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PEDRO GADANHO
Pedro Gadanho (1968) é arquitecto. Tem feito um percurso diversificado pela cultura contemporânea - arquitectura, design, artes visuais -, e tem desenvolvido um conjunto de actividades que vão do projecto de arquitectura, ao comissariado de exposições, à edição e à actividade docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP). Vive entre Lisboa e o Porto, os seus projectos acontecem, cada vez mais, com ligações a outros países europeus, tal como a recente mesa redonda na Bienal de Arquitectura de Veneza 08, no passado mês de Setembro, e a série de livros que vai editar para a SUN Publishers em Amesterdão: BEYOND, Short-stories on architecture & city after the contemporary.
Por Inês Moreira
P: Desde os meados dos anos 90 tens um papel activo na cultura portuguesa, tanto no meio da arquitectura, como no meio do design. O teu percurso é diversificado e conjuga uma grande variedade de actividades e colaborações. Gostava de começar por pedir que introduzas o que consideras ter sido o teu primeiro projecto e também qual o último em que te envolveste. É possível retraçar um retrato do país neste período?
R: Bem, pode dizer-se que o meu salto para fora do meio estrito da arquitectura - ou seja, o meu primeiro projecto que implica uma transversalidade e a fuga dos formatos mais tradicionais da construção arquitectónica - se dá em 1993, com o desenho da exposição do Luís Palma no âmbito das Jornadas de Arte Contemporânea, que o João Fernandes então lançava no Porto. Pouco tempo depois publiquei, nas Confidências para o Exílio, o meu primeiro texto - sobre as correspondências entre arte e arquitectura - e, logo a seguir, dando por concluída a minha não muito agradável passagem pela prática de atelier, partia rumo ao Reino Unido para continuar a exploração dessas mesmas correspondências num mestrado interdisciplinar em arte e arquitectura. Isto foi há quinze anos. Temos um contexto muito diferente no presente? Olhando para a minha experiência pessoal diria apenas que passou a haver um maior número de pessoas que, insatisfeitas com a repetição da tradição e a experiência do conservadorismo deste país, partiu à descoberta de outras margens. Houve crescimento económico e social, certamente, haverão até maiores arenas de oportunidade, mas, a não ser muito pontualmente e em resultados de esforços perfeitamente individuais, não noto no campo cultural uma muito maior abertura à mudança do que aquela que se verificava há 15 anos. Se agora existe abertura à “novidade” e à “frescura” ela surge por via de um curioso impacto mediático - por uma necessidade de assunto por parte de uma cultura mediática generalista - e não porque as várias áreas de produção cultural sintam que precisam de renovar as suas estruturas e os seus conteúdos.
P: O que motiva a passividade? Porquê tal falta de propostas e de revisão?
R: As pessoas contentam-se demasiado depressa com um círculo restrito que se formou e estabilizou - e se reproduz - há já demasiado tempo. E isto é tão válido para a arquitectura como para a arte. Surgem novos valores, mas os verdadeiros protagonistas institucionais não mudam há mais de 10 anos - só mudam de lugar na dança das cadeiras. Assim, por entre as sucessivas crises económicas nacionais, pode afirmar-se também que é tão ou mais difícil propor e realizar um projecto independente agora do que o era há alguns anos atrás... E era suposto ter-se melhorado, não? De resto, o único risco que temo é que a realidade de certas áreas, como a da arquitectura, se torne perfeitamente entediante e asfixiante... Como tal, e como não tenho nem jeito nem paciência para quixotismos - bem como para o dispêndio de energia que significa lutar contra moinhos de vento -, viro-me de novo para outros ares. Assim, o meu último projecto é feito em Amesterdão, para uma editora holandesa, e terá um âmbito europeu. A BEYOND será um misto de livro e revista que propõe a short-story, o ensaio semi-ficcional, como categoria interessante para reposicionar a escrita sobre a arquitectura e cidade nos nossos dias. Os autores são críticos e ensaístas emergentes de toda a Europa e deseja-se que a audiência-alvo extravase o público tipo das publicações especializadas de arquitectura. E estamos bastante contentes porque conseguimos contar com o Bruce Sterling - escritor cyberpunk de ficção científica que tem escrito sobre cultura de design para a revista Wired - como primeiro escritor de ficção convidado. O primeiro número sai em Abril de 2009, com o tema Scenarios & Speculations e, nos números seguintes, começarão também a surgir contributos portugueses.
P: Algures no meio está a tua colaboração com a Experimenta Design: integraste a direcção artística e organizaste alguns dos eventos. E também as exposições Influx, para o Silo/Serralves, 2002 e a Metaflux, para a Bienal de Arquitectura de Veneza 2004, esta última um evento importante na identificação de novas gerações de criadores… foram momentos de grande optimismo e visibilidade da Arquitectura na cultura, transpirando uma ideia de frescura e novidade.
