito mais essa conversa. É um privilégio podermos pensar coisas em conjunto. Sem dúvida, é uma responsabilidade, sinto bastante esse peso do que se está a propor, mas também não é tão diferente do peso de tocar uma nota ou criar algo, são apenas perspetivas diferentes sobre isso. Um dos temas centrais da programação do teatro e da programação de música é o experimental - um conceito problemático - e é sobre tentar encontrar formas de analisar e explorar esse conceito.
FB: Podes partilhar um pouco da programação que tens realizado?
YT: A proposta de programação passa muito por tentar olhar para a experimentação de pontos de vista diferentes e não pensar como género por si só, mas como uma atitude que é incorporada em todos os géneros, então tem passado muita coisa diferente pelo teatro, o que sinto que é um desafio porque é preciso um certo tempo e paciência para criar essas ligações entre projetos. Elas estão lá mesmo que não seja óbvio.
Consigo talvez demarcar alguns focos nessas formas de pensar a experimentação, uma delas é a improvisação ou formas diferentes de compor. A improvisação como um processo que vem quase como o oposto de um pensamento lógico e de um ponto de vista mais ligado com a oralidade em oposição a uma escrita, sendo que o lógico obviamente está lá - são outras lógicas.
Através da improvisação temos ido à música tradicional folclore e à reinvenção dessa música, exemplo disso, foram os concertos da Jyoti Hegde, uma musicista indiana que apresentou um concerto de repertório de música clássica indiana antiga, que apesar de ser clássica está baseada na improvisação; o concerto do projeto Quarto Escuro, Panela Quente, uma colaboração entre os músicos Scúru Fitchádu, Cachupa Psicadélica e a artista visual Ana Rita António; e o projeto do Xullaji que cada vez mais vem da música urbana com uma ligação com os ritmos tradicionais. Outra perspetiva de improvisação que vem mais do free jazz, vem com o concerto da Fay Victor e do Sam Newsome, que é uma outra tradição e foi interessante ver também que eles estão interessados em desconstruir essa tradição.
Em 2025, seguimos na ligação com essa ideia da tradição com um grupo guineense que são os Netos de Bandim com Djilam Ture, em janeiro. Em Março, o Tashi Wada, um músico americano com ascendência japonesa que trabalha muito essa ideia de camadas de som e de espacialidade, e de repente aquilo já não é música, já está no outro campo da instalação através do som.
Só para dar aqui alguns exemplos dos lugares pelos quais a programação tem passado.
FB: Expressaste que a experimentação é um conceito problemático.
Poderá ser por, em alguns contextos, não ser visto como algo lógico? Porque é que defines dessa forma?
YT: Eu acho que não ser lógico é uma coisa boa.
Eu pensava mais numa visão bastante eurocêntrica do que é o experimental, porque, muitas vezes, associamos às vanguardas do início do século XX e sempre muito associadas nessa ideia do novo em detrimento do velho, do antigo. O velho enquanto uma coisa passada e o novo, algo bom. Nessa pressão de estar sempre a criar algo novo, há algo consumista nisso. Não dar tempo às coisas. Nessa ideia muito do modernismo, de pensar nas coisas de forma abstrata, dizer: “ok eu faço música e só me interessa o silêncio puro e vou começar a criar daí” essa tal folha branca que falávamos há bocado. São coisas que já foram muito criticadas e debatidas, não é nada de novo, mas são ideias que prevalecem hoje em dia. Quando a coisa não é desse pensamento abstrato, tem que haver um pensamento político.
É pensar na simultaneidade das coisas, como tudo isso pode coexistir, como o experimental pode existir com o folclore, como pode existir com a permanência.
Acho que também pode ser uma armadilha ficarmos presos apenas no experimental, uma armadilha colonial de olharmos para formas tradicionais e pensarmos que não há experimentação nessas formas, não há modificação. Muitas vezes, tem que ver com termos o tempo e a paciência de sermos capazes de ver os detalhes e a transformação dessas formas antigas - aquela ideia que dizia há pouco de olhar para uma montanha e ver a montanha como algo que está em transformação. Às vezes, a experimentação está muito do outro lado e acho que é importante incluir os dois lados.
FB: Que outros métodos de experimentação aplicas no teu trabalho?
