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CRISTIANO MANGOVO
27/01/2022
De Cabinda a Kinshasa, de Luanda a Lisboa, ou de estudante de Pintura na Faculdade de Belas Artes de Kinshasa a vendedor de mercado em Luanda, o percurso de Cristiano Mangovo reflecte as especificidades e as dificuldades do contexto africano. Mas é aí também que reside a sua inspiração e a sua força.
Cristiano Mangovo recebeu-nos a meio de um dia de trabalho no seu atelier em Lisboa. Entre duas telas que se enfrentavam, falou-nos do seu percurso pessoal e artístico e da exposição “Humano e a Natureza”, que esteve patente até Dezembro passado na galeria Afikaris, em Paris. Em Lisboa, vamos poder ver a sua próxima exposição na Galeria Insofar, intitulada ''O Sistema'', cuja inauguração é já no dia 4 de Fevereiro, ficando patente até 30 de abril.
Por Liz Vahia
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LV: Conta-nos como chegaste a Lisboa. Foi já decorrente do teu trabalho como artista?
CM: Sim. Consegui uma galeria aqui em Lisboa e para ter condições de entregar as obras, participar em projectos e workshops, pensei em mudar-me para cá. Outra razão foi a crise económica em Angola, que assolou o país em 2013, onde eu fui uma das pessoas que perderam as suas economias com a inflação da moeda. Isso também foi um facto que me levou a decidir vir viver para a Europa. Achei que assim daria mais estabilidade à minha vida. Eu não gosto de falhar, e apesar de saber que existem falhas, quando uma pessoa trabalha de forma organizada e é o país que nos provoca a queda, isso não me deixa bem comigo mesmo.
LV: Continuas em contacto com galerias em Luanda? Continuas a expôr lá?
CM: Continuo a expor lá e tenho galerias que estão em Angola e em Lisboa, por isso quando há projectos tento sempre participar.
Além disso, a minha inspiração está lá ainda e os laços de família também não acabaram. As minhas raízes e os temas continuam ligados a África.
LV: Vejo que os temas sócio-económicos africanos são um aspecto característico da tua obra. Continuas a chamar a atenção para esses temas.
CM: A minha base é África, as paisagens de África, as condições sociais de África. Mas não quero ficar num gueto, como estou fora de África e andei por vários países europeus, agora tento abranger isso a partir de um olhar daqui. Pois onde está o "ser humano" é onde mais me inspiro. Não há seres humanos só em África, há também na Ásia, na Europa, na América, e tudo isso é motivo de inspiração. Porque a injustiça não acontece só em África, a corrupção não só acontece em África. As violências, as desigualdades, não acontecem apenas em África. É onde está o ser humano. O ser humano é já um mundo, tem um universo dentro dele, do seu próprio “eu”. Onde há pessoas é onde eu ganho a maior parte da minha inspiração. Mas não só nas pessoas, também na natureza, nos animais... Tudo o que existe é já um motivo que me dá uma base, me inspira. O que acontece, o discurso das pessoas, a sua reacção... e tudo isto é um conteúdo que serve de inspiração ao meu trabalho.
LV: A propósito de Natureza, fala-nos da exposição que tiveste há pouco tempo em Paris, que tem a ver com esse aspecto do equilíbrio ecológico.
CM: O humano "é" natureza! Foi uma exposição cuja inspiração me veio do que aconteceu no mundo com a pandemia Covid-19, enquanto quase todos estavam em casa, presos. Eu, pessoalmente, passei mal, foi um tempo muito ruim da minha vida. Não fui o único que passei tempos ruins, de estar fechado, trancado numa espécie de cadeia, pois todos tínhamos a ansiedade de voltar à vida normal. Enquanto estava em casa, confinado, estava sempre atento às notícias, ao que estava a acontecer no mundo, e vi que os animais estavam livres, soltos, conseguiam aproveitar as praias, outras zonas que o ser humano sempre ocupou. Nisto comecei a aperceber-me que o ser humano ocupa muito lugar no mundo, de tal forma que abafa a natureza. Também a sensação que eu tive no momento do desconfinamento foi a alguém que estava preso e ganhou a liberdade. Quando sais para o ar livre, para a liberdade, sentes a vida, e a vida torna-se preciosa. Sentimos que o mundo é amplo, é maior, temos mais espaço para fazer movimentos, para dançar ao ar livre. Até se sente música!
