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CINEMA ECOLÓGICO: ECOCRÍTICA, ABORDAGENS E EMOÇÕES NO CINE-ECO SEIA. PARTE II: COMPLEXIDADE: EXTREMISMO, EXPERIMENTALISMO E CUIDADO NAS RELAÇÕESINÊS FERREIRA-NORMAN2025-01-16
Na primeira parte desta reflexão – em síntese - falei muito de como uma parte do zeitgeist do Cine-Eco era sobre como a colonização da natureza é motivada pelo consumismo e este por sua vez, por uma desregulação emocional, quiçá em modo ‘pescadinha de rabo na boca’ causada pela destruição que impomos ao nosso habitat e consequentemente a nós próprios. Tal consumo vem da terra. A revista Nature publicou em 2020 um estudo [1] que concluiu que a Terra está no ponto de passagem para que a massa antropogénica ultrapasse a biomassa global. No Cine-Eco vimos ‘Bottlemen’, de Nemanja Vojinovic, que ganhou o prémio de Antropologia Ambiental, e a curta ‘Sumpah Serapah Sampah’, de Achmad Rezi Fahlevie, que nos mostraram através de montanhas estratosféricas, ou de rios onde não se vê a água, o impacto desta produção desenfreada que se traduz em poluição, em lixo. Mas é de algo muito mais próximo, e simultaneamente mais distante, que quatro filmes muito distintos nos falaram, e que eu vejo como um dos grandes catalisadores para o imaginário criativo e artístico. Dizem que sabemos mais sobre a lua do que sobre aquilo que está por debaixo dos nossos pés. O solo, é como se fosse a derme das placas tectónicas e estas é como se fossem os nossos ossos. E depois existe ainda o manto tectónico: um plasma de fogo, a energia viva que rebenta pelos vulcões e se materializa na superfície como lava. Preso na litologia do nosso planeta está ainda o petróleo, este líquido negro tão amado por uns e tão odiado por muitos outros, consequência do processo de compostagem dos dinossauros (e muitas outras coisas). Como se tem constatado, está a ser mesmo muito difícil a nossa sociedade, o nosso modo de vida, se desprender dos combustíveis fósseis. A revolução tecnológica chamada verde é enaltecida por muitos como a solução para todos os nossos problemas, mas o movimento de justiça climática questiona como é que com a continuação da mineração e da produção desenfreada se resolvem os problemas que temos. Não podemos substituir uma economia extractivista (petróleo) com outra (lítio), isso não é inovação, e muito menos ‘verde’. Mais recentemente ainda, está em causa o consumo de água e energético que a Inteligência Artificial usa. Dentro deste labirinto da mitigação de danos (uma mentalidade prescritiva e não preventiva) e do greenwashing, foi desenvolvido o filme de Vasco Monteiro ‘The Closing of a Refinery’. A 21 de Dezembro de 2020, a Galp anunciou o encerramento da refinaria de Matosinhos, onde pelo menos 150 trabalhadores [2] ficaram sem emprego. Todo o processo foi litigioso e a Galp, que alegava quebras de lucros por causa da pandemia e dificuldades em se adaptar à transição energética, planeia com a Câmara de Matosinhos construir uma cidade da inovação relacionada com ‘as energias do futuro’. Do ponto de vista de Vasco Monteiro, isto não passou tudo de uma grande operação de greenwashing, dado que as operações foram simplesmente trasladadas para Sines. Com solos contaminados que levarão décadas a serem regenerados, com toda a opacidade da situação e a complexidade social, económica e ambiental do que é desmontar uma refinaria, Monteiro viu aqui uma oportunidade de explorar o lado desumano da especulação. O argumentista-realizador no início entrevistou pessoas, mas foi com o Chat GPT que ele encontrou a forma mais adequada para contar uma ‘fantasia tecnológica’. A curta tem o formato de entrevista, que é bastante aliciante e prendeu-me ao ecrã; com uma sonoplastia sóbria, imaginei entrar num rabbit hole que aprofundava uma investigação. Na realidade, foi isso que Monteiro fez, mas em forma de fabulação ao experimentar com esta ferramenta que nos ilude, criando textos convincentes do ponto de vista da sua articulação e semântica, mas que na realidade, nos dá imensa informação falsa. Tecnicamente, esta informação falsa, se