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ADRIANA MOLDERALDEBARAN CAÍDA POR TERRA![]() MNAC - MUSEU DO CHIADO Rua Serpa Pinto, 4 1200-444 Lisboa 13 MAR - 22 JUN 2025 ![]() ![]()
Aldebaran Caída por Terra sucedeu a Antares [1]. Ali, um segredo foi revelado numa “Cena Fulgor”. [2] Como Maria Gabriela Llansol, escrever para contar a história de uma personagem exterior a mim — representar—, não me dá prazer nem força. Ter uma experiência, não mediada pela crítica, enquanto essa dupla possibilidade de objectivar a subjetividade e inversamente subjectivar a objetividade, resgata-nos do estado de uma puerilidade senil; isto é, de uma tal inexperiência, segundo a escrevente, que decorre, diria, do vício (e do lucro) da representação do real — E não da vida enquanto força de realizar. Interessam-me as coisas que me acon-tecem, de tão vivas que estão. E as figuras da Adriana estão bem vivas…Ainda que, como refere, trabalhe com modelos mortos e que estejamos sempre à procura das coisas que já vimos. A minha chave para o aberto desta exposição: Da infância, uma imagem; a chegada à aldeia…Primeiro movimento: Correr para a fonte de granito coberta, alongar o corpo para o seu interior e reconhecer o rosto no reflexo sombrio sobre a água. Fitá-lo e atirar-lhe pedras. À noite, voltar para ver a constelação de mica — Sim Adriana, uma água escura, um “espelho negro”. Um “espelho negro" que ondula e distorce, mas que também cintila como as tuas (nossas) estrelas Antares e Aldebaran no céu noturno. Eis que logo à entrada também um corpo que se alonga para que lhe seja reconhecido um rosto. Trata-se de “A Cabeça no Armário”. Um desenho negro proporciona um corpo a esta cabeça que não é a minha nem um auto-retrato da Adriana. Será importante referir que esta foi uma visita gentilmente guiada; depois de atravessar Antares, temo experienciar tão despreparada e novamente o raio do infinito — o continuum de imagens, já que ‘a vida pode ser afinal a luta das imagens que não morrem’, parafraseando Jorge de Sena. As cabeças podem a qualquer momento ser cortadas. No contraplano da primeira figura, seguem-se duas cabeças sem corpo. São “duas guardiãs da exposição”; dois desenhos já existentes (“Primeira Cabeça” e “Segunda Cabeça”), segundo a artista, operados no sentido de poderem ser montados enquanto imagens em movimento, libertando-se no entanto do próprio dispositivo fílmico. São desenhos recortados de modo a serem eliminadas as arestas e portanto cujo contorno ondulante é de um movimento potencialmente infinito, como a serpentina que habita o imaginário de Antares — Gesto que é já a manifestação do seu próprio desejo de montar imagens em filme. “Mulher com espelho” reflete o irrefletido ou o desencontro de quem se deseja reflectido no que não é…O que só pode resultar em mais sombras: Desenhos, que se permitem ser pensados enquanto pinturas, na descoberta do verso pintado da tela moldada. O corpo no espaço, que entre-tanto desaparece, transforma-as então em esculturas; suspensas como mobiles pelas linhas dos outrora desenhos ou teias de aranha que parecem aparecer da sua própria atmosfera sombria — Territórios instáveis, como os materiais, do pastel de óleo à tinta-da-china; e, dos quais a Adriana foge, como refere, colocando todas estas figuras ainda mais em movimento. O Anjo roubado a Piero della Francesca instala-se com as suas Aias diante de um desenho amarelo — amarelo sem porquê — e que está próximo do “Desenho Escarlate”; porventura a própria temperatura, o vestígio do crepitar de estrelas que já não existem, em constelação com todas as figuras da sala que persistem. E o que insiste é bem diferente do que persiste. Ao trabalho que resulta da persistência é tantas vezes entregue a merecida coroa de louros. Diante das insistentes investidas de Apolo, Dafne vê-se forçada a uma radical metamorfose; transforma-se num loureiro, de modo a não mais ser reconhecida. Nesta exposição o seu loureiro dá frutos; os frutos coloridos da persistência das figuras no trabalho da Adriana; do espaço que lhes concede para que a chamem em chamas. As figuras do deus das artes e da ninfa em “Apolo & Dafne & (trinta) frutos” são uma apropriação da pintura de Piero de Pollaiuolo. Aqui, os braços então ramos da ninfa aparecem-me como os pulmões a partir dos quais o sopro reacende as imagens do seu passado. Os trinta frutos deslocaram-se das mesmas fotografias de cena que a artista usou no já longínquo momento em que iniciou os desenhos, entre 1996 e 2000. Estes são “desenhos rápidos” de cores vibrantes, suspensos, à espera de um grande sopro, que como tantos outros desta exposição adquirem uma dimensão escultórica. Diria que os desenhos dão corpo a instantes de suspensão; aos segundos em apneia próprios desses momentos fulgurantes em que os gestos de outros se cristalizam em e através de nós; “nós construtivos” [3] de cenas futuras de um passado que persiste pedindo-nos a continuidade da Vida. Cada uma destas figuras, garante no entanto o inacabado da unidade a que pertencem; o seu Corpo de Imagens. Da “Mulher Selvagem” destaca-se a sua mão com um estandarte, num outro desenho; estandarte esse roubado a outro