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ANTÓNIO CHARRUACENTENÁRIO 1925-2025![]() AP'ARTE GALERIA ARTE CONTEMPORÂNEA Rua de Miguel Bombarda 221 4050 381 Porto 17 MAI - 28 JUN 2025 ![]() O mistério abstracto de António Charrua![]()
Mais do que realidade, a Charrua importa o reflexo especular esbatido nas superfícies pictóricas como exercício contínuo de uma elaboração onírica/substancial de uma autêntica materialização de um real não subsumido na realidade do mundo. Talvez seja este o sentido quando a propósito da obra do artista, Vergílio Ferreira designa desta forma o mapeamento conceptual que nela pressente: assim nós oscilamos entre o real e o irreal e o que nos sobra disso e nos fala à imaginação é uma estranha música em que a irrealização é em definitivo o seu verdadeiro real [3]. Real hipertrofiado pelos jogos cromáticos e intensidades lumínicas de uma pintura condizente com uma afirmada inexpressividade quando entendida como agenciamento de veracidade da realidade, mas intensificada como possibilidade absoluta de constituir a sua própria realidade. Assim vemos na obra Nós, o espelho + correntes (2001) a concretização reflectora do mundo no acto da pintura. Espelhos acondicionados no tríptico, conjuntamente com o trabalho constritivo das correntes, como solução impositiva de uma intuída vertente simbólica de alicerçar o universo pictural ao acto de observação real.
António Charrua. Círculo, 1987. Óleo sobre tela. Cortesia AP’ARTE Galeria, Porto.
Concentrando-nos nas obras expostas nesta celebração do centenário do artista na AP’ARTE Galeria observamos um conjunto pertencente às três últimas décadas de Charrua onde vislumbramos um trabalho reiterado de mistério, de enigmáticas formatações compósitas de reverberações tonais, potenciando e catalisando infrenes soluções plásticas de imensidões coloristas, aliadas a exasperantes, porque recrudescidas envolvências de uma gestualidade que oscila entre a contenção e subtração e a sobreposição ou acrescentamento. A minha fascinação sempre foi a cor, diz-nos Charrua [4], trabalhada sempre a partir da bidimensionalidade do plano, como potencial óptico de molduras, de delimitações, de inscrições territoriais ou de extravasamentos sígnicos, de mapeamentos totais das imensidões incógnitas do espaço, ou mesmo como fulcral fundamento de um jogo dialéctico de ocultação/revelação. Nesta instabilidade concomitante a uma contínua exploração da gestualidade, Charrua compõe retratos de ausência, como prometidos espelhos do mundo (invertidos na sua fidedigna reprodução) a partir de estados turbilhonantes de vórtices entrópicos da transitividade modular das cores entre os enunciados formais (Círculo, 1987). Parece sempre haver uma margem de resvalo em que a gestualidade soçobra na sua condição cartográfica do espaço, para, por inerência obstinada, determinar zonas colaterais de acção, onde o seu resultado presentifica soluções anfractuosas e irregulares, recusando limites e preenchimentos para desenvolver estratégias de indefinição. Caso curioso, pois Charrua actua muitas das vezes com e pela geometria como apoio metodológico impassível e concreto. Esta geometria, no entanto, surge como resquício esburgado de um outrora plano de consistência, arruinada pela constrangente força do artista na inscrição figurativa: triângulos isentos de preenchimento total das suas formatações, invadidos por dispositivos imperfeitos de soluções informais de extravasamento da cor que vão apagando os contornos das suas linearidades (O Direito e o Avesso, 1990), ou manchas incógnitas, assimétricas e heterogéneas - cuja informalidade vai construindo espaços de irregularidade vertical - que acometem a cruz como exposição contaminada de uma ordenação implausível entre a figuração e o seu preenchimento cromático (Dias de Chuva, 1998). Tudo parece estar regido por uma intensificação abstracta de uma estranha ordenação compulsiva. Na obra No caminho de Katmandu (2003) o artista conjuga de forma prodigiosa os resultados de absorção da inscrição sígnica de uma alfabetização pessoal com uma concentração determinante de soluções cromáticas que condensam a expressividade da obra numa composição afastada dos trâmites sequenciais de um despojamento minimalista, de retenção significante ou de simplificação formal, a favor de uma inusitada panóplia ideativa advinda de uma carga íntima do artista. Mas falamos aqui de uma ideia que se cliva, que se abre ou se espartilha em abrangências abscônditas, irresolúveis, de caminhos aporéticos. A ideia não pode ser para Charrua o encaminhar da inteligibilidade para a sensibilidade como um meio linear de concretizações flutuantes que se individualizam na univocidade do sentido, antes, a ideia de Charrua passa pela peregrinação imagética, trabalhada, maturada e substanciada por um sentido de uma aventura plástica irrepetível, dotada de veracidade pela contingência do acto fulgurante de inscrição. A ideia surge da própria posição estética, de tracejar sinais hieroglíficos no tecido pictórico como indícios de desacertadas e desajeitadas impressões deixadas como vestígios concretos de uma cristalização de uma escrita desfasada de uma consciência racional. No lado esquerdo do tríptico observamos o signo matricial de Charrua - X - paralelismo pela fonética do seu nome, ou indicativo de um signo expresso de uma ausência de significado. X marks the spot como lugar de uma presença desejada, de uma riqueza inacreditável, ou como negação da racionalizante medida de significância do nome: trabalho oscilante entre o encontrar e o perder, entre a conquista e a inutilidade, ou mesmo entre a impreterível demanda do algo ou a consciência dos estreitos limites da realidade. Nesta ambivalência, podemos perceber as dinâmicas que o significante tem na linguagem do inconsciente, nomeadamente para Jacques Lacan, onde não só detém a superioridade hierárquica sobre o significado, que assim se submete ao significante, mas essencialmente contém o poder de retratar uma nova dimensão não racional de revelar aquilo que não só apenas o homem fala, mas nele e através dele fala (ça parle) como uma estruturação de uma linguagem inconsciente [5]. O X é deste modo um significante sem significado, o ça parle da pintura, invertendo qualquer sentido de um nome ou de uma valorização interpretante, mas envolvendo-se sempre a partir de uma estranha e intuída comunicação além-conhecimento. Assim António Charrua atribui uma misteriosa formação simbólica à aparente burilada abstracção pictórica, não pretendendo envolver o real facilmente perceptível do mundo, mas dispondo do seu reflexo como infinita possibilidade de o desdobrar em contínuas gestualizações.
Rodrigo Magalhães
Notas [1] Excerto do artista in GUIMARÃES, Jorge. “Charrua ou a Fixação de um espaço sem Tempo” in Charrua. 1990, p.13. ![]()
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