providenciada por um processador de texto como o Chat GPT o simplesmente é, chama-se alucinação. Pegando nesta característica, Monteiro fez uma curta que não só especula o futuro – a seu ver distopicamente – mas que mais ainda, nos desengana sobre o valor real que as tecnologias de massa nos podem trazer. O envolvimento da tecnologia de massas nesta curta, fez-me lembrar de um projeto de aflorestação - florestação de áreas que nunca previamente tinham tido árvores - que é o epítome do que é o greenwashing, mas mais gravemente, usa o discurso ecológico para fins colonialistas violentos: no deserto de Negev, o Jewish National Fund e a Israel Land Authority usaram a plantação de árvores como forma de expulsar Beduínos que vivem nestas terras desde sempre, e que tentam prová-lo desde 1970 [3]. Um projeto da Forensic Architecture verificou que os serviços globais de mapeamento como o Google, Yahoo, Bing e até mesmo o Open Street Map, retirou os povoamentos beduínos do mapa: ‘uma forma techno-profissional de violência’ [4]. Um complô onde tecnologia, desterritorialização e ecologia formam um trio distópico, que nos engana sobre a realidade histórica e cultural. Cancer Alley de Pamela Falkenberg e Jack Cochran é outra curta que também se foca nas refinarias, neste caso, nos Estados Unidos, no Louisiana. Com um estilo ‘oposto’ a The Closing of a Refinery que apresenta planos estáticos e algo longos ao bom estilo do cinema português, Falkenberg e Cochran usam colagens ágeis das paisagens industriais ao longo de 137 km junto do rio Mississípi, mostrando o impacto visual hiperbólico de um território que é considerado um dos mais poluídos dos EUA com 200 plantas de petroquímicos. Esta curta focou-se no problema humano das ‘zonas de sacrifício’ através de imagens e sonoplastia repletas de máquinas, entrosadas pela poesia de Lucy English. Um contraste bem-sucedido, que me deixou de respiração cortada. Estas zonas de sacrifício são criadas através da necropolítica adjacente ao movimento ‘Not In My BackYard’, onde comunidades de classe média (maioritariamente brancas) tem influência suficiente para doar a degradação ambiental a zonas onde as populações são pobres, e de outras etnias. Uma batalha que as Nações Unidas já denominaram racismo ambiental. Assim como ambas estas curtas foram denominadas documentário experimental, também o foi ‘Strata Incognita’ de Romea Muryn, Francisco Lobo, Amaia Sánchez-Velasco e Jorge Valiente Oriol, que valeu uma Menção Honrosa na categoria de Curtas e Médias Metragens Internacionais. Em ‘Strata Incognita’ experimental é um eufemismo! Este documentário é empolgante, dinâmico, científico, político, factual, analítico. Este documentário mostra a degradação dos solos através de uma abordagem que os realizadores descreveram como brechtiana, na qual usaram toda uma linguagem visual intensamente despersonalizada, e uma linguagem verbal intensamente repetitiva e analista. Vemos paisagens superficialmente desprovidas de vida, três ‘cientistas’ equipados com fatos da cabeça aos pés e mãos, ferramentas e medições... com estas cenas, foi criado um universo em que o foco era a análise do solo. Imagens de texturas da terra a uma escala macroscópica e microscópica num quadrado rígido sobrepostas às imagens da paisagem, preparavam-nos para o que viria no final, como se se abrisse uma janela para o que realmente está dentro do solo. E no final, veio sim uma osmose de imagens da vida microscópica dentro do solo, que ocupavam toda a tela do cinema. Esta curta foi uma viagem curta e intensa, porém eu senti-a bem longa ao mesmo tempo. No início, as vozes uníssonas descreviam o solo como alienígena, e conforme o filme passava e nos provia de um imaginário bem frio, calculista, paranoico até (por causa das vozes narrativas que insistiam em nos questionar se estávamos a prestar atenção), foram-nos dando a conhecer as várias dimensões do solo. A dimensão política, social e ambiental esteve muito presente no texto, com pitadas de jargão científico; visualmente, até os movimentos da presença humana eram estranhos e forçados, e