R: Sim, é verdade. Houve e há optimismo nessas propostas, tal como em tudo o que gosto de fazer. O optimismo é incontornável e necessário... apenas não se pode continuar a alimentar exclusivamente de si próprio. A certo momento, tem que se alimentar de resultados, de feedback, da percepção, de um retorno positivo. A Experimenta, por exemplo, assegurou-se a si própria e deixou um rasto de jovens criadores influenciados pelo seu impacto - como se tem visto nas recentes sessões do Pecha Kucha de Lisboa. E isso é indubitavelmente positivo. Mas formam esses jovens criadores um verdadeiro tecido criativo no campo do design ou, pelo contrário, andam apenas à procura de estratégias de sobrevivência? Por seu lado, a Metaflux teve, no campo da arquitectura, a vantagem de chamar a atenção para a importância estratégica de participar de uma forma afirmativa em eventos como a Bienal de Veneza - e este ano esta noção já se confirmou da forma mais expectável com a representação oficial portuguesa. Mas será que isto fez, de facto, com que aquelas ou outras jovens promessas tivessem mais encomenda, mais visibilidade e mais impacto no panorama da arquitectura nacional?
P: Referes a ausência de estratégia de continuidade na internacionalização, que flutua com a subjectividade do organizador…
R: Registei com curiosidade que nenhum desses arquitectos estava, três anos depois, a apresentar trabalho junto das estrelas internacionais que fizeram o programa de conferências da Trienal de Arquitectura de Lisboa. De resto, também não estavam aí nenhuma das jovens promessas de um encontro geracional que ajudei a organizar há quinze anos atrás: o encontro de Serpa. Achei isso gritante e, para mim, tal quer dizer que, apesar do que se propagandeia por aí, algo vai mal no reino de Portugal. A arquitectura portuguesa continua a alimentar-se de um capital simbólico ilusório. De facto, o “reconhecimento externo” de um certo número de protagonistas esgota-se progressivamente. Aliás, tal já está a acontecer: onde estavam os participantes convidados na Bienal de Veneza para além da representação oficial? Por outro lado, não se está a aproveitar uma herança identitária forte para criar a biodiversidade que garantiria uma sobrevivência saudável do meio a longo prazo... Mas, mais uma vez, tudo isto é muito português, o resultado de uma mentalidade muito mesquinha.
P: E ao nível da formação? Tens uma relação longa com o ensino de Arquitectura, doutoraste-te no ano passado na FAUP. Como vês a produção e a formação dos jovens criadores/arquitectos? E a investigação em arquitectura?
R: Parece-me que a minha resposta já está à vista. Qual investigação? A daqueles que vão para fora em busca de recursos e plataformas para a pesquisa e, depois, mesmo que desejem regressar, se vêm obrigados a fazer render o seu conhecimento acrescido noutros sítios que realmente os acolhem? Ou a investigação daqueles que seguem ordeiramente o percurso académico para garantir um lugar num establishment universitário cada vez mais desligado da realidade exterior? Em termos de ensino arquitectónico, vejo a situação que conheço como uma espécie de travessia do deserto. Há um refúgio excessivo numa tradição que, apesar de tudo e de maneira válida, se construiu ao longo das últimas décadas e há, por cima disso, uma total recusa de inovar nos modelos pedagógicos e organizacionais da escola. E não há, quanto a mim qualquer tipo de brecha para qualquer vislumbre de reforma. Só por quixotismo, mais uma vez, se pode imaginar qualquer transformação real que não seja convenientemente abafada por uma lógica hierárquica bastante pobre, muito pouco baseada no mérito demonstrado. Nesse sentido, e quando saíram do sistema de Belas-Artes, as escolas de arquitectura parecem ter herdado apenas o pior da universidade portuguesa. Típico, nesse sentido, é a resistência brutal ao intercâmbio de ideias com o exterior e, como exemplo mais concreto, a fuga para trás perante as oportunidades que o Processo de Bolonha poderiam acarretar para o entendimento geral do ensino arquitectónico. Assim, foi só mais do mesmo: foi preciso que algo mudasse - algumas designações, algumas distribuições de horários - para que tudo ficasse rigorosamente na mesma.
P: No espectro oposto, no plano da divulgação cultural, imagino que te revejas no papel de editor / curador / investigador freelancer?
