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RÄ DI MARTINO
01/06/2023
Por Luciana Fina
FIGURAS E CONTRAFIGURAS DO CINEMA
Rä di Martino passou a infância a ver filmes e queria estudar cinema. Mais tarde, decepcionada pelas escolas que a confrontavam com o trabalho de grupo e a gramática clássica do cinema, preferiu inscrever-se no Chelsea College of Art, onde pode dedicar-se de forma autónoma ao vídeo e à fotografia, numa escola de orientação mais conceptual.
“Somos formados por aquilo que vemos, por isso é difícil criar imagens novas sem falar das imagens que já temos dentro de nós.” Trabalhando figuras e contrafiguras do cinema, Rä de Martino (Roma, 1975) traça laços de singular tensão entre o passado e o presente, entre a memória colectiva e subjectiva, a história e a experiência do cinema. O real e o imaginado fundem-se para dar vida a ambientes cinematográficos desconcertantes, subtilmente em equilíbrio entre o falso e o real, a cópia e o seu referente.
Os movimentos entre a sala cinematográfica e a sala de exposição, praticados num já longo e significativo percurso de exposições e festivais internacionais, acompanham a ecléctica prática da artista, cujo fio condutor caminha obstinadamente em torno do cinema e dos media. Interessada naquilo que a memória e o incônscio absorvem dos media e em como estes podem transformar-nos, focando-se eminentemente no questionamento da linguagem e na interrogação da memória, Rä di Martino explora o filme, a instalação, a fotografia e, nos mais recentes trabalhos, a animação digital.
A artista e cineasta italiana esteve em Lisboa em finais de Março, a convite do Da Luz Collective e do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, na 16ª Festa do Cinema Italiano, para apresentar um programa especial de projecções. Distribuído em duas sessões, começando pela primeira longa metragem da artista, Controfigura, estreada em 2017 no Festival de Cinema de Veneza, o programa deu-nos a oportunidade de conhecer um conjunto de filmes articulados em breve retrospectiva, começando por La Camera (2006), a peça inaugural, até ao mais recente Moonbird (2022), um projecto concebido em formato de performance audiovisual e exibido em formato fílmico. Foi também ocasião para um encontro público e uma conversa com a artista. Contou-nos a ideia e a realização formal de algumas das peças que pontuam a sua obra.
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LF: O teu primeiro filme, La Camera, aparenta anunciar os jogos de figuras e contrafiguras do cinema que se tornarão o fio condutor de todo o teu trabalho. Neste filme, realizado em película 16mm a preto e branco, vemos dois actores no topo de uma colina, enquadrados numa rudimentar estrutura de madeira que desenha a perspectiva de uma sala, a debitar alternadamente textos de cariz pessoal sobre a experiência da televisão e dos seus conteúdos. O andamento das suas falas é particular, a mulher e o homem têm headphones nos ouvidos e um leitor áudio na mesinha que os separa. Aparentam transportar a expressão de um texto que, provavelmente, não lhes pertence enquanto sujeitos.
RdM: La Camera nasceu de um convite para explorar os arquivos do Istituto Luce, em Cinecittà. Este arquivo contém a maior parte dos cinejornais realizados de 1930 a 1970. Utilizei o áudio de alguns destes noticiários, em particular os que relatam o advento da televisão como um acessório doméstico. Alternam-se com entrevistas a pessoas que contam memórias pessoais e íntimas da televisão. Os actores ouvem os registos áudio e fazem um re-enacting verbatim das vozes que ouvem. Não queria actores com as suas falas sempre perfeitas, utilizei a técnica da gravação em headphones para guardar uma imperfeição que é, no fundo, mais próxima da fala. Interessa-me aquilo que a memória e o incônscio absorvem dos media e como estes podem transformar-nos. Estou interessada na forma como os media nos influenciam, como os filmes e a televisão que vimos entram a fazer parte da nossa memória e das nossas formas de performar a vida.
