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INEZ TEIXEIRA
21/03/2022
O título da exposição de Inez Teixeira, Degelo, encontrado em conversa pelo seu curador Nuno Faria e pela artista, não alude apenas à serie de desenhos – ou pinturas sobre papel – que vemos na primeira sala. Sabemos agora melhor, e porque também estivemos com a artista no seu ateliê, que há um “antes do degelo”. Detenhamo-nos nas seguintes palavras de Agustina Bessa-Luís: “Antes do degelo as coisas eram inspiradas, depois passaram a ser vulgares e até repulsivas. Na caverna, antes do degelo, tudo aconteceu ao mesmo tempo: a técnica, a arte e a mística. Inventou-se tudo, pintou-se o movimento dos bisontes e fez-se amizade com Deus” [1]. Talvez por ter sito planeada para acontecer antes do advento da Pandemia, e pelo mesmo suspensa, esta exposição, patente na Fundação Carmona e Costa de 19 de Fevereiro a 21 de Maio, revela-nos agora com mais clareza, e com duas novas séries que emergiram nesse hiato de tempo, que o antes para os artistas que não sucumbiram ao depois, é na realidade possibilidade de futuro, que irrompe a cada vez que permitem que a suspensão do tempo – o seu verticalizar pela obra – tenha lugar na produção do seu trabalho. Não encontrámos nesta exposição quaisquer mercadorias.
Por Victor Pinto da Fonseca e Madalena Folgado
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VPF: Inez, alguns leitores podem estar familiarizados com o teu trabalho, mas gostava de começar com uma visão integral da exposição que tens atualmente na Fundação Carmona Costa. Estou a pensar muito tecnicamente se a exposição deve ser entendida de uma perspetiva antológica de desenho? Ou é mais ou menos isso, considerando existirem duas séries recentes de pinturas?
IT: É uma antológica de desenho na medida em que recua até 1989, mostrando trabalhos dessa data até 2021, mas não houve uma preocupação de escolher trabalhos que mostrassem um percurso. A Fundação Carmona e Costa desenvolve um projecto de exposições que se centra na área do desenho, dando total liberdade ao curador e ao artista. A selecção foi feita privilegiando os trabalhos em desenho, inéditos, que nunca tinham sido mostrados e que constituem um núcleo extenso do meu trabalho, e que revelassem precisamente essa pratica constante do desenho.
VPF: Falando da série de cinco pinturas que abre o espaço da Fundação e que me remetem para o título da exposição, Degelo…Pergunto-me se convocam o aquecimento global ou chamam a atenção para o Antropoceno, com o tipo de semelhanças que produzem com icebergs e placas que flutuam à deriva insubmissamente ou glaciares que derretem, contribuindo pouco a pouco para o aumento global do nível dos mares…Ou são simplesmente pinturas desde um pensamento abstrato, que trazem novos e inesperados pontos de vista?
IT: Estes trabalhos não convocam directamente ou de forma explicita o aquecimento global, o impacto da actividade do homem na Terra, sendo que são obviamente fenómenos graves e preocupantes que revelam a forma do ser humano estar no planeta e esse mundo do qual faço parte. A destruição das florestas, a degradação e a poluição, são fenómenos com os quais lidamos diariamente. No princípio dos anos 20 do século passado, D. H. Lawrence em “A dança da serpente nos Hopis”, já nos fala nas centenas de automóveis que se deslocavam ao Arizona para assistir a este ritual índio. Cerca de três mil pessoas terão assistido à dança, naquele ano.
Até onde pode ou deve chegar a nossa curiosidade?
O Carl Sagan dizia que “o nosso planeta é uma partícula solitária numa imensa escuridão cósmica envolvente”. Somos pequenos mas somos singulares.
Aqui o Degelo, ainda que essas preocupações estejam presentes, remete-nos para um sentido metafórico, o “invisível mas palpável labor do tempo que tudo dilui e destrói”. [2]
O tempo é capaz das mais estranhas e extraordinárias metamorfoses.