YT: A improvisação é um método de pensar as coisas. O objetivo não é ser experimental, pelo menos para mim. A experimentação é um método para fazer alguma coisa, chegar a algum lado ou aprender a ficar no mesmo sítio, e a improvisação é uma das formas de explorar isso. Muitas vezes, dou por mim a tentar contrariar isso, porque a improvisação talvez seja a forma dentro da música mais associada à experimentação, então como podemos pensar a experimentação sem ser pela improvisação? Nos últimos anos tenho pensado como posso pensar estruturas que são formas de composição, mas não estão completamente sobre o vazio, sobre essa folha branca que é o vazio, que é alguma coisa. Como posso criar bases e estruturas, dar alguma direção a essa improvisação ou dar estruturas à composição. Ultimamente tenho estado mais interessado nisso, mais do que a improvisação crua sobre o vazio. Como repensar a escrita, a composição, como contaminar cada vez mais as formas de fazer.
FB: O teu trabalho é muito colaborativo e isso pode ser algo óbvio no sentido em que trabalhas com música. O que se pode esperar é que exista muita colaboração, que trabalhes como instrumentista. A colaboração tem acontecido de forma orgânica ou intencionalmente, na medida em que defines a colaboração como uma característica do teu método de trabalho?
YT: Para mim quase que só faz sentido trabalhar assim, às vezes sabe-me bem tocar sozinho mas, maioritariamente, só como forma de dar um descanso entre essas colaborações e tentar ganhar um novo fôlego. Outra coisa que também não foi pensada, e que surgiu assim ao começar a conectar, foi que nesta fase me interessa trabalhar com as pessoas com quem tenho trabalhado. É sempre bom ir descobrindo novas pessoas e ir abrindo esse círculo, mas sinto que se tem criado uma dinâmica fixe entre as pessoas com quem tenho trabalhado e acho que só nos falta tempo para conseguir fazer tudo, porque há muitas ideias.
Depois, finalmente começo a deixar a pressão de produzir algo e mostrar - algo que não fui capaz de fazer, por exemplo, neste disco com a Raquel Lima, que gravámos há dois ou três anos. As coisas vão saindo e estão completamente desfasadas das coisas que estou a fazer neste momento. É bom essa sobreposição porque consigo voltar a olhar para as coisas como um mero espectador e não como uma lente que esteve envolvida neste projeto.
Neste momento só me faz sentido trabalhar com outras pessoas, em coisas diferentes e ver essa sobreposição de projetos quase sem muita coerência.
FB: O que poderemos ouvir de ti nos próximos tempos?
YT: Começando por SIRIUS, estivémos já há algum tempo em gravações e é certo que em 2025 sairá um disco, que tem a colaboração, presença do Lubanzadyo Mpemba Bula [cineasta] na captação de imagens e em encontrarmos formas de expandir este projeto para lá da música. Se tudo correr bem este projeto neste ano estará cá fora.
Continuo com as mesmas bandas de sempre. Estive em gravações com uma banda para a qual componho que se chama Chão Maior, vamos lançar o segundo disco em meados de fevereiro. Zarabatana é outro projeto com muitas gravações a serem editadas neste momento, todas muito antigas, mas acho que 2025 será o tempo certo. GUME é outro projeto em que estamos numa nova fase de gravação, estamos em processo de composição e vamos gravar este ano. Talvez vá sair em 2030 se tudo correr bem [risos].
Há este projeto de dança do Francisco Cavalcanti que será apresentado em 2025.
Para já são estes que me lembro, haverá outros de certeza.
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Filipa Bossuet
Filipa Bossuet é o culminar do interesse pelas artes, jornalismo e tudo o que me faz sentir viva. Nasci em 1998, sou uma mulher do norte com memórias do tempo em Lisboa. Guiada pela sede de informação e pesquisa autónoma licenciei-me em Ciências da Comunicação e penso também sobre as influências dos estudos de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo, criando um diálogo e questionamento entre os campos do saber. Colaborei como jornalista estagiária no Gerador, uma plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, e no Afrolink, uma rede online que junta profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal. Utilizo performance, pintura, fotografia e vídeo experimental para retratar processos identitários, negritude, memória e cura. O meu trabalho transdisciplinar tem sido apresentado em espaços como a Bienal de Cerveira, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), Teatro do Bairro Alto, Festival Iminente e o Festival Alkantara.