Essa sensação de liberdade no desconfinamento veio até mim, e não fui só eu a sentir isso, o mundo todo sentiu a mesma coisa como eu a senti. Então comecei a pensar, a reflectir, como é que se poderiam sentir os animais que estão presos em celas, em zoológicos, em jaulas, os peixes nos aquários... como é que eles se sentem? Estão lá há meses, anos, décadas... Um animal sozinho numa jaula a vida toda, como é que essa situação é possível? Vive uma vida que não é digna e que não devia viver, separado de tudo, do seu ambiente. Então achei que o ser humano chegou muito longe. Eu sei que o ser humano tem pretensão de dominar a natureza, mas dominar não é castigar, dominar é respeitar, é valorizar também o outro. Tenho uma questão que sempre coloco a mim próprio e nos meus trabalhos: é preciso haver equilíbrio. Para ser forte será que é preciso desafiar alguém? Acho que não. Para ser forte é preciso segurar a outra pessoa, que é frágil e precisa que lhe dêem a mão, que a venham apoiar, a venham segurar. Não desafiar, mas segurar, apoiar.
LV: Na tua pintura não me parece que haja só uma denuncia constante de um estado negativo, há essa procura de uma certa harmonia possível. Era isso que querias transmitir também nesta exposição?
CM: Sim. Quando pinto, eu penso que os outros ao olharem para as minhas pinturas entendem o que quero transmitir, mas se calhar não entendem. Fico surpreendido ao perguntarem-me o que eu quero dizer num determinado quadro que eu achava simples.
LV: Li numa entrevista tua que te vias como um orador a quem faltavam as palavras para se expressar, por isso então este trabalho com a imagem. E que te sentias um “pequeno deus” quando estavas perante a tela. É curioso que a mensagem, que te parece simples de transmitir, às vezes não chega ao outro lado.
CM: Fiquei preocupado com isso. Não sei se é uma falha. Às vezes o público não chega a entender a minha intenção. Se calhar estão acostumados a ver um trabalho bem definido, a um estilo realista. Neste momento, para mim, não é um tempo de estar a pintar Arte Pop, um realismo tão puro como se vê no mundo ou como foi pintado nos séculos passados. Cada disciplina tem uma linguagem própria. O discurso de um artista será sempre diferente do de um cientista, de um político. Falar como um cientista, discursar como um político, é diferente da linguagem de uma pintura, porque a pintura não é um livro que o autor escreve. Num livro é possível descrever e explicar coisas, mas na arte só se apresentam as partes simbólicas, é atrás delas que se tem a “história”. Cada obra tem um código que pertence ao próprio artista, códigos chave que identificam o traço do artista. Talvez use muitos códigos nos meus trabalhos, que eu próprio também preciso de descodificar para entender. Isso é o que estou a tentar fazer nestas novas pinturas, porque a arte não é só para mim, é para o mundo, para passar uma mensagem, até para educar, ou para criticar, ou para dar mimo ou motivar, ressaltar uma coisa que eu acho que merece atenção. Assim, o fazer-me entender é importante para mim.
LV: Vi que tinhas interesse também pela escultura.
CM: Sim. Fiz a minha formação de artes plásticas em Pintura, na Escola de Belas Artes em Kinshasa, e fiz também workshops sobre cenografia urbana, performance, instalação. Nunca fiz nada relativo à escultura, mas cada vez que estava diante de uma obra de escultura achava que lhe faltava qualquer coisa. Não estou a criticar o trabalho dos outros, mas aquilo acabava por me inspirar a desenvolver uma coisa que tinha em mim, um interesse pela escultura que nem eu tinha ainda dado conta. Interagir com as peças dos outros fez sobressair aquela voz que gritava em mim. A vontade de fazer alguma coisa diferente daquela que via, foi como comecei a inclinar-me para a escultura. Não queria fazer igual ao que estava a ver, até porque o que eu estava a ver normalmente era escultura em madeira, e com a preocupação com a natureza, com o aquecimento global, de cada vez que estava diante de uma obra esculpida que usava um tronco de árvore, eu dizia "aqui morreu mais uma árvore!", só para agradar pela arte aos olhos das pessoas. Não tinha vontade de matar as árvores para criar obras. Eu faço escultura com resíduos, materiais descartados que encontro na rua quando ando a passear e vou recuperando para construir uma obra. Foi assim que comecei a andar nas ruas de Luanda a recolher carcaças, sucatas de motas, chapas, ferros, bidões, que encontrava no lixo e eu achava que podia transformar numa peça. Então comecei a montar uma série de esculturas com estes materiais descartados que foram expostas na Expo Milão 2015, no pavilhão de Angola. Até hoje faço sempre isso, embora não tanto agora porque não tenho espaço nem condições técnicas.
Acho que a arte é mais uma actividade, uma mensagem, com uma parte estética. Quando o artista consegue reunir esses elementos, aí nasce uma coisa.
O que me motivou também para tentar ser diferente dos outros foi, como disse, querer ser um pequeno deus para as minhas obras. Nelas, as coisas tornam-se fáceis para mim, porque ninguém virá ao meu mundo para criticar que este braço aqui nesta pintura é maior que este outro braço, ou que este dedo é mais espesso que este dedo aqui. Porque estes dedos seguram, por isso têm espessura! Quando pinto cada elemento, quero transmitir uma mensagem, expressar uma causa, dizer uma coisa. Queria ter um discurso diferente segundo o meu pensamento e diferente dos outros, criar no mundo um universo inteiro. E não entrar na linha, copiar ou reforçar o outro que já fez o mesmo trabalho. Tento fazer um novo discurso, trazer novos elementos, uma nova estética, um novo pensamento. Tento trazer sempre comigo a pergunta: "Porque é que fizeste isto? Porque é que isto está aqui?" É ali que começa um discurso de arte contemporânea, uma reflexão.
Cristiano Mangovo no seu estúdio em Luanda.
LV: Pensas-te herdeiro de alguma corrente artística, ou inserido nalgum estilo particular? Expressionismo, surrealismo... Ou isso são linguagens de que te vais apropriando consoante esse tal discurso que queres transmitir?
CM: As minhas pinturas são provavelmente uma mistura de surrealismo e expressionismo, sim. Eu pinto a partir do que serão as “verdades” da minha reflexão. Deixo-me levar quando a inspiração flui. Se é um novo discurso eu não sei, só sigo a inspiração. Talvez um historiador de arte possa dizer alguma coisa, ele tem um papel na critica sobre o trabalho do artista. Mas eu quero sentir-me livre na minha imaginação, criando o enquadramento que vai permitir que os elementos que eu uso sejam verdadeiros em relação a mim próprio e também ao meu pensamento. Depois, acho também que o que eu pinto em forma de personagens me reflectem de certa maneira. Fiz muito esforço para chegar onde estou hoje. Passei de Cabinda para o Congo, do Congo para Cabinda, de Cabinda para Luanda, de Luanda para Portugal, e foram passos com amor, dedicação, esforço. Cheguei a vender roupas no mercado com a minha tia. Estava quase a vender água na rua quando disse para mim "eu sou artista!". Tive que parar com aquela vida porque já não conseguia viver naquelas condições de estar aí a vender todos os dias. Mas vendi, passei por ali. O dinheiro que ganhava quando vendia em praças informais poupava para comprar material para começar a pintar. Por isso digo que construí um percurso com muita dedicação, energia e esforço, e percebi que a minha vida não foi tão cor de rosa assim, percebi que quando há dificuldades basta desistir um pouco para perder tudo, mas quem não desiste consegue ganhar o mundo. Tem é que se organizar, trabalhar, confiar, ser optimista, acreditar em tudo. Sei que não sou o único a passar por isto, porque nós todos passamos por algo parecido, pois em cada dia que vivemos temos a esperança que o amanhã será melhor. Todos nós com esforço chegamos a um patamar melhor, onde conseguimos dar apoio aos outros. É preciso esforço e amor e não ser egoísta, pensar em dar alegria aos outros.