ainda que conforme Brecht pretendia, me foi dada a oportunidade de me poder distanciar de emoções e analisar o assunto de forma objetiva ao longo da curta-metragem, o facto de me terem mostrado vida microscópica numa tela com três vezes o meu tamanho, envolvendo todo o meu campo ótico, quebrou completamente esse efeito no final do filme. A biodiversidade despoletou em mim a sensação de empatia imediatamente. Sei bem que sou suspeita, pois trabalho com a microvida no meu trabalho artístico, e que não são muitas as pessoas que se comovem a ver bichinhos que não se vêm a olho nu, no entanto, não pude deixar de sentir que no início do filme o solo era realmente um alienígena, mas que com o passar do tempo preenchido de informação o passei a conhecer, e que houve uma aproximação. Até porque no final do filme, o solo já não era enfatizado como outrado, mas sim como uma incógnita, uma escolha de vocabulário que, disseram os realizadores, se refere ao futuro da situação planetária. Sobre o solo e o futuro da situação não necessariamente planetária, mas lisboeta, e não em formato de documentário, mas de ficção, foi apresentado na competição de longas-metragens de língua portuguesa o drama ‘O melhor dos mundos’ de Rita Nunes como ficção científica. Confesso que, ainda que este filme preencha os requisitos necessários para ser categorizado como ficção científica (‘uma forma de ficção que lida principalmente com o impacto da ciência real ou imaginada sobre a sociedade ou indivíduos’ [5]) não o senti como tal. Poderei estar a ser influenciada pelos modelos e formatos anglo-saxónicos, pois na realidade foi a primeira vez que vi uma criação portuguesa deste género, mas esta longa-metragem para mim teve a tez de um drama cujo epicentro era a ciência. Não deixa de ser muito pertinente a sua presença no Cine-Eco; na realidade senti falta de mais ficção, ainda que os programadores me disseram que a ficção está a aumentar desde há alguns anos. A sua relevância é mesmo essa, a da especulação, a da imaginação, neste caso não tanto no âmbito dos factos científicos, estes bastante tangíveis e possíveis, mas sim dos impactos e tramas humanas em seu redor. A trama desenvolve-se à volta de tecnologia que permite prever sismos, e a divisão do grupo de cientistas encarregue de monitorizar os dados fornecidos por tal tecnologia, quando um cenário de terramoto se torna real. Há ainda um enredo amoroso entre os dois personagens principais que agrava a histeria do espectador. Não houve lasers a voarem entre espécies alienígenas - e ainda bem! -, no entanto, o argumento lembrou-me imenso da dinâmica de ‘The Mist’, uma adaptação da novela de Stephen King por Frank Darabont. Neste filme de monstros que só aparecem na reta final, tal como o caos só aparece na reta final de ‘O melhor dos mundos’, é toda a dinâmica social de como nós reagiremos em situações extremas que ambos os filmes exploram. De certa forma, não é ficção. O apocalipse é palpável nos dias de hoje com múltiplas preocupações existenciais: guerra, genocídio, colapso ambiental, colapso social e geracional. De momento, a nossa realidade já é bastante extremada, e consequentemente testemunhamos formas cada vez mais extremas de reagir a tal realidade. Dentro da questão dos solos e da mineração, em Portugal, pudemos assistir este dezembro a duas medidas que me parecem completamente distópicas. Com todas as crises sociais, habitacionais e ecológicas (nomeadamente a perda de habitat e de floresta) vimos uma proposta de lei aprovada para a flexibilização do território classificado como rústico ser transformado pelo PDM de cada municipalidade como cada qual veja necessário. Em vez de medidas para a recuperação da malha urbana que, ou perde carácter pela invasão de corporações de interesse imobiliário, ou se vai tornando devoluta, deixando centros urbanos inabitados (especialmente em pequenas cidades), incentiva-se mais destruição do espaço natural. Esta medida reflete o estado de histeria em que nós estamos. Uma mentalidade pequena, que vem de um sítio de precariedade, de ganância. Os revolucionários