A razão principal pela qual me encontro frequentemente a trabalhar sobre material de arquivo é uma tendência a estudar e recriar imagens do passado para tentar recolocá- las em movimento ou confrontá-las com o presente. Comecei a reflectir sobre aquilo que consciente e inconscientemente absorvemos dos media e como somos por eles transformados desde os meus primeiríssimos projectos.
LF: Entre os teus primeiros projectos uma série fotográfica, No More Stars (2010-2011), realizada na Tunísia nos desertos de sal de Chott el-Gharsa e Chott el-Jérid onde nos anos setenta George Lucas filmou algumas das cenas de Guerras das Estrelas. A seguir realizaste o filme Copies récentes de paysages anciens / Petite histoire des plateaux abandonnés (2012), em Marrocos. Nestes trabalhos dás-nos a ver estruturas alienígenas, falsas torres de vigia, catapultas, adereços abandonados de cenários cinematográficos que se destacam na aridez do deserto. Trata-se de um exemplo acidental de Land Art ou apenas de ruínas contemporâneas, uma nova paisagem onde o Atlas passou a ser o antigo Egipto, agora já reduzido em ruínas.
RdM: Este trabalho nos desertos norte africanos é sobre algo que vimos nos filmes e começou a fazer parte do nosso imaginário, mas do qual já se encontram apenas restos. É a minha ideia de como os filmes constituem restos na nossa memória e aqui trata-se literalmente de restos, de ruínas.
Foi por acidente, navegando no Gooogle earth pela Tunísia, que encontrei as ruínas de Star Wars, reais e reconstruídas. Numa imagem havia uma escrita dos turistas que dizia: “There is no more stars”. A frase inspirou mais tarde o título do meu trabalho. Comecei a pesquisar para descobrir mais sobre estes cenários abandonados no deserto e viajei para os visitar. São extraordinários porque se encontram no meio do nada, são ruínas, falsas ruínas, mas também ruínas de algo que vimos, que já faz parte da nossa memória. Um imaginário tão grandioso construído em materiais baratos, que com o ar seco do deserto ficaram em ruínas. Hollywood levou tudo e depois foram reconstruídos, parecem agora novos.
A partir de ali nasceu também o projecto do filme, comecei à procura de actores, decidi filmar em Marrocos, onde funcionou durante muitos anos uma grande companhia de produção cinematográfica e os Estúdios Atlas, em Ouarzazate. A paisagem do deserto é magnífica e pode parecer muitos sítios diferentes, assim para os filmes passou a ser o Afeganistão, Roma antiga, o antigo Egipto, a Grécia antiga, o Tibete. As grandes produções constroem, filmam e deixam tudo ali abandonado. Actualmente, é uma espécie de estúdio cinematográfico. Asterix, Obelix, uma falsa Meca...
Para Copies récentes de paysages anciens / Petite histoire des plateaux abandonnés (2012) filmei numa estação de gasolina que foi cenário de um filme de terror. A paisagem era suposto ser o Arizona. Duas crianças reencenam algumas falas de filmes que foram realizados no local, o filme de terror americano e Lawrence da Arábia... As falas tornam-se abstractas. À volta, as paisagens naturais e não contaminadas estão fora do tempo, acrescentando aos cenários, com a sua beleza quase irreal, um elemento de ficção.
Red Shoes, Ra Di Martino (2017). Still do filme / Cortesia da artista.
LF: Com Red Shoes, curta-metragem em 16mm (2017) e, mais recentemente, com a tua primeira longa-metragem Contrafigura (2017), desconstróis também as formas e os géneros cinematográficos. Em Red Shoes confundes o espectador, a sensação é de estarmos a rever uma vaga recordação, um excerto de um filme que talvez possamos já ter visto, um found footage. Depois, ao longo dos repetidos travellings começamos a sentir a estranheza no movimento da queda de água que vemos ao fundo e nos vagarosos movimentos dos corpos. O natural e o artificial, a memória e a sua variabilidade entram em campo sem desvendar o mistério, proporcionando ao espectador uma experiência perceptiva que reafirma toda a ambiguidade das imagens. Com Controfigura, a tua primeira longa-metragem voltas a complicar o jogo...
