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EDMOND BROOKS-BECKMANTHE CONTRACTION OF EIN SOF![]() GALERIA DUARTE SEQUEIRA R. da Galeria nº129, 4700-803 Braga 29 MAR - 31 MAI 2025 ![]() ![]()
Ein Sof é o termo pelo qual Deus é designado na Cabala judaica, uma entidade que não tem limites, e, por isso, sinónimo de infinito ou luz infinita. A contração que refere o título da exposição alude ao mito da criação do mundo segundo a mesma disciplina: Deus, omnipresente, teve de se retrair a si mesmo para deixar espaço para o mundo mortal emergir. Essa retração tem, por sua vez, o nome de Tzimtzum. É uma palavra que soa a feitiço ou a onomatopeia, como se, de repente, o mundo tivesse aparecido num arabesco vindo sabe-se lá de onde. As obras de Edmond Brooks-Beckman (n. 1987) na Galeria Duarte Sequeira aparecem-nos, de facto, numa gestualidade imediata e brusca. A qualidade rompante das pinturas não parece ser fruto de uma velocidade viciada, muitas vezes podendo ser associada a um automatismo do markmaking. O de Brooks-Beckman é diverso, de várias durações e intensidades, reativo ao gesto/marca, numa sucessão de pós guiada por um subconsciente informado e um movimento de mão semelhante ao de um maestro. O processo natural da ação que decorre da conversa entre conteúdo conceptual e matéria física, memória e corpo, ali naquele momento, acaba por se concentrar no processo do fazer e da resolução da matéria. Diante de qualquer pintura, nota-se o investimento na sua compreensão e potenciação das qualidades físicas, cromáticas, e tridimensionais da tinta. Pintor britânico natural de Londres, o método de Edmond pode ser extremamente físico, mais interessado em construir a narrativa do que em explicá-la. Através de sucessivos processos de adição e subtração da tinta, as pinturas em tela são palimpsestos de inscrições, números, palavras, formas, matrizes, que se perdem num caos pictórico. Edmond vai buscar este alfabeto ao seu quotidiano familiar, e, na forma como é trabalhado, é capaz de recuperar uma imagética arquétipa, antiga e críptica, de runas e hieróglifos, atualizados numa linguagem íntima que só o artista é capaz de dar pistas. Edmond reflete sobre o conceito de Tzimtzum à luz dos contextos e experiências que têm vindo a definir a sua identidade judaica, e em como é que isso se materializa diretamente nesta série de trabalhos. Por exemplo, refere na folha de sala a necessidade, enquanto adolescente, de esconder dos amigos e das pessoas à sua volta os elementos identitários da sua religião - a quipá, a Estrela de David, entre outros. Essa necessidade constante de ocultação fixou-se no corpo e transformou-se, mais tarde, num interesse pela “desmarcação” e pelo “tornar invisível” no exercício da pintura. O rasurar e o escavar da tinta surge como um procedimento análogo a esse desejo de apagamento, mesmo que ele deixe resquícios. As marcas ficam sempre.
Edmond Brooks-Beckman, Carved translations, 2023. Óleo sobre tela, 91x122cm. © Edmond Brooks-Beckman / Cortesia Galeria Duarte Sequeira
A inclusão de palavras em Hebraico e Inglês fez com que Edmond imaginasse cada pintura como “um pergaminho da Torá”, livro sagrado do judaísmo, ajudando-o a reconectar-se com a sua herança judaica. As palavras desaparecem no resultado final para se tornarem fragmentos ilegíveis, cujo sentido se perde ao ser rasgado, batido e esborratado. As telas de média e grande dimensão são caracterizadas por espaços desgastados pela lâmina do x-acto que retirou e retirou a tinta até deixar ver a camada que lhe está subjacente, bordas borbulhantes de matéria que foi arrastada num ápice para os lados (à semelhança do gesto de abrir a Torá), zonas de impasto que sobreviveram à impiedosa faca ou que vieram curar o que lhe estava sob. Os relevos e os sulcos imiscuem-se com zonas brancas vazias de informação, como um vaso quebrado que foi reconstruído com os fragmentos existentes. As tonalidades são construídas por camadas e adquirem uma profundeza estimulante ao olhar. Já nas seis monotipias sobre papel apresentadas numa sala mais pequena, perde-se a densidade e a volúpia do óleo para se ganhar uma maior definição figurativa: um prédio modernista que faz de matriz lógica, um rectângulo sólido que encima a composição, números.
Edmond Brooks-Beckman, Shifting inscriptions, 2023. Óleo sobre tela, 80x100cm. © Edmond Brooks-Beckman / Cortesia Galeria Duarte Sequeira
Sente-se que são pinturas que se revolvem por dentro, autênticos antros que figuram conflitos interiores entre a razão e a intuição. Cada pintura é um quarto severo que se retrai e dilata. É aqui que o Tzimtzum habita. Segundo o artista, este conceito “surge como uma ferramenta para que a (sua) escuridão corporalmente enraizada possa ter espaço para eclodir e ser moldada - uma maneira de moldar sombras”. Encontrei um breve texto de José Tolentino Mendonça a propósito deste conceito, cuja conclusão passo a citar: “o tzimtzum obriga-nos a pensar num duplo sentido: por um lado, o seu significado é o de um exílio que se prova (e exílio quer dizer espaçamento, radical insegurança, esvaziamento de si); por outro, faz-nos compreender o espaçamento como possibilidade concedida à alteridade e a um efetivo (re)encontro com o outro”. [1] O outro, para Brooks-Beckman (e na sua relação com o meio da pintura), parece ser o seu lado-sombra, o outro-eu selvagem e feroz que “luta com a tela” e se debate com a sua resolução. As pinturas desta série constituem assim uma espécie de purga que, ao revelar a sombra, o tornam mais leve. Esta descoberta e aceitação (que pode ser também de índole religiosa) propõe um alargamento do ser, paradoxalmente por via de uma contração. Ela talvez nasça daquilo que fala Tolentino: revelar o que está por trás da superfície, a identidade que se anseia ocultar: a vulnerabilidade.
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Notas [1] José Tolentino de Mendonça, Tzimtzum, Revista Expresso, 06 Junho de 2020.
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