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CATARINA MARTINS
Este mês decidimos entrevistar Catarina Martins, uma representante da classe política ligada aos ativismos culturais para ouvir as suas opiniões acerca do efeito da crise na área da cultura. Os cortes nos apoios à criação e o Museu Coleção Berardo foram alguns dos temas abordados.
As perspetivas dos políticos sobre a arte e a cultura são importantes para todos os agentes do “campo artístico” ou dos “mundos da arte”.
Atriz, co-fundadora, em 1994, da Companhia de Teatro Visões Úteis e dirigente da Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas, entre 2004 e 2006, Catarina Martins é deputada do Bloco de Esquerda na Assembleia da República.
29 de Março de 2012
Sandra Vieira Jürgens
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P: Daquilo que fui observando, é uma das pessoas que mais tem abordado questões ligadas à cultura na Assembleia da República. Porquê este interesse? O facto de ser atriz favoreceu essa maior atenção e sensibilidade aos problemas da área cultural?
R: Sim. Até porque quando o Bloco de Esquerda me convidou eu já tinha participado em diversos ativismos culturais, alguns relacionados com o teatro e outros sobre política cultural. Hoje sou militante do Bloco de Esquerda mas fui eleita como independente e convidada pela minha experiência nesse campo. Sentia a necessidade de haver uma voz mais presente sobre a cultura na Assembleia da República e foi por isso que aceitei o convite. A área cultural é naturalmente aquela a que estou mais atenta, devido à minha atividade profissional mas é também a área do meu compromisso político, foi ele que me fez pensar que faria sentido ter uma atividade política mais permanente.
P: O teatro tem os seus problemas. Como é que encara as questões relacionadas com outras expressões artísticas, como as artes visuais?
R: Tem-se julgado, penso eu que erradamente mas com alguns fundamentos, que as artes plásticas têm uma capacidade de viver do mercado que as outras áreas artísticas não têm. Isto por duas razões diferentes. Por um lado, sendo as artes performativas áreas de maior empregabilidade, que implicam a presença física de uma equipa num determinado local durante os períodos de ensaio e de espetáculo, os custos da sua criação tornam-se mais visíveis e relacionam-se muito diretamente com as questões do emprego, mas não só. Quando se fala de teatro fala-se também das questões da língua e nessa medida percebe-se mais a necessidade de existirem investimentos públicos. Ainda que agora se perceba cada vez menos.
Por outro lado, sobretudo agora que existem poucos recursos, tem-se percebido que há a necessidade de o investimento público ser feito diretamente nas estruturas de criação e não por via dos programadores. Nas artes plásticas tem existido um financiamento público mais dirigido à figura do curador ou da estrutura de museu que pode depois estabelecer alguma relação com os criadores. É verdade que uma boa parte do setor vive do mercado da arte, que é um mercado que transcende o fenómeno artístico e tem muitas parecenças com o mercado financeiro. Mas do ponto de vista internacional, Portugal tem muito pouca capacidade de participar nele já que é determinado por um número reduzido de agentes internacionais.
Ou seja, não é verdade que não haja investimento público, ele está dirigido para as estruturas, para os museus, não existindo uma relação direta com os próprios agentes de criação artística. O apoio à criação artística através de bolsas parece fazer muito sentido mas na prática não existe. Foi muito desenvolvido pela Fundação Calouste Gulbenkian e o Estado nunca assumiu esse papel. O Estado apoia algumas galerias, alguns eventos, museus e coleções onde participa, como por exemplo o Museu de Serralves e o Museu Berardo, e nada mais. Neste momento, em que a Direção-Geral das Artes não abre os apoios pontuais e anuais, julgo estarem em curso apenas dois financiamentos do Estado Central para toda a área da arte contemporânea, que são bienais e quadrienais mas que acabam no final de 2012. Áreas como a fotografia, a arquitetura, o design, neste momento não têm um único apoio.
P: A seu ver essa é a situação mais grave para o setor?