RdM: O filme Red Shoes é um fake found footage. A cena do beijo dos dois jovens que vemos repetidamente é completamente falsa, procurámos usar a falsidade de todos os efeitos, a noite americana na fotografia, o reverse da imagem, o som feito com papel. É um loop de diferentes takes, apresento-o habitualmente em instalação, num ecrã de grande dimensão.
Controfigura é uma longa metragem, um falso documentário e um falso remake de outro filme de 1968, The Swimmer, baseado no conto de John Cheever (1964). Ambientei o remake em Marraquexe, foi depois do trabalho sobre os cenários abandonados, pois durante alguns anos continuei a viajar e filmar por Marrocos. O filme é a história de um homem que atravessa uma crise de meia idade, não sabemos se quer voltar para casa, nadando de piscina em piscina, através das casas dos seus amigos. A história é incrível, o filme com Burt Lancaster é bizarro e o meu remake é também bastante singular. O meu filme articula a história, falsamente real, da equipa que viaja à procura dos actores e três diversas versões, remakes do filme original. Acabei por realizar também um novo falso trailer do filme.
O filme original é um objecto muito especial, Burt Lancaster tenta representar para um filme muito hollywoodiano, mas numa história tão singular que ele próprio parece estar fora do lugar, numa performance igualmente singular e muito interessante para mim. A parte que aparenta ser documental é mais performativa, eu e a equipa devíamos realmente preparar o filme, encontrar as locations, ao mesmo tempo filmar o protagonista. Tínhamos apenas duas semanas, “está bem”, decidi, “vamos, aconteça o que acontecer”, trata-se no fundo mais de uma performance que de um documentário.
Depois desta primeira longa-metragem, não sei ainda bem como me sinto. Estou a escrever agora um novo argumento, mas a minha tendência é voltar sempre a uma matriz documental. Preciso de qualquer forma de partir da realidade, sempre que começo a escrever sinto a necessidade de voltar ao documentário, à relação com o real.
LF: Tens agora trabalhado frequentemente com a animação digital, não abdicando do teu fio condutor, a matéria e a memória cinematográfica.
RdM: Os meus últimos cinco trabalhos são todos em animação digital. Na selecção deste programa em Lisboa viram apenas um, Poor, Poor Jerry (2017). A animação dá-me uma grande liberdade, porque posso criar tudo o que imagino, é como desenhar, posso sair da realidade. Este é o meu filme mais empático, no trabalho conceptual sinto-me mais destacada, com Jerry estamos mais junto dele e é engraçado porque ele é uma figura completamente falsa. Jerry, o rato de Tom & Jerry, move-se numa paisagem real, no deserto de Lanzarote, que é todo negro, vulcânico. Ele está nesse outro mundo ou num pós mundo. Envelhecido e gigante, cansado e cheio de rugas, deambula como uma espécie de detrito e transporta todos os diálogos de amor dos media do mundo. Um patchwork de breves citações, em que uma frase entra e se transforma noutra, todos os “I love you”. São trechos autênticos, acelerados, que criam um monólogo único. De vez em quando Jerry é também obrigado a cantar.
A animação liberta-me e dá-me enormes possibilidades, só com a animação posso fazer estes projectos. Neste filme jogo com a composição entre a imagem real, a paisagem onde ele se movimenta, e a figura de Jerry, que é inteiramente criado em animação digital. Enquanto aos actores com quem trabalho peço sempre para se afastarem e libertarem-se do jogo da representação, com Jerry fiz exactamente o contrário, forcei a expressão da personagem.