VPF: Há uma pintura na primeira sala, azul, se assim a posso denominar, que me recorda uma passagem do livro Mundo Subterrâneo e a expedição de Robert MacFarlaine à Gronelândia, quando MacFarlaine se refere à beleza polar: “O gelo profundo é azul, um azul sem igual em todo o mundo – o azul do tempo”. Como pintora interessa-te dialogar com investigações em outros campos, como as ciências da natureza, geologia e geomorfologia?
IT: Claro que sim. O meu trabalho tem especial foco na Natureza, numa pedra, numa cordilheira, numa raiz. Por isso sim, interessa-me o diálogo com outras disciplinas como a geografia por exemplo, mas também a cosmologia. Nas ciências naturais, a biologia e na biologia interessa-me muito a anatomia e a botânica. E igualmente as ciências humanas, a filosofia.
VPF: A propósito do “gelo profundo” e “o azul do tempo”: Em contraponto aos longos períodos de tempo de criação que habitualmente precisas para conceber uma exposição, antes das pinturas começarem a tomar forma, cada uma é depois feita rapidamente, geralmente numa única sessão, usando tinta acrílica de secagem rápida; pinturas muitas vezes feitas no chão, em muito pouco tempo e dinâmicas.
Esses diferentes níveis de duração sinalizam o significado do tempo como conceito, premissa, no teu processo de fazer, onde permanência e suspensão do tempo operam simultaneamente. A pergunta é, como é que capturas essa relação momentânea, esse sentimento, essa intuição, que se traduz numa emoção que produz a pintura? É por exemplo o trabalho da tua memória…a investigação ao longo de dias seguidos e anos seguidos a funcionar? Essa articulação da qual resulta o acontecer, a elegância, a densidade e tensão espacial da tua pintura? Pode-se dizer que o surgir da série Degelo demorou uma semana e os tais dias seguidos e anos seguidos de investigação e autodisciplina que te dão essa sensibilidade e controle visual?
IT: Penso que o meu trabalho tem pouco de intuitivo. Interessam-me determinadas questões que têm sido constantes ao longo do tempo. Estudo e pesquiso assuntos que me interessam, são muitos. Não faço investigação com um intuito que disso resulte uma série de trabalhos, cujo conceito deriva da pesquisa que é feita. Estudo por interesse, curiosidade, para meu conhecimento, e isso tem obviamente influência no meu trabalho mas não directamente, ou de uma forma que seja perceptível. Faz parte de um todo. Depois tudo está sujeito a escolhas, interpretações, a não explicações, omissões e ocultações. O meu interesse vai mais por aí. Nas ciências exactas só podemos falar do que sabemos, mas não na arte, aí podemos falar de tudo, do que conhecemos e do que não conhecemos. O conhecimento provoca também perturbação, desassossego, levanta dúvidas para as quais não temos explicação. É esse o meu interesse, o inefável.
Na pintura trabalho muito por séries. A série do Degelo, que referes como sendo pintura, pelo facto de ser acrílico sobre papel, é trabalho de longos meses, às vezes é preciso voltar atrás para se poder avançar, e o facto de o acrílico ter uma secagem rápida em nada significa que seja de rápida execução, pelo contráriotal como o ‘degelo’ tem muitas camadas que estiveram lá e que foram desaparecendo.
VPF: O que mais me encanta na tua obra é não teres uma linguagem circular condensada ao ponto de coagular. Olho para trás e em retrospetiva presenciei sempre séries muito diversas de pinturas e a sensação de estar sempre a ver uma artista que se diferencia, uma autora com um conjunto de características próprias e exclusivas. A pintura como um vasto universo de pesquisa ou investigação, no que me recorda a variedade da pintura de Richter ou os heterónimos de Pessoa. Uma a uma, como é que surge a ordem mental dessa multiplicidade/ variedade de pinturas, que cultivam o teu estilo pessoal (no meu entender)?
IT: É muito complicado falar do processo criativo, que começa sempre na experiência pessoal. Depois há que ultrapassar essa experiência, tentar encontrar um caminho. Há muitos caminhos para as ideias. À medida que se avança há uma outra experiência que é a da descoberta, mas essa descoberta suscita novas dúvidas e por aí adiante. Trabalho a partir dessa margem que se situa naquilo que não conhecemos. O acto criativo também nasce de uma disponibilidade para ver. A realidade desdobra-se no fluxo constante do tempo. Acho que a resposta anterior fala um pouco disso. É preciso cada vez mais dar espaço à dúvida, à incompletude, ao lado cósmico das pequenas coisas.