R: Não sei se será a mais grave. É a área mais silenciosa, eventualmente também por aquilo que há pouco referi sobre as equipas. No teatro, na dança há equipas a serem despedidas e é natural que isso se torne mais visível. Nas artes plásticas, os cortes têm menos visibilidade, o que é muito preocupante.
P: Esta decisão de se manterem os apoios bienais e quadrienais mais dirigidos às estruturas e suspenderem-se os apoios pontuais e anuais afeta sobretudo os pequenos projetos?
R: Os apoios quadrienais e bienais têm um corte de quase 40% e como acabam no fim deste ano e não se sabe o que vai acontecer em 2013. Teremos uma grande exclusão dos apoios e da capacidade de investimento em todas as áreas, que se estende à maior parte do território e das gerações. E mesmo em relação às estruturas que permanecem, também elas estão a ter menos capacidade de investimento e de oferecer emprego: os cortes são de 40% e não se sabe como irão subsistir no próximo ano. E nós sabemos que estas estruturas acabam muitas vezes por dar emprego a criadores para eles depois desenvolverem os seus projetos paralelos. Isto é como um castelo de cartas, começa tudo a desmoronar porque nunca criámos em Portugal uma ideia de política sustentada que desse resposta à pluralidade da cultura. Portanto quando começa a falhar, cai tudo ao mesmo tempo.
P: O que me está a dizer é que não há uma política cultural?
R: Não há e isso nota-se com grande evidência se pensarmos no seguinte: nós temos escolas, umas geridas pelas Câmaras Municipais e outras pelo Ministério da Educação, mas todos nós concordamos que a nível nacional existem programas, currículos, objetivos e condições a cumprir para que o trabalho se desenvolva. O mesmo acontece na área da saúde como em todas as outras áreas.
Na cultura, temos uma Constituição da República que diz que o acesso à cultura é uma tarefa fundamental do Estado, que refere a diversidade do território, das assimetrias regionais. É uma constituição que teve o cuidado de se afastar muito de visões de cultura de regime e diz que o Estado deve apoiar a cultura em colaboração com os agentes do terreno. Há essa preocupação, que é boa e válida mas depois não temos nenhuma legislação entre a constituição e a realidade, excetuando para a área da conservação, em que existe a Lei de Bases do Património Cultural e a Lei Quadro dos Museus. Embora nem tudo esteja a funcionar bem nessa área, especialmente no que depende de dinheiro, existem critérios científicos e técnicos de regulação. Nas áreas da criação artística é que não há nada, publicam-se uns decretos-lei e umas portarias que de vez em quando decretam uns apoios. Quando houve programas de investimento em todo o território nunca se teve em consideração os conteúdos, foram dirigidos para a construção de equipamentos, de bibliotecas, de teatros, sem que dissessem como é que devem funcionar ao longo do tempo. Porque não é só o edifício, é importante determinar o que é que faz de uma biblioteca uma biblioteca, o que é que faz de um teatro, de um cineteatro ou de um centro cultural, um espaço cultural a largo prazo. Isso não existe.
As questões do acesso à cultura, ao património, à criação artística na sua pluralidade são ideias que muito dificilmente são tidas em conta mas dizem respeito aos direitos de uma população em democracia. Mesmo aqui, na Assembleia da República, quando nós apresentámos legislação no debate do plenário sobre as redes – e começámos pela rede de bibliotecas porque que ela é mais fácil de ser entendida como serviço público, pois relaciona o que é o acesso à educação e à cultura e os próprios mecanismos de transparência democráticos –, disseram-nos coisas como “as Câmaras já fazem o que podem”, “não vamos dizer que as Câmaras têm que ter este ou aquele serviço gratuito, como disponibilizar jornais diários, acesso à internet, sobre isso já não se pode legislar”. Em relação à cultura há a ideia de que se faz o que se pode. É sempre um favor do governante ou do autarca do momento que a população tenha acesso à cultura e o criador tenha capacidade de criar.
P: A sua opinião é que este desinvestimento na cultura tem a ver com uma conceção de cultura como atividade supérflua?