R: A manutenção de uma posição freelance - complementar ao meu vínculo à universidade - funciona como um escape às limitações, às resistências e às dificuldades que encontro em estruturas institucionais mais pesadas. É um espaço de liberdade que me reservo. Como é natural, as escolas de arquitectura têm as suas agendas. Se quero ter outra agenda - porque defendo a liberdade intrínseca de ter essa agenda diversa, mesmo que partilhe um projecto colectivo comum - e, no entanto, não pressinto qualquer receptividade da instituição a essa agenda, então tenho de encontrar meios diferentes para explorar essa liberdade. E esses meios têm-me sido proporcionados, por sorte ou porque aí os procurei, no campo de uma produção cultural que consegue traduzir as questões que me preocupam. Não deixo de ter uma genuína preocupação pedagógica, porque reconheço que a tenho, mas essa não tem que se exprimir apenas nos termos tradicionais da formação académica. Uma exposição, um livro, um filme, também podem ensinar, mas, mais ainda, também podem traduzir uma exploração e uma acumulação experimental de conhecimento. Nesse sentido, para mim, o objectivo essencial daquilo que fiz foi sempre o de proporcionar uma reflexão crítica sobre determinados fenómenos - uma geração de arquitectos ou uma condição urbana, por exemplo - e, nesse sentido, interessa-me ser capaz de produzir um conhecimento não necessariamente institucionalizado sobre esse mesmo tema.
P: E o que deveriam fazer as instituições, as “escolas” ou “centros de estudo”, como deveriam participar na actividade cultural do país?
R: As escolas não deveriam ser tão limitadas e autocentradas nos seus objectivos de promoção cultural - que se traduzem por vezes, tão só, na produção de uma pequena exposição no átrio para consumo interno - mas deviam envolver-se com parceiros externos para gerar debates conteúdos que estejam out there, fora dos muros do campus... Há experiências individuais, a custo, que são positivas, mas não consigo ir por aí se não pressinto um acolhimento positivo e uma vontade proactiva de ir por aí... E os centros de estudos, se servem para responder a clientes com problemas concretos - territoriais ou outros - deveriam fazê-lo numa perspectiva de crítica e de produção de conhecimento e não apenas de “resposta” ou “prestação de serviços”. Apesar de tudo, o campo arquitectónico pode e deve superar esse estigma de fornecer um mero “serviço” que é necessariamente acrítico em relação aos poderes encomendadores... Um centro de estudos universitário deveria servir para levantar questões e descobrir problemas, não simplesmente para os “resolver”. Para isso existe um mercado de oferta de serviços. Nesse sentido, qualquer centro de estudos deveria ser activo na publicitação das pesquisas que lhe são solicitadas e mostrar-se capaz de transformar os resultados dessas pesquisas em conhecimento retransmitido para a arena pública de uma forma minimamente aliciante. Isso seria um contributo para a actividade cultural. _
P: Como vês as políticas culturais de internacionalização, o trabalho das instituições: a Direcção-Geral das Artes (DGArtes), a Ordem dos Arquitectos, a Trienal de Arquitectura?
R: Não me posso queixar da DGArtes, certamente. Afinal até é nesse sentido de internacionalização que as coisas mais têm evoluído. E, para mim, foi assim principalmente desde o reforço desses objectivos por parte do Paulo Cunha e Silva, quando ele esteve à frente do Instituto das Artes. Ouvi críticas recentes à sua actuação por protagonistas do campo da arte, mas estas pareceram-me bastante sectárias, corporativas e besides the point. O que é certo é que, se o campo das artes já tinha apoios à internacionalização e as suas presenças nas bienais já eram garantidas pela canalização de apoios do Estado, noutros campos esses apoios eram totalmente inexistentes. E, hoje, no campo da arquitectura, esse tipo de apoio também é relevante no sentido em que o “nosso” mercado de “serviços” não absorve nem promove as práticas mais experimentais - e essas, afinal, não são mais do que a preparação e a antecipação dos futuros possíveis da prática arquitectónica. Como não identifico arquitectura com construção corrente, mas sim com uma forma de produção cultural reflexiva, isto para mim é bastante evidente. E esta concepção cultural da arquitectura não deixa de estar presente na lógica de actuação recente da Ordem dos Arquitectos - apesar de isso ser bastante contestado por certos sectores mais corporativos. Acho que as acções desenvolvidas nos últimos anos são positivas e deviam ser ainda mais abrangentes, pois creio que é pela afirmação cultural que se cria a relevância social de uma classe profissional como a dos arquitectos. A Trienal, por exemplo, é uma ideia básica, importante, mas tem que superar a sua esquizofrenia inicial e assumir se quer competir internacionalmente - o que exigiria muito maior criatividade e investimento do que aqueles que foram exibidos na sua primeira edição - ou se quer ser um mero produto de consumo interno - o que exigiria novas estratégias de articulação de conteúdos e públicos target. O que posso questionar mais nestas intervenções institucionais é qual a cultura de projecto que está a ser promovida: a de um grupo restrito ou a das várias facções, maioritariamente jovens, que compõem hoje o tecido social dos arquitectos. Acho espantoso que a maioria dos arquitectos em Portugal seja hoje do escalão etário abaixo dos 35 anos e que as políticas, culturais ou corporativas, da Ordem dos Arquitectos, onde estão inscritos, sirvam maioritariamente os interesses daquela minoria de arquitectos que tem mais de 40 anos. Assim, percebo o desinteresse dos jovens arquitectos na Ordem dos Arquitectos - mas, por outro lado, é-me difícil perceber que não haja uma tomada de poder por parte dessa maioria silenciosa. Talvez tenhamos aí o sinal de uma eficaz lavagem cerebral dos nossos jovens...
