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JORGE MOLDER
Licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Jorge Molder é Director do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) desde 1994. Em 1990 ingressou na Fundação Calouste Gulbenkian como assessor, tendo sido depois director-adjunto do Arquitecto Sommer Ribeiro, primeiro Director do CAMJAP. Como fotógrafo, Jorge Molder, possui um relevante percurso nacional e internacional. Foi artista convidado na Bienal de São Paulo de 1994 e representou Portugal na Bienal de Veneza de 1999.
Nesta entrevista falou-se naturalmente das responsabilidades directivas no Centro de Arte Moderna, da Instituição, do programa de actividades, da Colecção de Arte, e das suas aquisições. No encadeamento da conversa houve ainda ocasião para abordar a trajectória do CAM e perspectivar a sua posição no actual panorama institucional e no contexto de actuação da Fundação Calouste Gulbenkian, que comemora o seu cinquentenário.
Por Sandra Vieira Jürgens
Lisboa, 21 de Agosto de 2006
P: Qual é a relevância do Centro de Arte Moderna (CAM) no espaço nacional?
R: Em primeiro lugar, o Centro de Arte Moderna é um sÃtio que — com as qualidades que temos de reconhecer à s pessoas que iniciaram a colecção, não obstante ter havido problemas de percurso — possui uma boa colecção de arte contemporânea portuguesa. Desde a sua criação, a sua vocação foi predeterminada por esse planeamento — fazer uma colecção de arte portuguesa — e tentar apresentar essa mesma arte em termos contextuais, isto é, tentar produzir, na medida do possÃvel, confrontos com aquilo que se está ou se esteve a fazer nalguns sÃtios.
O Centro de Arte Moderna nasceu numa altura em que não existiam, no contexto nacional, outras estruturas. Portanto, era natural que essa missão convocasse um público mais ou menos seguro. Ao longo dos tempos, houve transformações e foram surgindo outras instituições com propostas diferentes.
Fazendo um balanço, penso, em primeiro lugar, que a questão de haver uma colecção de arte portuguesa de referência é importante e que deveria ser reforçada. Se bem que o nacionalismo artÃstico levante uma série de problemas (muito embora, paÃses muito poderosos, como a Inglaterra ou os Estados Unidos tenham museus de arte nacional), creio que há um sentido, que convém não esquecer, que é o de a pobreza portuguesa ser de tal maneira grande que a possibilidade de apresentação de desenvolvimentos artÃsticos nacionais é mÃnima. Por exemplo, os museus na Alemanha são todos internacionais, à semelhança do que acontece noutros paÃses. No entanto, ao fim de visitar três ou quatro museus, ficamos a conhecer a arte do paÃs. Em Portugal, se não houver um cuidado mÃnimo com os artistas portugueses, corre-se o risco de se ter visitado o paÃs sem que se tenha visto nada do que é realmente importante. Por outro lado, fazer museus internacionais que têm, cada vez mais, colecções muito idênticas, não me parece que seja uma vantagem.
O que penso que é importante, neste momento, em Portugal, é, cada instituição, tentar especializar-se nalgum campo estabelecendo com as outras instituições relações que permitam uma complementaridade que à partida é desejável. Por exemplo, se vai inaugurar o Museu Berardo — que vai ter uma grande colecção de referência internacional — e se existe a colecção da Fundação Ellipse com referências ainda mais próximas da vanguarda, é importante que nós saibamos julgar, conseguindo articular os poderes que temos que, de facto, não são muito grandes. Não somos um paÃs que tenha dezenas de museus. Quantos museus de arte contemporânea existem, neste momento, em Espanha? Há mais de 20. Nós continuamos a ter um número reduzido. Por outro lado, a vocação museológica ou museográfica é pouco significativa em Portugal. A maior parte das tentativas dos próprios museus é de se transformarem em centros de exposições — tudo o que gostariam de fazer é mostrar exposições. Penso que é importante ter o cuidado de mostrar, não apenas exposições (que são sem dúvida oportunidades muito importantes, quer sob o ponto de vista da criação, quer sob o ponto de vista da compreensão), mas também mostrar colecções, desenvolvendo a experiência de trazer o passado à discussão.
P: Defende essa linha de actuação?