R: Não há uma ideia para a cultura. Embora a nossa constituição a inclua nos direitos fundamentais, depois, na sua concretização foi sempre encarada como algo de supérfluo. Em época de crise isso nota-se mais. O problema é que os ditos agentes culturais – estas expressões são sempre complicadas porque estamos a falar de um campo muito diverso, mas usando o termo – acabam por assimilar este tipo de discurso e é talvez por isso que não se fazem ouvir. Numa altura de grave crise financeira e económica do país, é natural que a arte seja considerada um “luxo”. O que não é verdade. Mesmo do ponto de vista economicista, que é um ponto de vista muito redutor e nada favorável às questões culturais, isso não é verdade. Os estudos que entretanto foram realizados mostram que o investimento público de 0,2% ou 0,3% do PIB foi capaz de gerar 2,8% do PIB. O investimento público em cultura tem que ser efetuado nos setores nucleares onde o mercado não chega. Nós sabemos que uma telenovela é cultura mas dificilmente o Estado necessita de investir em telenovelas.
Esse é um erro de base que nos pode ficar muito caro, não a longo prazo mas a médio ou mesmo a curto prazo porque ninguém irá investir na esfera nuclear da cultura se não o Estado. Ou seja, nós temos privados a investir no setor cultural que se relaciona com as outras áreas, como o turismo e existe uma outra série de indústrias que se alimentam dela, mas esse investimento só existe porque a cultura se renova e para isso é necessário que se invista no setor nuclear porque neste ninguém investe para além do Estado.
Eu acho bem que se perceba qual é a repercussão económica que o investimento na esfera nuclear da cultura tem em diversos setores, mas a criação artística e o património têm o valor intrínseco de nos dizer que nós somos gente muito para lá de todas as contas que se possam fazer. A cultura tem a ver com a nossa capacidade de nos pensarmos, de sermos pessoas.
É uma necessidade básica, mas não acho mal que se façam contas. Mas quando se fazem contas temos de saber que contas estamos a fazer. Se percebermos que a esfera nuclear é capaz de alimentar uma série de indústrias que são muito importantes para o nosso PIB também temos que ser capazes de perceber que o setor que vai gerando a essência de tudo isso, não é diretamente financiado pelo mercado, só tem capacidade para dar mas não tem capacidade para receber receitas.
P: Aparentemente o dinheiro acabou. O que é que se pode fazer? Há necessidade de encontrar novos modelos de apoio às artes?
R: Não é muito verdade que não haja dinheiro. Normalmente não há muita noção disso mas os investimentos que têm sido feitos na cultura em Portugal, mesmo o que está em Orçamento de Estado, tal como em todas as áreas, é em grande parte dele dinheiro europeu. Ou seja, quando a Direção-Geral das Artes concede apoios, a maior fatia de dinheiro tem origem em fundos europeus. Na conservação do património a situação é idêntica. Noutras situações são os próprios agentes que se candidatam diretamente a financiamento europeu.
No atual quadro comunitário, nós temos 13 mil milhões de euros disponíveis para serem usados até 2015 para todas as áreas da economia portuguesa. Deverá decidir-se que parte será para a cultura. Este é um campo onde com muito pouco se faz bastante, claro que com menos se faz cada vez menos. A ideia de que com menos se faz mais é absurda. Tristemente nós temos sobrevivido com orçamentos para a cultura que se contabilizam em milhões de euros quando em outras áreas são em mil milhões de euros. Portanto saber o que deve corresponder desses 13 mil milhões de euros que há disponíveis para a cultura é uma questão que o governo deve decidir. Claro que isso exige que 15% do valor seja de contrapartida nacional mas isso não é nada. Há dinheiro. Haja vontade e há dinheiro.