são aqueles que vêm a abundância, e que temos muito mais do que o suficiente para todos. Será que não há comités científicos no parlamento para gerir o território? Outra medida que foi aprovada pelo governo português, foi o despacho da secretária de Estado da Energia de Maria João Pereira [6], que deu luz verde para expropriar proprietários que se têm vindo a manifestar desde 2017 contra que a empresa britânica mineira Savannah, para possa fazer exploração de lítio numa zona que é considerada Património Mundial Agrícola, o Barroso. O interesse público é um conceito muito opaco, e convenientemente, muito versátil. Um conceito que permite um governo ir contra a lei que ele próprio impõe: por exemplo com a licença para abate de mais de mil sobreiros (espécie protegida) em Morgável, Sines, para a construção de uma central fotovoltaica. Não há terrenos sem árvores que se possam usar? Não há telhados suficientes no nosso país que se possam alugar e assim criar uma forma de circulação de capital que beneficie o zé povinho? Porquê esta mentalidade de destruição fulminante, completamente descabida sem sentido? Só pode ser o pânico... Tal ritmo vertiginoso dentro da temática geológica desdobrou-se também na curta-metragem |fAdO guArdUnhA| de Pushkhy, que se enquadrou dentro do projeto ‘Arts 4 People and Earth’ e se destacou com uma menção honrosa na Competição Panorama Regional. Esta curta apresentou uma veia forte de videoarte, e para além das imagens que destacavam ora a beleza da serra da Gardunha (note-se que Guardunha – como está no título - é a sua origem etimológica árabe, disse-me o realizador), ora vestígios de uma exploração de volfrâmio, o destaque desta curta é o texto que nos nutre com uma poesia ‘sem papas na língua’, mas com muito refinamento lírico e científico, e uma sensibilidade abundante. As imagens compostas por serra, peixes, céus coloridos em RGB, olhares das suas habitantes, mapas estratigráficos, equipamento em desuso, água poluída, muros de pedra antigos e uma casa devoluta com um pinheiro lá dentro, passam a um ritmo adequado. É no entanto, a narração que nos enche de preocupação. Ela relata-nos primeiramente um estado em que a(s) serra(s) simplesmente existe(m), mas conforme nos aproximamos do Antropoceno, o ritmo e o nexo das frases tornam-se cada vez mais complexos, mais rápidos e consequentemente num espelho fiel da nossa era. Esta curta tem um caráter artístico, mais plástico, que Pushkhy não esconde ao revelar-me que como um dos seus mais recentes trabalhos apresentado também em Outubro no Teatro Municipal da Guarda, |O lObO mAu|, aproxima-se do formato livro com imagens em movimento. A mim comove-me esta intersecção de medias, e especialmente relativamente ao formato livro, que pode ser pensado de várias formas. A relação entre livro e cinema não tem de nos cingir à habitual conversão de um livro para o média filme ou cinema, em que há todo um processo de tradução plástica e narrativa, de uma prosa para um guião. Em |fAdO guArdUnhA| o processo de tradução não foi um processo de tradução, mas sim de libertação. Poderíamos dizer que |fAdO guArdUnhA| é um filme mais experimental. Filipa Rosário definiu em entrevista que ‘a curta é um território de experimentação por excelência, é um laboratório. A curta permite milagres e inventividade, a materialização da sua potência.’ [7] Por outro lado, Bárbara Bergamaschi, júri da Competição de Longas, Curtas e Médias Metragens em Língua Portuguesa, que fala do filme experimental com muita paixão, disse-me que por vezes a pobreza dos filmes pode estar em buscar o momento de catarse provinda da tragédia de Aristóteles: as ‘3 viradas do arco dramático’ podem ser um falso amigo, pois inibem a inventividade poética, novas linguagens plásticas, e não desafiam estereótipos, e que podem estar até relacionados com um espirito colonialista. Em ‘Noturno para uma floresta’ de Catarina Vasconcelos, todos estes pontos – e muitos outros! – foram questionados. Entre ‘Noturno para uma floresta’ e ‘Strata Incognita’ é-me difícil escolher quem levaria o prémio vencedor; no