R: Defendo a linha que conjugue, primeiro, os poderes do paÃs, ou seja o que é que concretamente existe e, depois, na própria instituição, a sua especialização com, obviamente, desafios de toda a ordem, quer com artistas contemporâneos, quer com artistas mais consagrados ou menos consagrados. Penso que o Centro de Arte Moderna tem feito um trabalho bastante exemplar, não só a nÃvel de exposições antológicas e retrospectivas, como a nÃvel das exposições de jovens artistas, como, por exemplo, a série de exposições que começámos há uns 10 anos, â€7 Artistas ao 10.º Mês.†Diria que a maioria dos artistas no panorama artÃstico nacional saiu dessas exposições, ou que quase todos estiveram ligados a essas iniciativas. Apesar de termos trabalhado com curadores tão diferentes quanto o João Miguel Fernandes Jorge, o João Pinharanda, a Leonor Nazaré, o Miguel Amado, ou o Francisco Vaz Fernandes — pessoas completamente diferentes — cada um trouxe a sua contribuição e não desfigurou a iniciativa, antes pelo contrário, ela ficou mais rica (não foi sempre a mesma visão, sempre os mesmos artistas) e conseguiu desdobrar um leque que domina praticamente, hoje em dia, a cena jovem contemporânea.
P: Pareceu-me que pretendia que o enfoque fosse mais na apresentação da colecção do que realizar exposições temporárias…
R: As questões todas têm de ser vistas sempre em duas dimensões importantes: primeiro, o que é que nós somos e gostarÃamos de ser e, em segundo, o que é que nós podemos ser. O Centro de Arte Moderna faz parte de uma constelação e a constelação Gulbenkian não pode ser vista como um centro de exposições. A actuação da Fundação Gulbenkian, a nÃvel das artes, é vasta, diferenciada e muito completa. Actua, não só a nÃvel da divulgação e de apoio à criação, mas também no nÃvel profundo da formação. Não se pode isolar o Centro de Arte Moderna como um centro de exposições fora de uma polÃtica que tem vindo a ter resultados muito positivos desde os anos sessenta. Se pensarmos que Portugal não é um paÃs que tenha grandes tradições artÃsticas — a nÃvel das artes visuais, houve alguns fenómenos ligados ao Modernismo, com deslocamento de pessoas a França, mas depois houve um silêncio muito grande que praticamente se manteve até aos anos sessenta. Dos anos setenta para cá, gerou-se uma tradição e uma tradição é fundamental porque os artistas não existem isoladamente. Temos sempre uns casos de artistas que existiram isoladamente, gigantescos. É a minha opinião sobre o Pousão e sobre o Amadeo de Souza-Cardoso que é uma figura absolutamente Ãmpar. A exposição que estamos a preparar sobre o Amadeo vai restituir o Amadeo à sua dimensão real. O Amadeo tem sido visto como um artista português que foi para França, atravessou todas as modas e as pessoas estiveram mais atentas a isso do que propriamente ao corpo da sua obra. Independentemente disso, penso que o Centro de Arte Moderna tem uma colecção importante, que é fundamental desenvolver, mostrar, tornando-a cada vez mais conhecida — mas isso não pode ser o limite da sua actuação. A sua actuação tem forçosamente de estar ligada com a apresentação de artistas de várias épocas (das que o Centro cobre), apresentando casos, que é o que nós yemos feito em função das nossas possibilidades. O Centro de Arte Moderna tem, apesar de tudo, uma geografia vasta e não tem tido disponibilidades orçamentais para realizar certas exposições. Mas, por outro lado, se existem em Portugal sÃtios onde elas podem ser mostradas, para que é que vamos entrar em competição com esses sÃtios? A polÃtica do Centro de Arte Moderna tem sido a de apostar em artistas que não são propriamente considerados de primeira página. Curiosamente, alguns acabaram por obter uma grande visibilidade. Por exemplo, a exposição do Thomas Joshua Cooper, que era um artista, na altura (em 1994), desconhecido, foi extremamente importante. O Thomas Cooper, hoje em dia, tem um percurso exemplar.
O que acho que é importante é as pessoas procurarem articular aquilo que fazem com o que os outros fazem, para não estar toda a gente a fazer a mesma coisa. Para um paÃs com os recursos de Portugal, pior ainda é entrar numa competição para ver quem vai apresentar o artista mais à frente do que está mais à frente do artista mais à frente. Penso que isso é muito pouco saudável.
P: Como é que definiria a linha de exposições do CAM?