P: Tens referido a ideia de “crise”, a urgência em pensar a “crise”, que é essencialmente uma crise de ideias. E num texto recente (ver Hatch, The new architecture generation) referes uma ligação geoestratégica de Portugal ao Sul; pareces definir-nos como parte de um Sul, já não de um centro privilegiado. Este redireccionamento parece corresponder à ressaca do glamour da imagem dos anos 90, da novidade da “cultura de projecto”, de um certo lifestyle ocidental…
R: De repente ocorreu-me que esse texto ganhou agora ainda mais actualidade. Ainda bem que o livro só saiu agora (risos). Mas a crise de que falava não era só, de facto, uma crise de ideias. É uma crise de desequilíbrios globais que, quando se incrementam, acabam por explodir, como agora se viu. No entanto, sou daqueles que acham que as crises são proveitosas porque conduzem à reflexão e, in extremis, aos momentos de mudança de paradigma. Para mim a sugestão da crise dos últimos anos - crise social e económica e só depois de expressão e de expressões culturais - é que, perante a escassez de recursos, teremos que nos voltar para outras formas de pensar e de solucionar os problemas e os desequilíbrios do quotidiano. Nesse sentido talvez se tenha que deslocar a tónica da “resolução dos problemas” de um passado recente claramente ocidental - baseado na ideia de progresso e de prosperidade da sociedade afluente - para as lógicas de actuação, as formas de criatividade emergentes, se assim se quiser, de sociedades que, no passado recente e no presente, enfrentaram e enfrentam muito maiores dificuldades e desequilíbrios do que as sociedades ocidentais avançadas. Daí a emergência da Ásia e quiçá, no futuro, de África. A minha tese nesse escrito, e quase em jeito de ficção científica, é que a alteração climática e o aquecimento do planeta podem proporcionar deslocações dos centros da criatividade que realmente interessa - aquela que é baseada em recursos mínimos e não numa riqueza evidente e ostentatória - de onde eles actualmente se encontram mais para SUL. E defendo, portanto, que pela nossa condição de pobreza, mas também pelas nossas ligações culturais a outras realidades geográficas, nós estaremos mais perto dessa nova realidade do que a das sociedades nórdicas. Por vocação de interpretação histórica à la longue, não acredito que as coisas sejam tão estáveis como nós as cremos. E nesse sentido, estava só a procurar ser, mais uma vez optimista, relativamente à nossa condição periférica e entre dois mundos. Mas, no fundo, talvez seja o Brasil o país que, entre outros, está realmente preparado para protagonizar o desafio enunciado. E, aí, sabemos ao menos que o Brasil é onde reside um importante património genético português (risos).
P: Mas então, recuperando uma pergunta já histórica, o que há que fazer?
R: Esse escrito era só um cenário, coisa de que gosto cada vez mais, e servia, afinal, para transmitir uma parábola: que talvez devêssemos olhar mais para formas de criatividade emergentes originárias em contextos de verdadeira crise. Isso, por exemplo, é uma coisa que podemos fazer. E acho, de resto, que este tipo de atenção já tem vindo a ser desenvolvida por essa Europa fora. Quando os holandeses vão visitar a favela é porque - no seu registo sempre um bocadinho colonizador - andam precisamente à procura dessa criatividade emergente, das respostas que surgem dum caos que dificilmente conseguem compreender. O que é facto é que os meus interesses actuais também andam muito por aí. Essa procura da criatividade informal do Outro - aqui sim, e como a entendia o Michel de Certeau, como uma produção extremamente válida do “colonizado” - é o centro de um projecto ambicioso que espero vir a concretizar até Setembro de 2009: a exposição e a série de filmes MEGALÓPOLIS. Não sei bem se vai acontecer - porque em qualquer contexto, e mesmo contando com o interesse de várias bienais!, é efectivamente difícil arrancar e progredir com este tipo de projectos - mas, pelo menos para mim, é isso o que há para fazer... Ou seja, faz-se o que se pode.