No ano passado fiz mais um trabalho em animação digital, sobre Carmelo Bene (1937-2002), a instalação com o título Là dove muore, canta (2022). O Museu Castro Mediano de Lecce, que tinha acabado de adquirir o espólio de Carmelo Bene, convidou-me a trabalhar sobre o enorme arquivo, composto por vídeo, áudio, fotografias, manuscritos e cerca de seis mil livros da sua biblioteca pessoal. Comecei a pesquisa entre caixas e caixas de material, encontrei dois cadernos de notas com textos e partes do argumento de um espectáculo que Carmelo Bene queria realizar em 1981 e que não chegou a acontecer. Era sobre Drácula, a que ele chamava muito simplesmente de “Il vampiro”. Em animação digital criei uma contrafigura de Carmelo Bene que, lendo estes cadernos de notas, volta a dar vida ao arquivo. Só pela animação digital é que o podia fazer. A voz é de um excelente actor que se aproxima da inesquecível voz de Carmelo Bene de uma forma impressionante. É uma instalação em cinco canais, uma das figuras fala, as outras movimentam-se, alternadamente.
Mudando as formas, trabalho em modalidades diferentes. Os filmes mais breves são sempre pequenas performances, a ideia de partida é já estruturada, depois passo à realização. Quando trabalho com um arquivo relaciono-me com uma complexidade preexistente, é um processo completamente diferente. Já trabalhei com cerca de sete arquivos, são convites em que o trabalho é menos espontâneo e o processo mais complexo, parte do estudo dos materiais para chegar à ideia.
Sobre os arquivos de Carmelo Bene criei também uma série fotográfica e vamos lançar esta Primavera o livro de artista, que foi publicado pelas edições Humboldt.
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Rä di Martino vive e trabalha em Roma. Estudou no Chelsea College of Art e na Slade School of Art de Londres, viveu posteriormente em Nova Iorque, de 2005 a 2010, e mais tarde em Turim. Expôs em instituições como a Tate Modern em Londres, MoMA PS1 em Nova Iorque, Palazzo Grassi em Veneza, GAM e Fondazione Sandretto Re Rebaudengo em Turim, MACRO e MAXXI em Roma, Museion em Bolzano, MCA em Chicago, Hangar Bicocca e PAC em Milão.
Participou em festivais internacionais de cinema como o Festival del film Locarno, VIPER Basel, Transmediale.04, New York Underground Film Festival, Kasseler Dokfest, Torino Film Festival e o Festival de Veneza, tendo ganho o Prémio SIAE, o Prémio Gillo Pontecorvo e uma menção especial no Nastri d'Argento em 2014 com o filme The Show MAS Go On (2014). A sua primeira longa-metragem Controfigura (2017) estreou no último Festival de Cinema de Veneza. Em 2018, ganhou o apoio do Italian Council para a produção da obra Afterall.
Luciana Fina, cineasta e artista italiana, trabalha em Lisboa desde 1991. Após a formação em Literaturas Românicas e uma longa colaboração com a Cinemateca Portuguesa como programadora, estreia-se na realização em 1998, integrando a geração que deu nova vida ao documentário em Portugal. Entre 2002 e 2003, com a instalação CCM na Fundação Gulbenkian e o tríptico CHANTportraits no Museu do Chiado, dá início ao seu percurso em espaços expositivos. O extenso corpo de trabalho, filmes, instalações fílmicas e site-specific, tem sido apresentado em festivais de cinema e exposições internacionais, estando representado na Colecção Moderna do Museu Calouste Gulbenkian, na Colecção Nouveaux Medias do Centre Georges Pompidou e na Colecção de Arte Contemporânea do Estado. Entre as obras mais recentes “In Medias Res” (2014), Prémio Melhor Filme do Arquiteturas Film Festival e Menção Honrosa do Temps d’Images Film on Art Award; “Terceiro Andar” (2016) Museu Gulbenkian, Doclisboa, Torino Film Festival; “Andrómeda”, exposição Carpintarias de São Lázaro/Festival Temps d’Images 2021. É professora convidada no AR.CO. Membro colaborador do CIEBA, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa.