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FÁTIMA MENDONÇADIÁRIO - DIAS INCERTOS![]() GALERIA 111 R. Dr. João Soares, 5B 1600-060 Lisboa 14 JAN - 25 FEV 2023 ![]() ![]()
Em Diário – Dias Incertos, os desenhos aderem à parede, aparentemente colados. Distribuem-se relativamente juntos, mas separados o suficiente para constituírem a sua autonomia. Os pregos que os seguram são quase invisíveis. Não se emolduram numa armadura de vidro e madeira – estão despidos, querendo agarrar-se ao grande branco para não caírem. A obra de Fátima Mendonça constrói-se na incerteza – parece haver nela um tremor constante, uma ansiedade, talvez a vontade intrínseca de criar, aqui, sinónimo de expelir. A textura das suas composições, somatórios de cores sobrepostas ou violentamente traçadas, leva o papel, muitas vezes, a fazer-se pedra, numa plasticidade a lembrar a fase bruta de Dubuffet, como em Casa (semear). Será, no entanto, algo injusta esta comparação: na “ingenuidade deliberada” (nas palavras de David Santos) que o artista francês via como oportunidade de diferenciação formal, sempre veículo para uma teorização mais profunda, a obra de Mendonça não se parece preocupar com mais nada, para além do registo sincero, sempre intenso, das suas vivências ou pensamentos. A palavra aparece constantemente associada ao desenho, signo de comentário ou jogo, dando lugar, por exemplo, ao humor jocoso: veja-se a última obra da exposição, um descrito Retrato de Perfil que é cabeça de um burro, ou o Cisne Brinquedo onde o processo de representação da boca de um cisne, parece ter levado a artista a notar a sua semelhança com um pénis, processo mental que se torna transparente no ato pictórico. No entanto, o universo de Fátima parece elaborar-se, sobretudo, no drama, no medo, quer pessoal ou contextual, mas sempre vivido intimamente: em A Guerra, faz-se uma obra cáustica, especialmente intensa, onde hélices de aviões distendidas parecem espinhos que espetam. Ainda assim, o humor e o drama não são elementos isolados: alimentam-se mutuamente, tudo é passível de várias leituras. Estamos num universo fechado, sempre chocante na sua veemência, que se fez reflexo da vida, porque também é ele um diário, registo continuado de vivências. O título da exposição parece-me uma sincera definição do contexto de produção destas obras, mas, simultaneamente, a súmula conceptual de todo o trabalho de Fátima. As obras que aqui vemos estabelecem relações concretas com temas já anteriormente abordados pela artista, como a mesma identifica na folha de sala: a casa, o autorretrato, o sexo. Especialmente, a casa que arde, aqui recorrente, esquelética, com chamas a trespassarem-lhe as vigas, como em Casa Protegida, contradição que pode ser aceitação do medo. Ou um cantileno desesperado para travar o pânico. Algures à frente, vemos uma casa preta, queimada. Nas suas claustrofobias parece ver-se o isolamento pandémico que originou a construção desta exposição. Entre si, os desenhos estabelecem também mitologias fechadas, cruzamentos específicos que se constroem numa visão atenta da exposição: por exemplo, o final Retrato de Perfil parece cruzar-se com uma outra composição anterior, onde, num círculo, uma personagem tímida, embaraçada, é legendada como Cabeça de Burra. Os temas, mais ou menos aleatórios, vão voltando como memórias remoídas, trabalhadas insistentemente, obsessivamente pela cabeça da artista. A força e subjetividade com que se expelem parecem refletir a incapacidade de se conseguirem dizer por palavras. A vergonha de um mundo fechado feito pujança. Obras-catarse. Se quisermos evocar comparações, talvez o nome mais sensato seja o de Adília Lopes:
“Quando fomos apresentados
Adília Lopes, Tu (pintado com o pé)
Fátima Mendonça, Dois murros, 2022. Lápis e pastel sobre papel, 42x42cm. © Artista / Galeria 111
As mãos são o elemento principal de uma das obras chave da exposição, Dois Murros. Aqui, não se cortam, mas, com semelhante violência ingénua, fecham-se fortes e femininas. Parece ver-se nesta obra de Fátima uma espécie de orgulho mais assumido, uma afirmação mais concreta – como nas suas representações de vulvas e clítoris, aqui também recordadas em novas composições. Para vermos estes Dois Murros, olhamos para cima como uma figura de adoração, grave: compõem um retrato sem cara, um par de mãos vincadas, rígidas, prontas para o soco, com as unhas pintadas de vermelho. O fechamento do pulso, disposto ao combate, é uma potência combustora pronta a ser devolvida. Por exemplo, ao visitante. À sua volta observam-se também momentos contemplativos, porque as obras de Fátima também o conseguem ser: um conjunto de papoilas emerge de um verde aguado, hipnótico; mais atrás, traça-se um presépio sob uma noite tranquila; desenham-se também várias árvores, hirtas ou emaranhadas, sempre com flores ou fruto. Tudo é perpassado por uma impulsiva credulidade que faz cada cena – muitas vezes simples, apresentando só uma ação, um elemento, um cenário – assemelhar-se a um cromo numa caderneta agigantada, aqui aberta, espalhada. Não mencionei ainda os animais de estimação, as mulheres que choram, as caveiras, os retratos retorcidos e assombrados. O seu Diário é extenso, passível de várias colheitas. Escreve-se em pequenos contos filtrados por uma imaginação onde o surreal se torna apenas um verídico mental, mais intenso. Uma bonita exposição de uma artista imperdível.
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