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ASCÂNIO MMM
21/03/2025
Ascânio MMM: “A escultura é um modo de fazer poesia com o objeto”
“Compreender a dimensão dialética da produção de Ascânio é de natureza similar à responsabilidade de todo “psicólogo do espírito científico” – uma acepção de Gaston Bachelard –, que deve viver o estranho desdobramento da personalidade geométrica que se efetuou ao longo do último século e meio da cultura matemática. No entanto, diferentemente do matemático, Ascânio MMM não reprime a intuição (nem a sublimação da experiência). Seu desafio bachelardiano foi sempre realizar a conversão da realidade racional em poética experimental.”
Paulo Herkenhoff, in “Ascânio MMM: Poética da Razão” (2012)
Pelo percurso e formação em Jornalismo, resisto à ideia de apropriação do discurso na primeira pessoa em cada texto de natureza informativa que escrevo, mas a descoberta da obra de Ascânio MMM, na exposição “Geometria Inquieta”, que esteve patente até 30 de março de 2025, na Casa Roberto Marinho, impele-me à exceção. Foi um confronto com a genialidade e a singularidade da obra de um artista que figura na história da arte brasileira como um dos protagonistas na trajetória da abstração geométrica na América Latina, mas que desconhecia.
No último dia no Rio de Janeiro e depois de muitas visitas a museus, deparei-me com esculturas, como refere o título da mostra, “inquietas”, de pormenor, com movimento; construídas com rigor matemático e paciência de génio, que ganham forma em diferentes matérias, desde pequenas ripas de madeira tornadas gigantes pelo seu criador a peças de alumínio de diferentes proporções, gerando distintos níveis de envolvimento entre a obra e o observador. À entrada da exposição, uma foto de infância e uma frase: “Eu vivia em um sobrado estreito cercado de retratos de antepassados.”
O nome do autor é invulgar, como a sua obra, mas estas palavras trouxeram-me à presença, em frações de segundos, a portugalidade. O artista que figura na História como um dos principais nomes do Construtivismo brasileiro, principalmente na geração MAM, ligada ao Museu de Arte Moderna, nasceu em Portugal. Foi um mergulho na pesquisa, na descoberta e na mea-culpa de não conhecer.
Ascânio MMM nasceu a 16 de setembro de 1941, em Fão, no concelho de Esposende, uma vila que se ergue sobre o mar. Quando tinha 17 anos, os pais deram um pontapé no Portugal salazarento e pobre. Como tantos outros emigrantes, abriram os braços ao mundo e arriscaram. Chegaram ao Brasil com os cinco filhos. Ascânio Maria Martins Monteiro tinha o ensino primário e experiência numa loja de ferragens, onde trabalhava desde os 13 anos, mas levava consigo um sonho de gigante. A infância e a juventude marcam todo o seu percurso artístico. Mesmo em algumas estruturas pesadas de arte pública que tem plantado por todo o Rio de Janeiro, São Paulo, entre tantas outras cidades do Brasil e da América Latina, existe uma leveza poética, ondulante, que remete para o mar de Ofir, em Fão, e para a luz que incide sobre a vila.
Ascânio MMM tem hoje 83 anos e continua a trabalhar diariamente no seu atelier. Em Portugal, apenas existem três esculturas da sua autoria: duas obras públicas em Fão, uma das quais doada pelo artista à vila de Fão, e a outra na Culturgest, adquirida originalmente por Emílio Rui Vilar, quando esteve à frente da Caixa Geral de Depósitos. Vem em Lisboa de passagem e expôs três vezes na Galeria 111, a última das quais foi no tempo da pandemia Covid-19 e passou praticamente despercebida. Faz sempre questão de visitar a vila onde, em pequeno, encontrou a casa luminosa que o levou a desejar estudar Arquitetura. A sua obra é, precisamente, essa fusão: escultura que tem arquitetura. Não resisti a entrevistá-lo e a partilhar a descoberta.
Por Fátima Lopes Cardoso
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FLC: Como é que recorda a infância e juventude, antes de se mudar para o Brasil?