R: Propus algo quando comecei aqui a trabalhar e acho que o tenho conseguido inteiramente que é o seguinte: nós temos uma produção relativamente caseira, isto é, desenvolvemos sistemas de pesquisa, de interrogação, de formulação de hipóteses, de inquérito próprios, também trabalhamos com curadores de fora, nacionais e internacionais. Nestes últimos anos, com restrições orçamentais evidentes, temos trabalhado muito mais com curadores nacionais. Mas a equipa do CAM é capaz de, per se, desenvolver trabalhos de investigação e de continuar um trabalho que, na altura era natural que fosse feito pelo Centro de Arte Moderna e por mais ninguém (na altura não havia nada feito), que é um trabalho de exposições antológicas e retrospectivas de artistas portugueses. As pessoas não se apercebem muito disso mas, no final dos anos setenta, não havia um corpo de conhecimentos suficiente sobre a arte portuguesa contemporânea e, hoje em dia, há. Actualmente, estamos praticamente esgotados, tirando uma exposição que o Centro pretende ainda fazer do José Escada, não há nenhum artista português que não tenha tido ou uma antológica ou uma retrospectiva desde o final dos anos oitenta até agora. E isso é fundamental; há um corpo de conhecimentos que não existia, sem o qual não é possÃvel fazer nada. Melhor ou pior, existe.
P: Quais são os planos para o futuro, em termos de programa expositivo?
R: Penso que os planos para o futuro serão exactamente continuar aquilo que temos feito, excepto que em algumas coisas podÃamos ser mais ousados. Se as coisas correrem bem, se existirem possibilidades — não me refiro a abertura, a qual existe. Por exemplo, este trabalho que o Pedro Cabrita Reis está a fazer, que algumas pessoas têm vindo a acompanhar, é extraordinário, porque é um trabalho de grande dimensão, sem dúvida, mas é um trabalho de grande experimentação. O Pedro Cabrita Reis não chegou aqui com uma solução definitiva; ele tem vindo a trabalhar; há alturas em que se desloca no meio da instalação, fazendo transformações, operando radicais mudanças, sendo engraçado ver um criador trabalhar. Esse é um conjunto de coisas que, no futuro, se for possÃvel, gostaria muito que o Centro de Arte Moderna fizesse, para além da sua colecção que, penso, tem coisas absolutamente extraordinárias e é fundamental, porque senão os portugueses não vão conhecer nada do que foi produzido até hoje.
P: Qual é a sua visão para um Centro de Arte Moderna ideal?
R: Para mim, um Centro de Arte Moderna ideal tem de ser um sÃtio capaz de tratar a questão da colecção de uma forma diferente, mais avultada, com maiores possibilidades de transformação e de mostrar aquilo que tem, uma vez que tem mais obras do que aquilo que está a mostrar. Portanto, tem uma mobilidade maior. Por outro lado, acho que, num paÃs como Portugal, tudo o que se fizer pela educação — até de uma forma rigorosa, quase agressiva — é fundamental, porque nós estamos, em termos de educação, muito atrasados. O factor educação é fundamental e para haver uma educação para além da básica que a escola dá, as escolas devem trabalhar com outras instituições que têm outras visões do mundo. Não estou a pensar só no Centro de Arte Moderna, estou a pensar no Museu de Arte Antiga, certamente. Essa componente de mostrar a colecção e de contextualizá-la, aumentando, se possÃvel, o número de projectos que o Centro possa pedir — quer a artistas muito novos, quer a artistas em que vale a pena apostar — mas também fazer outro tipo de exposições mais ambiciosas, mais dispendiosas, sem dúvida.
P: Sente diferenças, em termos do público que vem ao CAM, resultantes da criação de um Sector de Educação?
R: Há uma diferença completa que a mim me satisfaz enormemente. Há tempos, uma pessoa que eu prezo muito escrevia um artigo dizendo que tinha ido a uma série de sÃtios em Portugal e que estava tudo vazio, e que tinha estado aqui a ver uma exposição um dia. Respondi-lhe, não através do jornal, mas particularmente porque sou amigo dele, dizendo que nesse dia estiveram aqui, pelo menos, 1700 pessoas. De facto, isso antes era impossÃvel: as pessoas vinham aqui para vir ao self-service e nem lhes ocorria ir ver a colecção. Hoje em dia, chego aqui, à s vezes ao fim de semana, e no Verão não são só estrangeiros que vêm ver o centro de arte moderna do paÃs que estão a visitar ou o sÃtio relacionado com a modernidade e com a vanguarda, há portugueses que vêm passar férias a Lisboa e que vêm ao Centro de Arte Moderna. Isso dá-me imenso contentamento. Por outro lado, há crianças que devem dizer aos pais que foram ver o Centro de Arte Moderna e também há os pais que, de repente, perceberam que ir todos os dias passear com o filho ao Colombo é capaz de ser um pouco pobre.
P: A colecção neste momento está dirigida às visitas guiadas, designadamente às escolas. O que se poderia fazer para tentar dinamizá-la? Qual é o plano curatorial para apresentação da colecção?