Para além disso está a ser debatido já na Europa o próximo quadro comunitário. O problema da cultura não é só o não investimento presente mas o facto de não se ter pensado a prazo. Neste momento nós podíamos estar a usar melhor o dinheiro que há e não estamos a fazê-lo. E se não o usarmos ele não fica cá, vai-se embora, tal como vai se não prepararmos com tempo o modo de utilizarmos os programas que aí vêm. Em Portugal temos projetos que embora tendo tido financiamento estão a fechar as portas porque as CCDR – Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional não estão preparadas para lidar com o setor cultural. Nunca ninguém pensou que a cultura tinha uma palavra a dizer e lidam com as estruturas como se fossem obras públicas. Atrasam de tal forma o processo, os problemas burocráticos são de tal ordem que mesmo quem se candidatou a fundos comunitários, garantiu a contrapartida nacional e executou os projetos, teve que suspender a atividade. E não está a acontecer nada para que isso mude no futuro. Neste momento existem em Portugal projetos culturais nesta situação.
Nós somos dos países que menos se candidatam a fundos europeus e ao contrário daquilo que acontece com outros países, é que os criadores quando vão a um fórum ou evento internacional de arte e cultura, não tem um acompanhamento por parte do Estado. No audiovisual, por exemplo, os realizadores estrangeiros são acompanhados pelo canal público de televisão do seu país, o que lhes confere um suporte importante para negociar e criar projetos internacionais. Em fóruns de outras áreas, muitas vezes institutos como o Cervantes, o Instituto Goethe, o Britânico e outros, apoiam os criadores do seu país. Com os portugueses nunca está ninguém, ficam sozinhos, o Estado nunca está presente nos eventos internacionais para ajudar como interlocutor, o que torna tudo muito mais difícil, ainda por cima sendo este um país periférico, em que nos fica muito mais caro viajar. A Bélgica tem uma série de países à volta, nós temos que viajar muito para conhecermos os vários parceiros europeus.
P: O Bloco de Esquerda tem defendido os apoios à internacionalização e a DGArtes acabou de noticiar a aprovação da Portaria de Apoio à Internacionalização das Artes. Que opinião tem sobre esta medida de financiamento de projetos artísticos que se desenvolvam no estrangeiro?
R: É muito pouco dinheiro. Os apoios pontuais e anuais eram mais de dois milhões e seiscentos mil euros, o da internacionalização é de 600 mil euros. Este apoio também não é uma novidade, estava paralisado há muito tempo. A única novidade é que vai ser retomado. Sempre existiu esse apoio via Instituto Camões ou via Direção-Geral das Artes, antes via IAC - Instituto de Arte Contemporânea e IPAE - Instituto Português das Artes do Espetáculo. Sempre existiram programas de apoio direcionados às pessoas que eram convidadas para eventos internacionais e que podiam pedir apoio financeiro ao Estado para as viagens. Mas é um programa de 600 mil euros para todas as áreas artísticas. É disso que estamos a falar. O Instituto Camões foi reformulado e deixou de conceder esse apoio. Isto é o retomar do que já existia e com uma verba relativamente modesta. Numa altura em que não abrem os apoios anuais e pontuais, esta verba poderá ser acima de tudo aproveitada, julgo eu, por quem já tem financiamento do Estado e não resolve o problema. Apenas se pode internacionalizar o que se cria. Não adianta ter dinheiro para as viagens quando não se tem dinheiro para criar.
Infelizmente essa é uma ideia que não existe só na cultura. É uma ideia que está a existir na economia portuguesa neste momento. É que tudo se resolve com exportações mesmo que não exista nada internamente. Nós temos dito que na cultura não se exporta o que não se cria e isso não acontece em nenhum setor da economia. Quando não há mercado interno as empresas não se aguentam e portanto também não podem exportar porque já fecharam portas. Na área da cultura este governo tem muito a ideia do projeto benemérito ou seja como se nós pudéssemos ter só projetos de excelência capazes de serem exportados. Nós sabemos que não é assim e é impossível que assim seja. Nós só vamos ter criação artística extraordinária quanto mais criação artística houver e isso é verdade na arte como na ciência, como em todas as áreas da vida. A ideia de que poderá aparecer um projeto de excelência sem mais nada à volta, espécie de cultura do eucalipto, é uma ideia assassina.
P: Na ciência isso foi compreendido, o desenvolvimento da ciência dá-se com a criação de estruturas, na cultura isso não acontece?
R: Há uma visão conservadora, muito retrógrada, que tem muito medo da pluralidade e não sabe viver com ela. É como se estivéssemos sempre à procura de perceber se aquilo é mesmo bom. Só podemos financiar o que for mesmo bom. Eu temo que na ciência isso aconteça. Qualquer dia começamos só a apoiar a investigação científica de quem consegue publicar um artigo numa revista internacional de renome. O que se está a fazer na arte é equivalente, ou seja, não temos centros de investigação, só temos universidades até à licenciatura, depois vai tudo embora. É o que acontece na arte. Na ciência isto parece absurdo. Porque é que na arte parece normal? Não consigo compreender.
P: Já se referiu à aparente indiferença do meio. A que é que isso se deve? As pessoas falam sobre os problemas mas somente a nível privado, não se expressam publicamente.
R: Eu acho que há dois fatores que contribuem para isso. Infelizmente as pessoas assimilaram a ideia de que a arte é um luxo. Assimilaram, ou seja, todos nós somos impressionáveis por aquilo que é a opinião dominante e a opinião dominante em Portugal é a de que a arte é supérflua e há quase um pudor em se afirmar a essencialidade da arte no desenvolvimento de qualquer comunidade. Não apenas de um país, mas de qualquer comunidade. Isso é perigoso e precisa de ser combatido.
Há também outro fator, que é este ser sempre um setor do favor. Nós continuamos a viver num meio em que nunca foram criados os verdadeiros serviços públicos, uma legislação clara, em que haja uma relação completamente transparente entre o Estado e os vários agentes, sem permeabilidade às pressões, à chantagem, às relações pessoais. Há sempre um medo. As pessoas vivem e dependem todas de relações pessoais, de amizade, de confiança, e tentam pelo menos não ser ofensivas de modo a terem dinheiro para trabalhar.
P: Podemos falar de uma desregulamentação do setor?
R: Há uma completa desregulamentação e as pessoas têm medo. E devo dizer que este governo está a ser muito hábil em gerir esse medo. Antes do Orçamento de Estado nós dissemos que a Direção-Geral das Artes estava a ser desmantelada e tinha cada vez menos técnicos. E foi-nos dito que se ia apenas poupar dinheiro, que a DGArtes era grande demais e não precisava de tantos técnicos. A DGArtes é já o resultado de uma fusão entre o IAC - Instituto de Arte Contemporânea e o IPAE - Instituto Português das Artes do Espetáculo. Nós dissemos que uma Direção que é um gabinete pequeno nunca vai ser capaz de lançar concursos sérios em todo o país para as várias artes. Com o valor anunciado neste Orçamento de Estado ficam afetados os apoios bienais e quadrienais e nem sequer haverá dinheiro para os anuais e pontuais. Tinha sido anunciado que os concursos iriam ser abertos e as pessoas ficaram caladas à espera. O que aconteceu foi o Diretor-Geral das Artes dizer que não havia dinheiro e na Assembleia da República o Secretário de Estado da Cultura que não era bem assim. Há uma gestão do medo mas eu julgo que há pessoas que já perceberam isso. É preciso que as pessoas compreendam que quanto mais aceitarem este estado de coisas mais se vai agravar.
P: É significativo que a polémica na área cultural seja entre o Secretário de Estado da Cultura e o Comendador Berardo. Como é que observa esta questão?
R: É natural que a Fundação Coleção Berardo seja um problema político porque as responsabilidades do Estado para com uma coleção que se mantém privada tem que ser um problema político. Isso é natural que aconteça. O que não é natural é que com problemas muito maiores seja essa a principal polémica. Isso acontece por duas razões. Por um lado tem a ver com a forma como a comunicação social funciona. A comunicação social é muito mais atenta aos problemas de um empresário do que aos problemas de artistas. Aliás notou-se no Dia Mundial do Teatro. Nesse dia esteve aqui à frente da Assembleia da República um grupo de pessoas em protesto contra o fim dos concursos da Direção-Geral das Artes e normalmente quando há protestos quer-se ouvir os partidos. Neste caso isso não aconteceu porque a cultura não é partidária, ou seja, é como se a cultura não tivesse nada a ver com política.