AMMM: Vim para o Brasil em 1959, aos 17 anos, em pleno salazarismo. Nasci em Fão, no litoral, próximo da praia, a 14 km ao norte da Póvoa do Varzim. Tive uma infância maravilhosa. Existia a praia, o rio, as dunas... Quando era criança, principalmente nas férias, tudo isso era o meu quintal. Depois do ensino primário, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, havia poucos empregos em Portugal e a minha família decidiu emigrar para o Rio de Janeiro. Aos 13 anos, tive de trabalhar numa loja de ferragens, que vendia porcas, parafusos, arames, ferramentas e outros materiais. Curiosamente, este emprego foi muito importante até hoje, uma vez que uso parafusos, porcas, porque trabalho muito com perfis de alumínio. Não me iniciei em tela, mas em objeto. Por isso, foi muito relevante a experiência na loja de ferragens. Vim para o Rio, mas com o sonho de ser arquiteto desde que, em Fão, entrei numa casa de arquitetura moderna projetada por Fernando Távora. Essas casas do Pinhal eram as residências de férias de pessoas que moravam no Porto ou em Braga. Um dia, estava a passar pelo Pinhal e uma pessoa que tomava conta da casa chamou-me. Entrei e fiquei deslumbrado. Era uma sala espaçosa, com paredes brancas, móveis modernos e localizada no centro do terreno, em meio a um pinhal, sem muros. Como escreveu Paulo Herkenhoff, em “Ascânio MMM: Poética da Razão”, um livro de 400 páginas sobre a minha obra, “tive um insight do espaço moderno”.
A minha família morava no centro de Fão. No final dos anos 50, na altura, havia a cultura de colocar os retratos de cada pessoa que morria na sala. Quando criança, essas imagens provocavam-me um certo medo. Quando entrei na sala da casa desenhada pelo arquiteto Fernando Távora, fiquei fascinado.
Todas as vezes que fui e vou à Europa, que não foram poucas, passo em Fão e dou voltas pelo Pinhal. Recordo-me da paz que havia, sem trânsito, televisão... os rádios eram poucos. Sobretudo, não havia drogas. Em maio, eu e a minha mulher vamos fazer uma viagem a Madrid e, obrigatoriamente, vamos a Fão.
FLC: É contemporâneo de Souto Moura, Siza Vieira, embora com as respetivas diferenças de idade. Já pensou como poderia ter sido a sua carreira se, em vez de estudar na Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro, tivesse, por exemplo, frequentado a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto? Acredita que teria sido muito diferente?
AMMM: Nem penso nessa hipótese. Eu era de Fão. Só tinha ido algumas vezes ao Porto. A Lisboa, apenas quando embarquei para o Brasil. Cheguei ao Rio com o ensino primário, mas com o sonho de conseguir continuar a estudar. Fiz o Supletivo, a prova para o ensino médio para pessoas acima dos 18 anos e que não tiveram a oportunidade de estudar – atual Encceja. Entrosei-me muito bem no Rio, me permitiu realizar o sonho que trazia de Fão, de ser arquiteto. Amo esta cidade. Portanto, nunca coloquei sequer a hipótese de estudar numa outra cidade, seja São Paulo ou no Porto.
FLC: Como e em que momento da vida é que a Arquitetura se cruzou com a escultura?
AMMM: Desde a minha visita à casa do Pinhal, fui tomado pelo desejo de ser arquiteto. Já aqui no Rio, quando estava a fazer o Supletivo, uma colega perguntou-me o queria seguir. Respondi-lhe que pretendia estudar Arquitetura, mas disse-lhe que nunca tinha desenhado na vida. Ela sugeriu que entrasse na Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA), uma vez que, por questões processuais, já estava apto a entrar. Nos intervalos das aulas, eu visitava, constantemente, as salas do Museu de Belas Artes que sediava a ENBA. Descobri a escultura, os trabalhos dos artistas premiados do Salão Nacional de Arte Moderna, realizado anualmente desde 1951. Dois anos depois, realizei um curso para ingressar na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e assim aconteceu. Sempre a trabalhar porque, afinal, tinha de pagar as minhas contas. Ao mesmo tempo que frequentava o curso, também já realizava as minhas peças - algumas delas estiveram expostas em “Geometria Inquieta”. Participava em todos os salões de arte. Ao entrar para a Faculdade de Arquitetura, já pensava em Escultura.
FLC: Referiu que se entrosou muito com o Rio, desde que chegou. Qual é a magia do Rio de Janeiro, comparativamente com outras cidades.