festival, ambas valeram Menções Honrosas pelo menos, mas foram sem dúvida as curtas-metragens que achei mais atuais quer do ponto de vista estético e plástico, quer do ponto de vista conceptual e temático. ‘Noturno para uma floresta’ foi o único filme no festival [8] que abertamente explorou diálogos sobre o feminismo, e mais ainda, dentro de um discurso do mundo mais-do-que-humano. Engraçado, que mesmo sendo um filme experimental, quiçá até avant-guarde, manteve um arco dramático de três fases. Abriu com uma introdução que estabeleceu o contexto da trama dentro do convento de Santa Cruz dos Monges Carmelitas Descalços no Bussaco, e desde logo denunciou que as paredes que lhe foram conferidas, foram erguidas para mulheres não passarem para a mata, para mulheres não entrarem nas ermidas. Estes templos de meditação e comunhão com a natureza e o divino foram construídos pelos próprios monges; mas logo a trama se desenrola e verificamos na segunda parte do arco, que as mulheres penetraram tal muro de 5 km ao se encarnarem em plantas, e o que vemos nesta parte é um diálogo com laivos estéticos e auditivos de ficção científica entre estas plantas, ou seja entre estas mulheres. O diálogo é todo ele especulativo de como e porque é que as mulheres (de carne e osso) não podem ter acesso a este mundo super natural [9]. No alvoroço da discussão, vem a cabo o nome de Josefa de Óbidos, e logo percebemos, no terceiro momento, que há todo um enredo em volta da exposição do peito de Maria que dá de mamar a Jesus numa das suas pinturas. Pintura esta, que tem por si só um mistério muito subtilmente retratado, sendo a pintura dada por queimada neste filme, e como desaparecida na realidade do convento. O homem ocidental, no masculino, tem sido o ator principal no palco do distanciamento entre humanos e natureza, e isso verifica-se desde a criação da Bíblia e a separação de Adão e Eva do Jardim do Éden. Deus – representado como um homem branco (até porque o homem foi criado à sua semelhança e imagem) - define desde a génese que o homem deve conquistar a terra e os seus animais [10]. Com o ego cheio, em especial os homens que estão mais perto d’Ele, ordenam quem pode ter acesso à natureza ou não. E aqui verifica-se um legado do patriarcado que Alice Azevedo tão claramente descreve em parceria com o Teatro Municipal do Porto: ‘eu penso na gramática como uma forma de organizar o mundo, (...) mas há duas formas de pensar em gramática: podemos pensar numa gramática que descreve como é que uma língua funciona, como é que uma frase se organiza, como é que um verbo se conjuga (...). Ou podemos prescrever a sua utilização, dizer como é que se faz, e que é daquela forma e não de outra.’ [11] Azevedo sugere que a gramática do nosso mundo atual é prescrita pelo ‘governo do pai’, e que essa prescrição é feita não só para quem está hierarquicamente abaixo, mas para com os próprios homens também. Em ‘Noturno para uma floresta’ há uma subversão da gramática de Aristóteles que mencionei. Há sim, um sentido de Apoteose, especialmente quando percebemos que o filme quis revelar o quadro de Josefa de Óbidos como uma das personagens principais, conectando o mise-en-scène inicial da natureza morta de abertura do filme com a pintura no final. No entanto, a organização sintáxica das imagens, até da sonoplastia e das vozes, é desfasada dos ritmos espectáveis de um compasso ternário, e o ritmo sente-se mais como um 7/4. Dentro do percurso ternário da trama, existem tantos momentos estasiados em contraste com outros contemplativos, que é como se a gramática das frases tivesse sido chocalhada, e se tivessem reordenado por guias que contam a história de maneira descritiva, não prescritiva, contada do lado outrora silencioso, agora conspícuo. A forma como as plantas falam, é um grande exemplo desse distúrbio: em ‘Flow’ filme de animação realizado por Gints Zilbalodis da Letónia, vemos um gato tornar-se amigo de uma capivara, um cão, uma suricata, e uma ave, e ainda que não haja diálogo de palavras, a antropomorfização dos personagens é muito clara, eles agarram