P: Mas a cultura também tem medo da política?
R: A cultura tem medo da política por causa da desregulamentação e de se viver sempre nesta lógica do favor. Os agentes culturais que são politicamente mais opinativos, que a exprimem, têm relações muito mais difíceis com o poder político, o que quer dizer que vão ter menos dinheiro para trabalhar. É um dado objetivo. Isso acontece. Mas a única maneira de deixar de acontecer é as pessoas não aceitarem que isso aconteça.
P: Como vê a medida de se acabar com a gratuitidade das entradas no Museu Coleção Berardo?
R: Duas coisas diferentes. Um aspecto é se o Museu Berardo em si deve ter uma gratuitidade que mais nenhum museu tem. Desde logo isso perverte os dados quando se fala do público que os museus têm. Ou seja, eu julgo que a Coleção Berardo é uma coleção que se dirige às pessoas e que conseguiu relacionar-se com o público. Não estou a dizer que a coleção não é importante, porque é, ou que não há mérito real no trabalho que foi desenvolvido mas a verdade é que quando se diz que recebe não sei quantos mil visitantes está a comparar-se com os outros onde é preciso pagar entrada. E isso é um problema.
Eu acho que todos os museus deveriam ter entrada gratuita porque não tem muito sentido nós dizermos que as visitas das escolas devem ser gratuitas e também a entrada ao domingo de manhã, sem pensarmos na situação de uma família portuguesa com o salário médio em que as pessoas ganham 700 euros e não conseguem ir com os filhos ao museu. Não têm dinheiro para pagar a entrada. Ou então o preço da entrada deveria ser verdadeiramente simbólico, numa lógica de responsabilização. Há mecanismos que existem noutros países que julgo serem interessantes, que é o acesso aos equipamentos culturais ser gratuito para as populações locais para que haja uma fruição quotidiana. Paga quem vem de fora.
Infelizmente nós temos uma baixa percentagem de população a aceder aos nossos equipamentos culturais e temos que nos preocupar com os 90% que nunca foram. Ou seja, uma política pública é uma política que dá resposta aos 10% que vão aos museus, aos teatros, ao bailado, à ópera mas tem que se preocupar com os 90% que não vão. E nós não temos essa visão. A verdade é que a entrada gratuita na Coleção Berardo dá uma resposta. Há pessoas que provavelmente nunca iriam ao museu e que assim vão. Não é em si um mal, pelo contrário. Agora ser num museu e não haver uma medida estruturada, é que não acho bem. É tudo pontual, não há um pensamento estruturado sobre isto.
P: E como observa a medida de gratuitidade para os desempregados? Ela acontece em França. Em Portugal ela é positiva?
R: É, mas mais uma vez, é bom os desempregados puderem ir aos museus sem pagar entrada. E o resto das pessoas que ganham muito pouco?
Em França foram feitas experiências interessantes de passes culturais para beneficiários de medidas do género do rendimento social de inserção, por exemplo para acederem à cultura, ao desporto, etc. E embora não acedessem numa percentagem muito grande, para algumas pessoas foi verdadeiramente importante.
Acho muito bem a medida para os desempregados mas este tipo de acesso deveria ser para toda a gente. Há outras medidas que podiam ser pensadas para outros grupos e que poderiam ter do ponto de vista social uma maior capacidade emancipadora. Em geral qualquer medida para permitir o acesso gratuito das pessoas à arte e à cultura é muito válida. O problema é serem pontuais e não terem um significado real. Ou seja, qualquer dia os desempregados têm que andar com um cartão ao pescoço a dizer sou desempregado e posso entrar nos museus. Até que ponto estas medidas em vez de serem medidas interessantes passam a ser medidas estigmatizadoras?