AMMM: Além das belezas naturais muito conhecidas, a cidade é muito especial, sobretudo, na vida cultural. Além de Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Morais, cariocas de nascimento, muitos compositores vieram de outros estados para o Rio, como Caetano, Gil, Milton Nascimento, entre outros. A bossa nova surgiu e se desenvolveu no Rio. Aqui foi criado o samba. O teatro, com Augusto Boal, Nelson Rodrigues, as artes plásticas, com Helio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, Franz Weissmann, Cildo Meirelles, o cinema novo com Glauber Rocha, todas as formas de expressão das artes encontravam aqui um “caldo cultural” fascinante que atraía mais artistas que se encontravam nos ateliers, eventos e que tinham no MAM um espaço privilegiado.
Ao chegar ao Rio em 1959, fiquei encantado com esse mundo que fui procurando conhecer. Logo depois, na época da ditadura militar, que foram “anos de chumbo” e de medo, eu já estava na faculdade e participava do diretório académico, que desenvolvia atividades artísticas e culturais, mas também atuação política de resistência. Apesar da repressão, uma intensa atividade cultural se mantinha.
FLC: O início do seu percurso como artista coincide com a ditadura brasileira e com a perda de liberdades essenciais à criação. Como é que as artes criativas eram condicionadas?
AMMM: Por meio da censura que atingia muito a música. Entre outros, gosto muito de Chico Buarque, que escreveu letras de músicas com críticas ao regime, às vezes de forma metafórica. Relacionado a este facto, é curioso que somente em 2023 Chico Buarque recebeu o Prémio Camões a ele concedido em 2019, em Lisboa. No discurso de agradecimento, referiu-se ao facto de ser o Presidente Lula da Silva a estar ali e não Bolsonaro, que se tinha recusado a entregar-lhe o prémio.
Nas artes-plásticas, artistas e suas obras foram censurados. Recordo-me de um salão de arte moderna no Rio, uma pré-bienal de Paris, assim como o museu MAM, que foram fechados pelos órgãos de repressão. Intelectuais como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, foram cassados e obrigados a sair do Brasil. Muitos professores universitários foram aposentados e também obrigados a deixar o país.
FLC: O seu nome e obra são referências da arte brasileira, em particular, no construtivismo. Qual considera ser o maior contributo de Ascânio MMM para a transformação do contexto e tendências da arte, no Brasil?
AMMM: Creio que a exposição “Geometria Inquieta”, cujo título foi atribuído por seu curador Lauro Cavalcanti, expressa bem a contribuição de minha trajetória ao longo de 60 anos de atividades. Articular escultura, arquitetura e matemática foi uma diretriz que, acredito, possibilitou produzir minha obra com características próprias no contexto do projeto de arte neoconcreta brasileiro.
FLC: Curiosamente, o passado deu-lhe conhecimentos manuais de como trabalhar com certos materiais que outros artistas não conseguem usar. Acabou por ser uma vantagem?
AMMM: Comecei a trabalhar nessas peças muito cedo. Quando ia às carpintarias, apanhava sempre pequenos pedaços e peças de madeira com diferentes formas para construir as minhas obras, algumas das quais estão na exposição “Geometria Inquieta”. Nos intervalos das aulas de Arquitetura, aproveitava para ver os livros que se encontravam no livreiro da faculdade - na altura, aqui os livros eram importados e muito caros - e encontrei um, especificamente, que me interessou muito. Um ano depois, quando estava a realizar o meu estágio na Arquitetura, adquiri, finalmente, o livro “Uma Década de Arquitectura y Urbanismo”, Candilis, Josic, Woods. A partir da observação das maquetes dos planos urbanísticos publicados nesta obra, desenvolvi os meus relevos e, em 1966, participei na minha primeira exposição uma coletiva: o salão de Abril, no MAM do Rio de Janeiro. Nessa época comecei, também, a criar as primeiras esculturas em ripas de madeira. Para isso, foi muito importante a experiência de conviver com meu tio-avô José Azevedo Linhares, carpinteiro naval, que era proprietário de um estaleiro para a construção de navios, na época ainda feitos de madeira, em Fão.
FLC: O seu atelier é um lugar mágico de transformação das ideias, de materiais em bruto como a madeira e o alumínio em objetos reais? Como é que descreve o seu processo criativo?