R: Os espaços são o que são. Penso que o espaço é muito bonito. Talvez não seja é adequado à arte que se fez. Talvez o arquitecto Sir Leslie Martin não tenha percebido exactamente os nexos totais que era necessário desenvolver. Desde sempre, é um centro de experimentação porque não é possÃvel mostrar nada sem mudar tudo. Conhece isto vazio: é um sÃtio bom para um snack-bar ou para uma esplanada do que propriamente para um museu e não tem nada a ver com a arte que se fez em Portugal durante esses anos. Isso tem-nos dado azo a criar permanentemente experiências que fizemos, por exemplo, na última montagem de exposições rotativas. Acho que é fundamental que as pessoas possam ver ou exposições de desenho ou colecções de outros trabalhos que existem na colecção e que não faz sentido numa apresentação permanente mas que faz sentido, em termos de as pessoas saberem que existe e terem acesso a isso. É óbvio que o museu também vai mudar substancialmente porque o acesso à colecção também vai mudar. As pessoas, em breve, vão passar a ter acesso à colecção na internet. Vão poder ver o que existe em determinadas áreas que normalmente não estão apresentadas ao público. Isso também vai desencadear uma transformação grande no museu e na própria dinâmica da colecção. De qualquer modo, penso que a apresentação da colecção tem de ter uma dinâmica forte, maior do que tem tido, pois havia dificuldades logÃsticas para operar grandes mudanças.
P: Quais são, para si, os três momentos ou núcleos mais emblemáticos da colecção?
R: O núcleo mais emblemático é o do Amadeo de Souza-Cardoso, sem dúvida. O segundo núcleo é a doação Fernando Calhau. A Maria Cândida Calhau ofereceu ao Centro de Arte Moderna — na sequência da exposição que houve do Fernando Calhau e do bom relacionamento que mantivemos — 570 obras, esculturas, gravuras, pinturas, vÃdeos, instalações. Depois, há doações extremanente importantes ou pessoas que têm oferecido peças muito significativas, desde o Ângelo de Sousa à Ana Hatherly que tem sido uma grande reforçadora da colecção do Centro de Arte Moderna.
P: Como vai crescer a colecção?
R: Penso que a colecção vai crescer em dois momentos: um, que é o decrescer. A origem da colecção não é muito pura. A Fundação estava muito ligada a questões de bolsas e achava-se que os bolseiros tinham naturalmente o direito de figurar na colecção, o que significa que temos algumas obras que não sabemos de quem são, nem ninguém sabe. Essas coisas acontecem em todas as colecções. Mesmo na nossa colecção de arte britânica, que foi inicialmente comprada por três dos maiores conhecedores na altura, o Roland Penrose, o Herbert Read e o Alain Bowness, há obras que não sabemos o que são. Uma vez, encontrei o Michael Craig-Martin e ele disse-me que há artistas que fizeram duas ou três obras e, depois, arranjaram emprego numa companhia de seguros, casaram com a filha de não sei quem e dedicaram-se aos lanifÃcios, nunca mais tendo pintado. Mas são obras interessantes.
Numa primeira fase, a colecção vai sofrer uma certa depuração. Há obras de que gostamos mais, outras dos anos sessenta e setenta que não gostamos tanto mas que podem um dia voltar a ser vistas. Mas há algumas que não atingem o limiar mÃnimo para serem representativas.
Outro aspecto é que, penso, nós tenderemos, cada vez mais, a seguir a trajectória de artistas. Cada vez mais, as pessoas vão tentar perceber orientações e tentar segui-las, sem cair no primeiro “ébouissement.†As pessoas veêm trabalhos que deslumbram muito e depois ficam com a casa cheia de peças e já não conseguem encontrar essa força inicial nem encontram um sentido, uma sequência. Penso que isso está a acontecer em todo o lado: existe um maior interesse em acompanhar sequências, continuidades.
P: Isso implicaria uma mudança de direcção já que durante muito tempo a colecção do CAM visava ser abrangente e estabelecer um panorama da arte portuguesa de 1910 em diante?
R: É importante seguir os vários momentos da arte portuguesa, mas não é esse o sentido do que estou a dizer. A partir dos anos oitenta — isto é uma questão internacional — os museus sentiram-se atacados, no sentido em que as suas possibilidades financeiras são reduzidas perante as possibilidades do mercado e aparecem parceiros muito mais poderosos. Todos conhecemos, hoje em dia, associações de coleccionadores que têm muito mais possibilidades do que os museus. A colecção de arte britânica, é isso mesmo — uma fuga para a frente — “Vou apostar em artistas mais novos e ver o que acontece.†Estou convencido que, hoje em dia, a orientação é “ Vou apostar em jovens artistas mas com mais prudência, que não sejam tão novos e que já me deêm algumas garantias de continuidade para os colocar na colecção, ou seja de que vão continuar no futuro e que não vão dedicar-se a qualquer outra actividade.â€
P: Como são tomadas as decisões de adquirir obras?
R: Primeiro, costumamos comprar obras que estão relacionadas com as exposições que realizamos. Em segundo lugar, as compras são feitas por mim, com a aprovação incondicional do Conselho de Administração, mas é óbvio que trabalho numa equipa; represento aquilo que ouço dizer, nem que isso represente uma oposição. Sou, por natureza, uma pessoa que gosta de discutir e de discordar. Isso ajuda. Curiosamente, fui convidado pelo Fond National d´Art Contemporain a fazer parte da Comissão de Compras e depois de ter ido a uma reunião achei “Muito bem, muito obrigadoâ€. Saber como funciona uma comissão foi uma experiência impressionante. É preferÃvel pôr uma pessoa que erre do que pôr uma comissão, porque uma comissão tenta gerar nÃveis de equalização, tenta atingir consensos que são todos negociados. Se pensar nas obras que comprei desde que cá estou, tenho a consciência tranquila de que acertei. Se me disserem: “você podia ter comprado algumas peças que não comprou porque teve medoâ€, há algumas. Por exemplo, podia ter comprado a maior parte da exposição da Marlene Dumas e não comprei porque ninguém me ajudou. Na altura, a Marlene Dumas teria feito um preço tão extraordinário mas, não tinha a ver com a colecção. Há artistas que expuseram cá e que se podia ter adquirido obras, mas há aquela ideia de que a colecção é de arte portuguesa, e também de arte britânica, mas não pode ser de outras nacionalidades. Expusemos desde o Michelangelo Pistoletto ao Markus Raetz, dos quais poderÃamos ter adquirido algumas obras. Mas a questão é: que sentido é que isso faria? As boas obras de arte fazem sempre sentido.
P: Há a possibilidade de alargar os critérios de compra em relação à arte nacional e à arte britânica?
R: AÃ, penso que já respondi à sua pergunta. Nós vestimos sempre aquilo que gostamos e que podemos. Não me interessa muito aquelas colecções de chapa, em que se entra e se vê 10 nomes que são iguais em todo o lado. Mas acho que se podia comprar peças de pessoas com quem temos relações especiais ou de amizade e que são artistas inquestionáveis.
P: De que forma é que o facto de ser artista ajudou no modo como dirige o CAM?
R: Ajuda-me muito. Conto-lhe a minha vida toda: fui um aluno muito bom na faculdade, penso que fui um dos melhores do curso e há algo que descobri há muito tempo que é — sou incapaz de dar aulas. Tentei várias vezes, em circunstâncias especiais. Eu comprrendo que nalguns casos seja uma questão emocional, uma pessoa pode sentir vergonha mas, para mim, não é essa o problema. É-me indiferente falar para 10 ou 500 pessoas. Essa não é a questão. Eu detesto ensinar. Portanto, isso foi um pouco a história da minha vida pois eu poderia ter sido, sem dúvida, professor e ter ficado na faculdade.
Também descobri uma coisa fundamental: eu preciso de ocupar-me completamente, e não é uma questão terapêutica. Acho que alguns artistas conseguem sair de si através do ensino, quando são professores de arte e, para mim, isso também é vital. Gosto de sair de mim, ocupar-me com toda a dedicação e empenho na obra de outra pessoa. Por outro lado, aprendo imenso com outros artistas. Como não sou professor nem socialmente muito activo, estaria completamente isolado, se não fosse isso. Penso que o facto de trabalhar e de me apaixonar pelas obras de outras pessoas, para mim, é essencial. É como manter o coração a bater.
P: De que maneira isso tem efeitos no seu trabalho?
R: Eu não sou um artista de atelier. Se for para casa à espera de ter uma ideia nunca a tenho. Tenho ideias quando estão aà a descarregar peças; escrevo num papel e, logo, vou fazer aquilo. Por outro lado, não é a convivência no sentido da aprendizagem, mas sim no sentido de um confronto, do estar vivo e de estar vivo com outros que têm as mesmas coisas. Gosto de discutir. O Picasso costumava dizer que os crÃticos discutem a essência da arte e os artistas discutem a essência da terebentina. Agora, temos no CAM a exposição de um artista de que gosto muito desde há muitos anos, o Craigie Horsfield e é engraçado as discussões que nós tivemos sobre questões técnicas. Nós nunca falámos sob o ponto de vista conceptual. Falámos única e exclusivamente sob o ponto de vista técnico. Há outros com quem falo apenas sob o ponto de vista conceptual, como por exemplo, o João Queiroz. Interessa-me extraordinariamente, porque é um mundo a que sou completamente alheio que é o da paisagem. Interessa-me imenso perceber porque é que, a ele, lhe interessa a paisagem e como é que ele se torna um paisagista. Ainda por cima, ele que é um homem que não pinta a partir do que vê mas do que transforma. São essas diferenças todas que existem entre um indivÃduo que trabalha, por exemplo, directamente com as coisas, como o João Queiroz, para quem os pigmentos fazem sentido, para quem esse toque concreto com a realidade faz completamente sentido e os artistas para quem isso não faz qualquer sentido, porque trabalham só pensando sobre coisas. É toda essa diversidade que me interessa muito.
P: O facto de ser também artista tornará muito mais confortável para os artistas o processo de colaboração com eles?
R: Há aspectos vantajosos e outros desvantajosos. Os vantajosos é, por exemplo, mesmo um artista que seja muito mau, tenho sempre muita pena, porque é um artista e percebo o esforço que ele faz, mesmo que aquilo não resulte. Por outro lado, na questão do desenvolvimento de um problema prático, uma outra pessoa pode pensar que é um capricho mas eu percebo muito bem isso.
P: O trabalho de comissariado é o mais gratificante?
R: É sem dúvida. É o contacto com os artistas, com a forma como as coisas se geram, se engendram e o modo como uma instituição consegue intervir, à s vezes, nem sempre, porque há trabalhos que chegam já prontos. Acho mais interessantes os trabalhos que nascem, não de uma colaboração porque o artista é sempre o artista e a instituição é sempre a instituição, mas naquilo em que a instituição pode humildemente dizer “Em que é que posso ser útil?â€
P: Como são tomadas as decisões fundamentais, em termos de linha de actuação?
R: Tenho uma relação muito próxima com todos os meus colaboradores, pelo que falo quase tudo o que penso e sobre o que acontece. A partir daÃ, faço propostas aos meus superiores que, regra geral, são aceites.
P: Como avalia a alteração de direcção que o CAM foi sofrendo, por exemplo com o ACARTE, com o CITEN com o DDP?
R: Essas modificações significam que os tempos mudaram, que os agentes em campo mudaram e que muita coisa se transformou. Algumas delas parecem fazer todo o sentido. Outras, começo a ter muitas dúvidas, porque penso, cada vez mais, que temos de deixar hipóteses nas nossas actuações, não só a nÃvel do CAM mas em todas. Devemos poder voltar atrás e reencontrar links perdidos. Há coisas que, penso, sobrevivem melhor naquilo em que são especÃficas. Não sei como está o CITEN; hei-de ir saber um dia destes. O CITEN era uma instituição residual que estava ligada ao Centro de Arte Moderna e tem um trabalho de excelência, estando possivelmente mais ligado a uma faculdade de Belas-Artes do que propriamente estaria a um centro de arte moderna que lhe providenciava algumas infra-estruturas que evidentemente não estavam vocacionadas para o tipo de actividade do CITEN, que se articula muito melhor com as actividades diversas de uma faculdade de Belas-Artes. Por outro lado, nas outras coisas não sou capaz de lhe dar uma resposta clara. Tenho pensado muito sobre o assunto e não tenho a certeza. Penso que o Centro de Arte Moderna tem aspectos que deveriam ser completados. Por exemplo, toda a relação dos artistas com a imagem em movimento tinha de ser completada, não só em termos de filmes de artistas mas igualmente em termos de filmes sobre artistas. É algo que tem tido um desenvolvimento nos últimos 30 anos e isso está em falta. Por outro lado, o ACARTE surgiu como um sÃtio onde se fermentaram inúmeras ideias que deram origem a infinitas manifestações. Hoje em dia, penso que para um centro de arte moderna (pensei a certa altura que a questão estava resolvida e não estava), é fundamental trabalhar com criadores como o Jan Fabre, a Pina Bausch, a Anne Therese de Keersmaeker, eventualmente, o Wim Vanderkeybus, artistas mais novos. Penso que se perdeu excessivamente o contacto com isso. Pensei que isso seria transitado para uma zona de dança e continuaria a haver contacto, mas subitamente ficámos um pouco isolados.
P: Acha que isso foi prejudicial para a imagem do CAM?
R: O CAM não tem imagem. O CAM pertence à Fundação Gulbenkian. Estou a pensar que, dentro do universo Gulbenkian, isso foi eventualmente um aspecto que, relativamente ao CAM, pensei que seria compensado de outra maneira e não foi.