pintor. Este é um desses seres mitológicos rudes cuja sexualidade livre poderia atrair como presas os mais despreparados viajantes para o interior da floresta. A sua condição espectral, como a das ninfas sobre as quais Paracelso discorre em seus escritos sobre alquimia, demanda o atravessamento humano para que a sua prol possa ter continuidade. Um enorme desenho negro suspenso torna-nos performers de um desses fantásticos mundos paralelos. Entre a “Mulher Selvagem” e o desenho negro há um percurso sonoro ativado pela nossa passagem (passamos no mundo e somos o mundo); o eco dessa tenebrosa floresta negra sem lugar conhecido. Escuta-se o rumorejar dos ramos de Dafne; o pulsar extático do nosso batimento cardíaco resulta no entanto aqui não de uma experiência de medo mas de puro e luminoso jogo. Também as emoções precisam das suas correntes de ar e metamorfoses…Como a Mulher, não mais precisamos de nos defender; trata-se apenas do som do papel tão bem conhecido pela Adriana, em cada desenho seu reerguido do chão, a cada sua passagem no atelier — o desenho rigoroso da sua consciência; da sua atenção ao mundo. Aprende-se com os temerários. Detenho-me com a Adriana diante da “Máscaras I” e “Máscara II”, ambas respetivamente com as suas sombras; “Sombra I” e “Sombra I” separadas dos seus corpos, mas não do nosso olhar; prerrogativa da qual não dispomos se não numa análise. Esclarece-me a artista que nos contos italianos as fadas são más; devoram as crianças e as máscaras — as bruxas — são as boas, quem presta auxílio. Máscaras porque são velhas — más caras —, têm o rosto envelhecido, moldado pela experiência como as telas desta exposição. As velhas têm a experiência, não padecem dessa outra puerilidade senil, a das fadas, que apenas se ocupam o que é superficial. As fadas como a superficialidade podem, surpreendentemente, nos devorar. Seguem-se “Os Meninos” e “Fuma”, dois fumadores inscritos num círculo vicioso — Lembro-me o quanto é bom fumar e experimento há muito o quanto é melhor ainda não fumar, como consequência de saber um pouco mais da grande falta e portanto do meu próprio desejo. Aqui, da comum necessidade de res-pi-rar. Uma pira com imagens espera-nos, são os recortes do mundo da Adriana, a partir dos quais os seus desenhos, pinturas e esculturas nascem…E renascem… Trata-se da peça vídeo com que esta exposição fecha se seguirmos um percurso linear. Estamos agora, confortavelmente sentados num sofá de pele, à boa maneira do arquétipo do signo de Touro, diante de fulgurantes figuras-fénices. Ou da estrela mais brilhante da Constelação de Touro — “Aldebaran Caída Por Terra”, a jeito de uma sessão de “Psicanálise do Fogo”...
O sonho caminha linearmente, esquecendo o percurso na corrida. O devaneio expande-se em estrela. Regressa ao centro para projectar novos raios. E precisamente o devaneio diante do lume, aquelas suaves divagações conscientes do bem-estar, é o devaneio mais naturalmente concentrado. [4]
É preciso mais do que nunca habitar a Terra e cair em si. Escutamos uma voz encantatória, a da Adriana, que nos conta a mancha de texto que envolve as imagens de revista que coleciona, “diante de um lume [participativo e portanto figural], [n]aquelas [suas] suaves divagações conscientes do bem-estar”…Dos rostos cinzentos das cinzas reencontram-se os segredos do Fogo.
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Madalena Folgado é formada em arquitetura, mas a sua abordagem de investigação fenomenólogica — o contrário do controlar e prever da prática de projeto em arquitetura — fê-la organicamente deslocar-se para contextos artísticos passíveis de acolher processualidades híbridas, constelares/ anacrónicas. Neste sentido, interessa-lhe a construção pela montagem — e também montagem em tempo real —, de espaços para reme-morar e re-membrar Corpos de Imagens enquanto Corpos de Afetos, na charneira entre o individual e o coletivo, de modo íntegro e intrincado — Do com-texto ao espaço físico; o Lugar enquanto combinação de memória e espaço, com potencial performativo emergente. O acaso como elemento por excelência da arte é o grande catalisador da sua prática híbrida.
Notas: [1] Exposição de Adriana Molder, com curadoria de Nuno Crespo, com lugar no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional — Galerias Municipais, patente de 07/02/2025 a 04/05/2025. [2] O texto de Maria Gabriela Llansol é feito de epifanias: ‘Figuras’, ‘nós construtivos’, ‘cenas fulgor’ são os nomes dados a essas fulgurâncias em que os seres ganham consistência e intensidade num determinado momento do contínuo do texto — António Guerreiro, “Na margem da língua, fora da literatura”, in Expresso, 6 de Abril de 1991. Entrevista republicada: Helena Vieira, Espaço Llansol (org.), “Caderno de Leituras — Seleção de artigos publicados na imprensa generalista portuguesa em torno de alguns livros de Maria Gabriela Llansol”, Lisboa, Mariposa Azul, Espaço Llansol, Setembro de 2011. [3] Maria Gabriela Llansol citada por António Guerreiro, op. cit, 6 de Abril de 1991. [4] Gaston Bachelard, Psicanálise do Fogo, Lisboa, Edições Litoral, 1989, p. 20.
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