AMMM: Na minha obra há uma questão importante: todos os trabalhos são executados no meu atelier, o percurso PROJETO/OBJETO é realizado no meu atelier. Eu projeto e construo a obra, determino o perfil de alumínio, que chega ao atelier em barras de seis metros. A manipulação do material, a descoberta de novas potencialidades do material – tanto na madeira como no alumínio - no cortar, furar, etc. tem sido muito importante na pesquisa e descoberta de novos caminhos.
Decidi ser escultor, quando ingressei na Escola Nacional de Belas-Artes, mas a minha escultura tem muita influência da arquitetura. As peças expostas na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, que visitou, principalmente, as dos jardins, têm forte influência da arquitetura. Até aos anos 80, trabalhei na madeira pintando-a de branco, pela questão da luz e sombra. Depois, passei a trabalhar a madeira pura e, em 1983, me chamaram para criar uma escultura para um espaço público. Não podia ser de madeira, mas de ferro, aço ou alumínio. No ferro e no aço tem de se usar solda, enquanto para fixar o alumínio, utilizo parafusos e porcas. A partir do alumínio que entrava em barras de seis metros no meu atelier, eu cortava e furava. Esse contacto com este material foi fundamental. Atualmente, só crio peças com alumínio, especialmente, as esculturas. O alumínio é também um material muito usado na arquitetura. A partir da escultura de 1983, passei a usar só o alumínio, um material que me abriu muitas opções. Hoje, 2025, continuo a fazer peças novas. Na exposição “Geometria Inquieta” apresento três peças recentes, que realizei em 2024. Vou todos os dias ao meu atelier, onde trabalho com quatro jovens que foram treinados por mim para me ajudar a montar os meus trabalhos. Durante os primeiros dez anos, fui sempre eu que construía inteiramente as minhas peças. Uma das que você viu à entrada foi concebida para uma exposição no MAM-Museu de Arte Moderna do Rio. Geralmente, faço os estudos, planeio, faço maquetes, pinto e, a partir disso, vou ampliando a escala. Em Lisboa, tenho peças na coleção Manuel de Brito e no hall de entrada na Culturgest.
A arte em diálogo
Geometria Inquieta, Casa Roberto Marinho, Rio de Janeiro. © Jaime Acioli
FLC: Na exposição “Geometria Inquieta”, existia uma parte completamente interativa, como se cada peça ou escultura se transformasse num jogo. Sente necessidade de diálogo entre a sua obra e o público? Ou é entre o artista e o público?
AMMM: Quando visitava exposições em museus, reparava sempre na indicação: “não tocar nas obras”. Era algo que me incomodava muito, a imposição de manter as pessoas muito distantes do objeto artístico. Então, em 1969, estava a montar a minha série “Quadrados” quando criei as “Caixas”, nas quais os quadrados situados na parte superior da caixa em forma de cubo podem ser movimentados pelos visitantes, formando diferentes figuras geométricas. Então, na montagem da exposição “Geometria Inquieta”, dei a ideia de criar uma sala com peças que as pessoas pudessem tocar e manipular. Sempre gostei da ideia de as pessoas tocarem nos trabalhos, criando uma empatia com a obra. Na mesma sala interativa, também estão as Caixas 1 e 2 (Quadrados) e 3 e 4 (Triângulos), com tamanhos crescentes e móveis, que podem ser manipulados.
FLC: O seu trabalho em alumínio também é muito gráfico, sobretudo pela questão da cor e como combina esse elemento...
AMMM: As cores que existem são industriais. Por isso, tenho de usar as cores disponíveis. O vermelho só tem um tom; o azul existe o claro, o médio; o amarelo só existe num tom. Tenho de me submeter a esse condicionante. Não dá para cortar as peças e pintar cada uma no atelier, pois, no alumínio, há um problema de aderência. Então o alumínio, comprado no formato de tubos quadrados de 2”x 2” e 6 metros de comprimento, conforme vendido no mercado da construção civil, tem de ser pintado em estufa, a cerca de 200º graus. Após a pintura, os tubos são trazidos de volta ao atelier onde são cortados com 2 cm e que são utilizados na criação das esculturas. Essa lógica construtiva confere ao trabalho um certo aspeto gráfico que, também, já foi objeto de atenção de Felipe Scovino, que os analisou como GRIDs, no Catálogo da Exposição de Ascânio MMM (2022), Museu Niemeyer, Curitiba (PR).