MF: Sentes-te testemunhar e/ou encontras liberdade naquilo que não foi por ti pensado, na irrupção de cada linha e/ou mancha, em cada metamorfose?
IT: A liberdade começa naquilo que pensamos. O que não pensamos não existe. Há escritores que começam um romance com uma ideia, outros começam com uma frase que têm na cabeça, que sabem ser um princípio mas que não sabem para onde os leva. A Susan Sontag dizia que a maior parte das vezes que começava a escrever tinha apenas uma frase. Não sei bem o que é isso do 'não pensado'... um acidente sim é possível, mas o pensamento está lá sempre. O meu desenho e a minha pintura começam sempre por essa 'frase'. Só na oração as palavras nos saem da boca, sem pensarmos antes no seu sentido mais profundo.
MF: Referia-me ao ‘não pensado’ do qual resulta o espanto, ou até mesmo ao automatismo de alguns gestos. Prosseguindo, do livro que acompanha a exposição tomo o verso “a coragem de receber o mais intenso sonho do tempo”, verso de um poema de E.E. Cummings. Olho para a capa, e reconheço o teu atelier; mas não à primeira, confesso, a primeira impressão é das suas paredes serem pintura. Há um dentro e um fora do ateliê e/ou, até onde se estendem os limites da ‘receção do mais intenso sonho do tempo’?
IT: Esse verso, fora do contexto do poema, pode ter leituras bem diferentes da minha. Os poemas que surgem no livro escolhi-os porque, de certa forma, remetem todos eles para aquilo que me interessa, fascina e inquieta... a Natureza, o ser humano como parte integrante dessa Natureza, o tempo, a criação, o cosmos e o microcosmos, a estranheza, o transitório, o indizível...o espanto perante uma árvore, uma pedra ou o vento, “o mistério das cousas”, de que nos 'fala' Alberto Caeiro no seu poema, que também incluímos no livro.
Não consigo pensar nesses termos. Para mim o atelier é um lugar de criação, mas também de leitura, de escrita, de reflexão, de imaginação. Não há um dentro e um fora e não há limites. Aquela parede, cuja imagem aparece na capa do livro, é isso mesmo, um espaço sem limites.
MF: Eis algumas imagens que trouxe da tua exposição: Os seixos que te escolheram e recolhes metamorfoseiam-se em objetos que querem ser escultóricos; fazes aparecer encostas de malaquite que levantam poeiras e criam atmosferas verdes; com aparas de borracha e grafite regeneras a pele das árvores; crias velaturas para o que é fotossensível e portanto não pode ser totalmente exposto à luz da razão, pois extinguir-se-ia; saras feridas antigas por meio de reações químicas de incompatibilidade; abres-nos uma brecha para um Atlas do Corpo Humano que mapeia órgãos que pulsam, mas noutros desenhos, configurações e corpos…E, advertes-nos em tom vagamente barroco: Cuidado, vanitas! Tudo é nesta exposição animosamente instável, e tudo nos acontece através dos teus objetos, desenhos e pinturas sobre papel. Pensando a passagem do texto da Agustina (na introdução), e porque as imagens do passado estão no teu trabalho em permanente gestação, fazendo com que portanto tragas contigo o futuro, suspenderás também o degelo; mas agora este, que avança mais rapidamente e sem tempo para despedidas, como medida ecológica emergente?
IT: Não nos vemos nunca livres das imagens do passado como estamos sempre a viver o futuro. Não vejo o meu trabalho como uma manifestação que remeta para a ecologia nesse sentido. Já o disse antes. Não denuncia nada. Pelo contrario, só levanta duvidas, não visa um objecto concreto. O desenho revela e esconde, é aberto a múltiplas leituras. O tronco de uma árvore pode ser uma paisagem inteira.
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Notas
[1] Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo, Lisboa, Guimarães, 2004, p. 50.
[2] Nuno Faria "O desenho em negativo" in Inez Teixeira, Nuno Faria (ed.) Degelo – Desenho 1989-2021, Lisboa, Sistema Solar, p. 187.