P: Num momento como este o governo prescindiu do Ministério da Cultura. É uma questão simbólica ou profunda? Significa que a cultura está a perder o seu lugar, a sua importância?
R: Acaba por se revelar uma questão mais profunda. O que foi dito é que não haveria ministério e que isso não era grave porque o Secretário de Estado estava na dependência direta do Primeiro Ministro e portanto a cultura ficaria mais perto do centro de decisão. Isto é logo uma ideia de subserviência da cultura. A cultura tem que estar mais perto do príncipe para ter algumas migalhas. Esta é uma ideia reacionária. Mas na prática o que se vê é que o investimento caiu, baixou a capacidade de intervenção em todas as áreas, por exemplo o que está a acontecer na Barragem do Foz Tua é muito sintomático, há pareceres negativos e o Secretário de Estado disse agora que nem conhecia o novo projeto para a barragem. É sintomático que nesta comissão interministerial estratégica do QREN, que é um conselho de ministros presidido pelo ministro das finanças, que não haja ninguém que represente a cultura. Está representada a educação, a defesa nacional, a administração interna, a solidariedade social, o ambiente e a agricultura, a economia e as finanças. Está lá tudo menos a cultura. Logo isto não é apenas um problema simbólico.
Julgo que há um outro sinal que é muito flagrante. A ideia que a cultura iria ser transversal. Há um parágrafo no programa do governo que é provavelmente o único parágrafo que eu concordo do princípio ao fim que diz que a área de intervenção prioritária da cultura tem de ser a presença da educação para a arte e a cultura na escola. Eu concordo, a nossa escola está distante da cultura, da arte. Mas fez-se agora uma revisão curricular que não tem nada a ver com isso. Isso foi aprovado no programa do governo, foi aprovado nas grandes opções do plano do orçamento e passados quinze dias a revisão curricular não tem uma linha sobre isso.
P: Para finalizar, que balanço faz da sua ação no Parlamento?
R: Acho que foi possível trazer temas da cultura para a Assembleia que não estavam presentes no debate. A primeira vez que houve um corte nos apoios da Direção-Geral das Artes nós fizemos uma declaração política sobre isso e os 10% de corte foram debatidos em plenário e até houve um recuo. Mas os problemas da crise aumentaram e houve mais cortes. Mas começou a ser debatido aqui. Quando eu estava em associações, em ativismos vários nesta área, lembro-me de pedir audiências às comissões que integravam a cultura para explicar isso e ninguém sabia que estava a existir um corte. Eu creio que agora pelo menos é um tema. Percebe-se que é um problema político e que deve ser discutido mesmo em plenário. As questões da cultura entram no plenário cada vez com mais frequência e isso é importante. Mas há um muito trabalho a fazer.
Na última legislatura, a cultura estava na comissão que tinha a ética e a comunicação social e eu estava particularmente atenta à forma como se falava do setor e da profissão e devo dizer que no fim já não ficava chocada com o que era dito nas reuniões. Com divergências, mas falava-se em termos como o de subsídio-dependência. Mas o que é a subsídio-dependência? Porque é que os agentes da cultura são subsídio-dependentes e a EDP não é? Quem é que é dependente de quem? Como é que o Estado cumpre o seu papel no território se não pagar a agentes do setor? Começou-se a desmontar isso mas é muito duro porque este ano a cultura está na comissão da educação, ciência e cultura e eu já tive de ouvir um deputado em comissão dizer coisas como um filme não custou dinheiro nenhum. Porquê? Porque as pessoas não tiveram apoio e fizeram um filme com dinheiro do seu próprio bolso. Como se fosse normal as pessoas trabalharem sem serem remuneradas. Se o fazem é porque se gosta. É bom dizer-se aos deputados que eles só o são porque gostam e ainda assim recebem salário. Não está aqui ninguém obrigado. E não lhes passaria pela cabeça. E ainda bem, porque mau seria.
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