FLC: Tem uma vasta obra de arte pública com esculturas de elevadas dimensões espalhadas pelo Brasil. Considera que o artista tem a obrigação de tornar a arte visível e de a democratizar, pelo menos, parece ser esse o princípio do Concretismo?
AMMM: Ao contrário da exposição, em que a pessoa tem de entrar no museu para observar as obras de arte, no espaço público a escultura vai ao encontro das pessoas. No museu, as pessoas é que vão ao encontro da escultura. Sempre gostei muito de criar esculturas para o espaço público. Tenho esculturas aqui no Rio, em São Paulo.... É uma forma de democratizar o acesso à obra de arte e de as afetar no seu quotidiano despertando diferentes formas de ver a cidade, o mundo.
Tenho uma escultura de 3,50m x 4,30m x 6,00m na esplanada do Edifício Argentina, localizado na Praia de Botafogo, Rio de Janeiro. Foi realizada a convite dos arquitetos autores do projeto do edifício. Inicialmente, eles queriam fazer uma peça vertical. Disse-lhes que tinha de ser uma peça mais horizontal, esparramando-se no chão. Essa é a peça mais famosa que tenho no espaço público. Ali, é possível ver as pessoas a passar e a observar, crianças a brincarem à volta e por dentro dela, sentir que a peça está sempre em contacto com o público.
FLC: Com quais das suas obras mais se identifica e de que mais se orgulha de ter criado?
AMMM: Exatamente, a peça do Edifício Argentina, na Praia de Botafogo. E as “Caixas”, em que a pessoa pode manipular os quadrados ou triângulos, encontrar figuras geométricas.
FLC: Existe uma intenção poética por trás de cada peça?
AMMM: Para mim, a escultura é um modo de fazer poesia com o objeto.
A importância do detalhe
Geometria Inquieta, Casa Roberto Marinho, Rio de Janeiro. © Jaime Acioli
FLC: Trabalha com centenas de ripas de madeira e multiplica barras de alumínio de seis metros em pequenos módulos que irão dar forma a muitas esculturas. Que importância tem o detalhe na sua obra?
AMMM: Posso considerar-me uma pessoa muito rigorosa com os detalhes, principalmente no que se refere aos acabamentos dos trabalhos. As ripas de madeira que utilizo para criar as peças brancas são cortadas, lixadas, emassadas e pintadas a mão em várias camadas até atingirem o branco esperado. As de alumínio, pintadas em forno industrial, precisam de ser cortadas, limadas, furadas e aparafusadas no ponto certo das laterais de modo que atinjam o resultado esperado. Os detalhes do acabamento são muito importantes e sou muito exigente em relação a isso.
FLC: A sua personalidade, a maneira de ser e de ver o mundo parece estar sempre refletida no seu trabalho.
AMMM: Sim. Sou uma pessoa muito rigorosa e exigente com tudo que faço. O facto de ser arquiteto também se reflete, como já mencionei antes, no meu trabalho. Se tivesse apenas formação em Artes-Plásticas, a minha obra seria diferente.
FLC: Que impressão tem da escultura portuguesa? Tem alguns nomes como referências?
AMMM: Confesso que não acompanho muito a escultura portuguesa. Gosto de José Pedro Croft; aprecio muito o trabalho de Leonor Antunes, visitei uma exposição da artista, no Perez Museum em Miami, quando fui à Art Basel. Acho que ela vive em Berlim. Conheço os trabalhos de Ângela Ferreira, Joana Vasconcelos e Pedro Cabrita Reis, entre outros.
FLC: E acompanha a arquitetura portuguesa?
AMMM: Tenho boa impressão da arquitetura portuguesa. Álvaro Siza que é um destaque, Fernando Távora, que projetou as casas que me fascinaram no Pinhal. Já em Lisboa, gosto do prédio do MAAT, à beira do Tejo, do prédio da Fundação Calouste Gulbenkian e dos grandes espaços do Centro Cultural de Belém. Tenho ido a Lisboa mais como turista, para visitar museus, passear um pouco, apreciar a comida portuguesa em restaurantes.
FLC: Olhando para trás, o que teria feito de diferente?