cordas, expressam sentimentos que nós humanos projetamos; em ‘Noturno para uma floresta’ são auras, ou luzes, de cores diferentes que identificam quando cada planta está a falar, e para o espectador, demora alguns segundos (até mesmo minutos) para nos sincronizarmos com quem é que está a falar, pois a pontuação plástica das frases audiovisuais, não é a prescrita por modelos padronizados do cinema. Para mim, este momento, foi um dos momentos mais fortes do filme, e mais (eco)feministas. O feminismo é um debate de ideais que a ecologia traduz em factos. Ambos estes campos defendem que não há hierarquias, mas que as igualdades e desigualdades são para serem vistas de formas intersecionais e multifuncionais. O feminismo é matéria ecológica, e estranho não ver mais filmes neste festival que ‘de caras’ o tragam, como fez Vasconcelos. Dentro dos feminismos e eco feminismos, há muitos debates e sub-debates, mas um que me interessa e é bastante fundamental a todo o discurso são as distinções essencialistas e construtivistas. Sara Castelo Branco define com muita concisão: ‘(...) As linhas mediais que orientam o ecofeminismo apoiam-se particularmente em duas correntes — o ecofeminismo essencialista e o ecofeminismo construtivista. O primeiro opera sob um pensamento alicerçado numa suposta essência feminina irredutível, que considera a mulher ontologicamente mais vocacionada para a preservação da natureza, considerando os seus atributos intrínsecos ligados à geração da vida ou às práticas de cuidado. Numa orientação inversa, o segundo recusa esta naturalização das características feministas para estabelecer a ideia de que os conceitos de género e de natureza são construídos em termos históricos e sociais.’ [12] O que me interessa neste debate, não é tanto a separação inerente a uma taxonomia do discurso (pois na realidade eu até acho que o ecofeminismo essencialista não é incompatível com o construtivista e vice-versa, debate que terá de ficar para outro artigo), mas sim a questão das práticas de geração de vida e de cuidado. Construtivista ou essencialista, o que me interessa é que todos - homens, mulheres, crianças, adolescentes e até anciãos - se interessem por cuidar pela vida. E se nos focarmos na questão do cuidado, logo veremos que essencialista ou não, o cuidar tem muitas faces, todas capazes de nos servirem e beneficiarem. Há sempre alguém que cuida de nós, de uma forma ou de outra, melhor ou pior, em partes ou num todo. Seria muito bonito eu agora dizer que cuidar é um privilégio, uma forma de autoconhecimento, uma alegria, um dar sem receber, romantizando esta questão, no entanto, partilho das preocupações de Catarina Rosendo que, ‘com demasiada frequência, se tem pensado a prática do cuidar a partir do estrito campo da teoria, o que considero ser, afinal, uma patologia bem contemporânea à espera de ser diagnosticada e tratada.’ [13] Um animal de estimação, um parente, um filho, um jardim. ‘De todas as nossas indústrias do cuidado, o jardim é o que pede mais trabalho. (...) Porque nenhumas d[as suas] relações existe sem a outra, é mais fácil pensar que estamos todos em acordo com o jardim, que ele é a assembleia, a substância e o espirito do nosso contrato’ [14] dizem Catarina Leitão e José Roseira em ‘O terceiro corpo’. No jardim, o espaço exterior ampara a nossa interação com o mundo mais-do-que-humano, reafirma-se ‘a substância e o espírito do nosso contrato’ com a vida. O terceiro corpo a que Leitão e Roseira se referem, na minha interpretação, é mesmo esse contrato que temos com a vida, um contrato cuja primeira cláusula é o cuidado: desde o primeiro momento, que fomos cuidados pelos nossos pais, até ao momento em que temos de cuidar de nós próprios, da nossa sobrevivência. No entanto, este cuidar de nós pode ser completamente distorcido – e principalmente pela máquina capitalista – ao pensarmos que cuidar de nós existe num vaco de cuidado, e que não precisamos de cuidar das relações que temos na vida. As relações estão no âmago da complexidade e beleza da nossa existência. No filme vencedor do Grande Prémio