P: De uma forma quase esquemática, como vê retrospectivamente a evolução do CAM até aos dias de hoje?
R: Não conseguimos traçar uma evolução no sentido de objectivos conseguidos — aumento de público, aumento do sector de educação, aumento de competências (no sentido de preparação de exposições). Em falta — seria algo para repensar em termos nacionais ou na Fundação Calouste Gubenkian — está a questão da internacionalização da arte, algo que tem sido pensado sempre de uma forma apressada. Penso que a internacionalização é uma coisa do exterior, não é interior. E sempre foi pensada do interior. O interior é uma questão que os artistas resolvem na medida do que podem e que algumas estruturas apoiam. Só meia dúzia de artistas pode fazer exposições exteriores e, de vez em quando, há umas estruturas que podem dar um pequeno apoio. Em termos de polÃtica de um paÃs, talvez haja hipóteses de pensar de fora para dentro. Isso é curioso, pois não vi isso ser muito explorado e talvez valesse a pena explorar. E talvez aà a Fundação Gulbenkian esteja em condições que mais ninguém está e, neste momento, não tenho qualquer dúvida.
P: Importa-se de concretizar?
R: Não vou concretizar porque não quero, mas tenho ideias muito, muito, concretas sobre esse assunto. O que é que fizemos? O CAM conseguiu um serviço de educação que funciona bem. Há pessoas que vêm cá, o público aumentou, as pessoas interessam-se mais por arte, continuámos um trabalho feito pelo Arquitecto Sommer Ribeiro. Trabalho que talvez, na altura, não fosse tão vÃsivel mas que é um trabalho que permitiu criar um corpo de conhecimentos. Houve uma época que foi complicada, não só para o CAM mas para todo o mundo da arte. Nos anos noventa, há uma grande facilidade — quando fui para Director do Centro de Arte Moderna ainda podÃamos fazer exposições com grandes artistas internacionais, convidá-los e isso foi-se rarefazendo. Agora, estamos a retomar. Mas houve um momento de grande contenção orçamental. Tentámos articular-nos, porque isto é uma casa grande, não é uma casa que possa dizer “o Centro de Arte Modernaâ€. Se for ver as prioridades da Fundação Gulbenkian, é uma casa que tem zonas de actuação muito espraiadas e que, portanto, tem de acorrer a todas. Isto é uma visão global. Eu não terei essa visão mas essa é a minha questão.
P: Acha que a arte contemporânea é hoje mais valorizada?
R: Acho que é muito valorizada. Se compararmos as questões todas a que a arte contemporânea hoje pode dar origem são impensáveis há 20 anos. Há duas décadas quem é que se interessaria pela questão da Colecção Berardo, independentemente da justeza ou da injusteza da solução? Era uma questão que não faria parte do domÃnio público e, de facto, hoje em dia, as pessoas vivem essas questões.
P: Alguns crÃticos dizem que a arte contemporânea é cada vez mais valorizada na sociedade mas que, por outro lado, se assiste a uma “inflação intelectualâ€. Qual a sua opinião?
R: Sinto que Portugal é um paÃs muito, muito, pequeno. O debate acerca do que se faz fica muito circunscrito, porque há muito poucos sÃtios. Em Portugal, são mÃnimos os orgãos de imprensa que se dediquem à arte, as pessoas que escrevem ocupam posições um pouco tirânicas e, portanto, essa parte tinha de ser muito agitada. Mas é necessário que o público cresça imenso para que haja um maior número de jornais e de revistas, de sÃtios que falem nas coisas.
P: O que é que é necessário para que isso possa acontecer?
R: Acho que é necessário o trabalho que aqui se faz no Centro de Arte Moderna e em todos os outros museus de Portugal. Porque, de repente, percebemos que (e isso é extremamente importante) a questão não é ficarmos satisfeitos por estar aqui, mas tentar intensificar as trocas com o exterior. Todo esse trabalho, à la longue, irá modificar as coisas. Porque o que referia, acerca do debate que se alarga, ser aqui ou ser em Londres não é uma questão igual. Nós somos um paÃs pobre, temos pouca coisa.
P: Se olharmos para o sistema artÃstico dos últimos 15 anos, o que salientaria dos aspectos mais positivos?