AMMM: Todo o caminho que trilhei deu certo. Então, não faria nada diferente. Para um rapaz que saiu de Fão com o ensino primário e chega onde cheguei, não tenho nada para mudar, inclusive a minha passagem na loja de ferragens. Não mudaria nada.
FLC: Se tivesse ficado em Portugal, acha que conseguiria ter chegado a ser Ascânio MMM?
AMMM: Não. Ia continuar a ser o empregado da loja de ferragens. Quando, no primeiro dia, apanhei a camioneta para Esposende para ir trabalhar na loja de ferragens e ferramentas, a minha mãe levou-me à camioneta que passava em Fão e eu chorei a dizer que queria estudar. A minha mãe também chorava e dizia “não temos posses para estudares”. O meu pai era escrivão do tribunal de justiça e minha mãe era bordadeira. A minha imagem de infância era ver a minha mãe na máquina a bordar. Havia um grupo de bordadeiras em Fão e a minha mãe era uma delas. Naquela época, década de 50, com o regime salazarista em vigor, era tudo muito difícil.
FLC: Mas poderia fazer como no Brasil, trabalhar e estudar.
AMMM: Acho que não. No Brasil, há muita flexibilidade de horários. Existiam também cursos noturnos. Fão era uma vila que só tinha escola primária. Para estudar à noite, tinha de me deslocar a outro lugar. A situação seria muito mais difícil. Hoje, Fão tem uma escola profissional e outras, mas na altura não era assim. Tinha de ser aqui. Quando me perguntou antes se mudaria, digo que não. Tudo aconteceu na hora certa.
FLC: É um artista brasileiro reconhecido internacionalmente, mas em Portugal apenas apresentou exposições mais pontualmente e só tem duas esculturas em Fão, sua terra natal. Existe, de alguma forma, uma distância entre o artista Ascânio MMM e Portugal?
AMMM: Fão é o único sítio em Portugal onde existem esculturas públicas minhas, uma delas doada por mim. É uma réplica da peça que está no Edifício Argentina no Rio de Janeiro e de que gosto muito. Fui acompanhar a instalação dessa escultura e, já no avião de regresso, pensava que tinha criado uma ponte com essa escultura, entre o lugar onde nasci, Fão, e Rio de Janeiro, onde moro. Também existe uma peça na Culturgest, em Lisboa, que foi adquirida para a Caixa Geral de Depósitos, por Rui Vilar. E outra na coleção de Manuel de Brito.
FLC: Quando é que podemos esperar por uma grande exposição de Ascânio MMM, em Portugal?
AMMM: Depende de um convite de uma instituição portuguesa. Individualmente, já realizei três exposições, mas não tiveram muita projeção. Duas foram na Galeria 111, uma primeira em 1989 e outra em 1995, quando Manuel de Brito estava à frente da galeria. Em 2020, apresentei uma outra exposição, também na Galeria 111, mas já não teve o mesmo impacto que as outras. A exposição de 2020 teve o problema de ter ocorrido no auge da Covid-19. Alexandre Pomar escreveu um texto publicado no jornal Público sobre a exposição de 1989. José Pinharanda publicou uma matéria no Expresso, em 1995. O texto para o catálogo da exposição de 2020 foi escrito por Cristiana Tejo, de nacionalidade brasileira, mas que vive em Portugal há muitos anos. Mas, devido à crise da Covid19, o catálogo não foi publicado. Quem também escreveu um texto sobre essa exposição foi Carla Carbone, na revista Umbigo, em dezembro de 2020.
Geometria Inquieta, Casa Roberto Marinho, Rio de Janeiro. © Jaime Acioli
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Fátima Lopes Cardoso
Investigadora do LIACOM e professora adjunta na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (ESCS), onde coordena a licenciatura em Jornalismo. Doutorada em Ciências da Comunicação, especialidade Comunicação e Artes, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, é autora do livro “A Fotografia Documental na Imprensa Nacional: o Real e o Verosímil” (2022), adaptado da tese de doutoramento homónima (2015). Jornalista desde 1997, o interesse académico por conhecer a ontologia da imagem e, em particular, da fotografia jornalística tem levado à participação em várias conferências e colóquios em Portugal e a nível internacional sobre a temática, bem como em diversos projetos editoriais e científicos.