Ambiente, ‘Fauna’ de Pau Faus, presenciamos uma rede complexa de prestadores de cuidados, filmada com enorme precisão. Um pastor, cuida do seu gado. Uma esposa, cuida do seu pastor. Um esposo cuida da sua esposa. Um médico cuida do pastor. Um laboratório de virologia, cuida da sociedade. O elo fraco nesta corrente, é que a metodologia para o laboratório cuidar da sociedade, consiste em torturar animais ao infetá-los com a doença. Ainda assim, vê-se um lampejo de afeto entre os cientistas e os animais, algo que aumenta a complexidade da tensão presente no filme todo. Não é uma tensão óbvia, mas sim uma tensão documental. Há uma genialidade na forma híper-equilibrada de como este documentário foi editado e como nos leva a perceber que temos de ‘persistir com o problema’ (Haraway). O debate de matar para sobreviver é tão velho como o tempo. É inseparável da nossa existência. Quando e como podemos defender matar para cuidar? Quando e como devemos cuidar para não matar? Quem cuida de um jardim, sabe perfeitamente a dor que é ver meio Portugal a arder, ouvimos as árvores crestar e é como se fossem os cacos de porcelana do nosso coração a caírem no chão. Quem cuida de um jardim, sente a angústia morosa de um derrame de petróleo. Quem cuida de uma filha, tem um pronome possessivo que a descreve, a minha filha. Esta questão de propriedade (privada) estende a mentalidade capitalista ao sangue do ‘nosso’ sangue. Uma filha não é nossa, é do mundo, e das relações que poderá ter. Quem é pai é simplesmente a primeira relação com sua filha. Cuidar de um filho não é a mesma coisa que cuidar de um parente em vias de morrer (Rosendo (2020), p.21). Cuidar de um cordeiro, deixando-o viver feliz em boas relações com o jardim e os seus vizinhos (Leitão e Roseira (2020), p.47), não é a mesma coisa que o infetar com covid-19 para estudar os níveis de imunidade de uma vacina, castrando as suas relações com o mundo e consigo próprio. Um estudo de 80 anos da Universidade de Harvard concluiu que: ‘a solidão mata. Ligações sociais são tão importantes para a nossa saúde a longo-termo, como a nossa dieta ou exercício’. [15] Devemos cuidar para ligar, para conectar, só assim a bola de neve virtuosa pode crescer. O que o filme ‘Fauna’ nos mostrou, é que há situações muito complexas onde não é assim tão simples discernir o que e quem estamos a ligar. E questiona sobretudo, se estamos a agir de um lugar de sobrevivência ou de hegemonia. Concluo esta extensa reflexão, com uma reflexão semi-apórica, no sentido em que a nossa sobrevivência, e a de todos os seres vivos, implica a morte de outros seres vivos. Não nos podemos livrar desta condição, que é o ciclo da vida e é muito presente no mundo mais-do-que-humano em coisas tão subtis como as estações do ano por exemplo. Mas será essa consciência – de que a morte faz parte do ciclo - razão para pânico? Será isso razão para a chacina? Quando falo de morte, estou também a fazer uma analogia à destruição do planeta. Quer-me parecer que estamos em modo ‘perdido por um, perdido por mil’, o exagero. Sugiro que voltemos a encontrar um equilíbrio. Os meus votos para este novo ciclo gregoriano, é que todos encontrem algo ou alguém com quem praticar o cuidado. Será com certeza um antidoto para a desregulação emocional contemporânea, uma de possessividade, egoísmo e fanatismo materialista auto gratificante, que terá repercussões reais, práticas. A transformação do sentimento de culpa que carregamos por sabermos qual o nosso papel no colapso ambiental que o Cine-Eco tão amplamente mostrou, é urgente. É urgente transformar as nossas relações com os seres vivos, em relações que sejam simultaneamente anti-hierárquicas, e sem pudor da sua funcionalidade. No mundo mais-do-que-humano vemos muitas redes de comunicação, que são prova de que as relações são a sua fundação. É dentro desse espectro que nos falta admitir que há inteligência emocional
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[1] Elhacham, E., Ben-Uri, L., Grozovski, J. et al. Global human-made mass exceeds all living biomass. Nature 588, 442–444 (2020). |