R: Saliento a continuidade da produção artÃstica portuguesa. É um facto: temos gerações sucessivas de artistas que são interessantes. Confrontados internacionalmente, não são um conjunto de pessoas de segunda categoria, são de primeira categoria. Isso é engraçado, porque não é igual em todos os campos. Por outro lado, mudou muita coisa. Por exemplo, o mercado mudou substancialmente porque aumentou muito o número de coleccionadores; as galerias também aumentaram mas isso reflecte esse aumento de coleccionadores: quanto maior número de coleccionadores houver, maior será o número de galerias, quanto mais galerias houver, maior será a capacidade de persuadir pessoas a fazer colecções privadas de arte contemporânea. O papel dos galeristas também é naturalmente importante.
O facto de ter surgido um conjunto de nomes de coleccionadores, no nosso mundo português, constitui um modelo para pessoas que vêm a seguir e que se começaram a interessar hoje em dia. Encontro pessoas que vêm da minha geração e cujos filhos começam a ter colecções. Há 30 anos, isso não existia em Portugal.
P: Isso também vem colocar problemas orçamentais aos museus porque os valores também se modificam. É assim?
R: Os museus lá fora começaram a comprar obras de artistas mais jovens por causa disso. Como os coleccionadores eram muitos, os preços subiam e eles preferiam comprar peças aos artistas enquanto eram jovens, do que mais tarde, quando os preços já estavam mais elevados. Mas também não estamos perante uma situação tão crÃtica quanto essa, nem o número de coleccionadores, infelizmente, é assim tão grande quanto isso. De qualquer modo, é muito diferente.
P: Qual a função da arte no mundo de hoje?
R: Diria que é vital em qualquer mundo, não só no de hoje. “Para que é que serve?†é mais difÃcil de responder. Penso que corresponde a uma necessidade. É uma necessidade qualquer que acompanha o Homem tal como nós o conhecemos. Não se percebeu ainda muito bem se aquela questão dos bisontes fica mais resolvida a partir do momento em que os bisontes são pintados nas paredes. Mas onde houver homens, há uma necessidade de fuga. Isso é arte. É a primeira grande libertação, juntamente com o pensamento, do mundo imediato da necessidade. A pessoa que está a pensar o mamute ou que está a desenhar o mamute não está a caçar o mamute nem a defender-se.
P: E se pensar na actualidade?
R: É uma questão que me causa perplexidade e que coloco todos os dias a mim próprio. Penso sempre no sentido do que estou a fazer e, de facto, corresponde a uma necessidade, mas não consigo encontrar uma razão solidamente necessária. Talvez a única razão é que se não existisse, não existiria o resto. O Manuel Costa Cabral contou uma história que é extremamente interessante sobre uma marca de automóveis que tinha um modelo utilitário e tinha um outro modelo que era igual, mas de luxo, que era fantástico, com uma performance incrÃvel e muito caro, que vendia-se muito pouco. Então, a marca optou por retirá-lo do mercado e o outro faliu. Talvez a arte seja esse lado que nós não percebemos muito bem o que é, mas que ajuda o outro a funcionar. Este é um conjunto de interrogações que nós podemos relacionar com a arte. As propagandÃsticas são sempre muito complicadas. Umas ficam, outras não. Percebemos, muitos anos depois, que não foi por causa da justeza da causa que a obra ficou; foi por qualquer outra razão. Se pensarmos no Modernismo russo, nas pessoas que apoiaram o Comunismo e que tiveram fins bastante tristes, aquilo que ficou não tem a ver com a causa, tem a ver com qualquer outra coisa. Nunca nenhuma obra de arte ficou a partir do conteúdo. Isso é estranho. Mas, ao mesmo tempo, há uma relação estranha. Se for a Madrid, vê o “Guernicaâ€, vê “A execução do Imperador Maximiliano†de Manet e vê os “O três de Maio de 1808 em Madrid: os fuzilamentos na montanha do PrÃncipe Pio†de Goya e diz: “Aqui está um todo.†Mas, se pensar no todo, as pessoas que estão a ser fuziladas no quadro do Goya são as que o Buñuel descobriu e satiriza dizendo, que antes de morrer pronunciaram: “abaixo a liberdadeâ€. O Imperador Maximiliano não é bem a mesma história, portanto, são situações muito complicadas, mas há ali uma proximidade. Nós vemos o “Guernica†de uma maneira muito diferente do que será visto daqui a 100 anos. Mas é curiosa a questão da relação da arte com o seu conteúdo mas, ao mesmo tempo, é um conteúdo humano grande que não está ligado a determinações quer de pequena factualidade ou de pequena conceptualização. É engraçado percebermos o que é humano, o que é fazer, o que é a imaginação, o que é o sofrimento. Todas as coisas que são comuns adquirem na arte uma presença explÃcita. Todas as coisas que são de pequena história tendem a desaparecer com o tempo.
Centro de Arte Moderna José de Azevedo Perdigão
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