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DANÇA ENTRE MUNDOS MATERIAIS, CULTURAIS E ETÉREOS NA EXPOSIÇÃO PORTALS![]() INÊS FERREIRA-NORMAN2025-02-19![]()
Se eu um dia vestisse uma obra de arte No meu kimono voador, O portal é espaçoso
Sobre a exposição ‘Portals’ A grande maioria das exposições que visitamos são sempre melhores ao vivo do que por imagens. Mas depois há aquelas exposições que ao vermos as imagens ficamos imediatamente com vontade de estar presente perante a obra, e que depois de visitarmos, a sensação com que ficamos é de que algo mudou, não sabemos bem o quê, mas algo mudou. Já desde os primeiros dias da minha escrita que defendo que a arte ensopa um certo vudu que os artistas jorram na obra, e a exposição ‘Portals’ de Laleh Khorramian e Alia Farid com curadoria de Margarida Mendes na Galeria Francisco Fino que esteve patente entre Dezembro e Janeiro, é um caso em que tal vudu transbordou e me molhou. A estrutura da galeria, o edifício, possibilita imaginarmos que esta foi feita de propósito para a obra de Laleh Khorramian, sendo que os seus tetos altos e fisionomia pontiaguda, protagonizaram a verticalidade de toda a exposição. Senti que estava numa catedral minimalista gótica, e que havia muita intenção para que o trabalho artístico me elevasse. A obra de Alia Farid, omnipresente através da sublime música árabe, ecoou nas naves da galeria e rematou toda a atmosfera, transportando-me para um local de encontros áuricos, em que o individual e o coletivo se sentiam ao mesmo tempo, em harmonia, sem interrupções. No trabalho de Khorramian, vemos uma tradição familiar têxtil muito evidente quer através da sua técnica, quer através das escolhas de tecidos e efeitos fabris e suturais. Pregas sem bainhas escolhidas deliberadamente, pespontos expostos, bainhas perfeitas, duplas costuras para dar estrutura às composições, máscaras debruadas, todo o seu trabalho de costura é muito intencional do ponto de vista técnico, no entanto, não nos dá essa sensação quando vemos as peças, pois estas respiram uma leveza orgânica. Como um balão de ar quente que me puxa para cima. Algumas das peças que vimos nesta exposição são parte de uma obra intitulada ‘Myth Maker’. Este título, quis-me parecer, traduz-se na obra artística como um mito autobiográfico. Com as primeiras obras que vi (She is Not One of Us, She is Home, Wonder Wonder, Anima), comovi-me, pois parecia que estava a ver uma radiografia da alma da artista, composta pelas suas experiências emocionais, interiores. Nas obras seguintes (Guardian of Tulips, Infinity Face in the Company of Others, Egg Rig), vi um sentido coletivo, em que criaturas participavam na vida do jardim. No entanto todas estas criaturas que conheci, ainda que espectrais, tinham a tez das sedas, camadas de tecido sobrepostas, buracos que funcionam como máscaras que escondem coisas para não serem vistas, remetendo-me para O Jardim das Delícias Terrenas (1510) de Hieronymous Bosch. The Bones in The Garden, o painel à entrada da galeria, aludia à estratificação da terra, mas as suas cores emanavam um conforto que só o êxtase pode entregar. Nesta combinação telúrica e cosmológica vislumbrei até algumas arcanas maiores do baralho de Tarot, que não se impunham, simplesmente espiavam a minha curiosidade.
Laleh Khorramian, The Bones in the Garden. Galeria Francisco Fino. © carbonara.st
Vemos uma forma preta misteriosa habitar as telas, e também a negro, mãos que a mim me sugerem a delicadeza da pintura Flamenga do século XVII, que aliado à variedade de motivos orientais denuncia Laleh como um sucesso da diáspora. Porque digo isto? Porque penso que uma pessoa é bem-sucedida numa diáspora quando o seu poder criativo sintetiza e integra origem e destinos de forma poderosa, incontrita, elevando o trabalho e os seus espectadores com ele. Há uma carga muito feminina nestas composições que evocam o kimono como forma de arte, e nos quais vejo thangkas compostas por órgãos internos (foi nos órgãos que vi o feminino e curioso que na representação do corpo é que vi a alma), ou múltiplos gohonzons desconstruídos. Mas vejo também a poesia precisa dos jardins persas e os brocados e sedas de todo o oriente. Laleh nascida em Teerão, retrata uma arte verdadeiramente Nova Iorquina, onde o melting pot (caldeirão de culturas) vibra, pois ouço diferentes linguagens, cheiro culinárias distintas e presenças heterogéneas no seu trabalho, no entanto, tal como Ali Meghdadi intitula um ensaio sobre o seu trabalho de Synecdoche, também eu vi na obra de Khorramian o heterogêneo tornar-se homogêneo. Sub e conscientemente, a verticalidade da exposição influenciou a minha experiência da obra; mas foram as cores, a palete dos amarelos, dos cor-de-rosa e azuis mimosa que me transportaram para o espaço unificado entre o céu e a terra. Inserida num arco iris, sentindo o efeito prismático entre a luz e a os elementos do jardim, a sua obra transmitiu-me a tranquilidade do tempo a passar. Alguns dos títulos das obras de Khorramian despertam-nos para uma apreciação temporal, aquele momento de suspensão, transitório como o arco-íris, transitório como a função de um portal. Um estado de espírito não perene, que ao mesmo tempo só se consegue atingir através do acesso ao infinito. De certa forma, esses momentos, por mais que manifestamente em movimento, devido à sua unicidade são atemporais.
Laleh Khorramian, Wing Wing Bishop. Exposição PORTALS, Galeria Francisco Fino. © carbonara.st
Luísa Santos, na sua crítica à exposição, refere que no diálogo entre a obra de Khorramian e de Farid tal aspeto quase atemporal se manifesta na obra de Laleh como uma ‘espécie de alucinação que nos leva simultaneamente ao passado e ao futuro’, e que na obra de Alia, este esfumaçado é provocado pela ausência de indicadores temporais ou locais, e que por se focar em tradições e rituais do passado nos oferece um ‘caminho para imaginar outras realidades’. O que o trabalho de Farid me trouxe não foi atemporalidade, mas pelo contrário, a questão do presente do ritual. As tradições podem ser do passado, mas se continuam a ser performadas, é porque também são do presente. A sua materialização ancorou-me. No presente, há uma questão taxonómica e linguística relativamente a rituais, cerimónias, celebrações e performances, que implica o discernimento de como estas são participadas e recebidas pelas suas comunidades. O reconhecimento de uma dimensão espiritual e/ou divina da nossa existência e por consequência a sua integração no nosso trabalho, é frequentemente rejeitado por uma variedade de círculos, famosamente o científico, mas também o artístico. Foram Tracey Bashkoff e David Horowitz que com a exposição (de) Hilma af Klint: Paintings for the Future no Guggenheim em Nova Iorque em 2019 abriram e trasladaram a caixa de pandora das mulheres artistas que trabalham com o mundo espectral para o mundo da arte institucional e comercial. De seguida, veio a pandemia, e com ela oportunidades para as pessoas se ligarem a causas menos materialistas nas suas vidas. Mas foi em 2023, quando o mundo já se provia da normalidade do business as usual, que Jennifer Higgie, editora da Frieze, publicou ‘The Other side: A Journey into Women, Art and the Spirit World’ e Caitlin Haskell e Teresa Arq organizaram a exposição Remedios Varo: Science-Fictions no Art Institute of Chicago, que a temática da espiritualidade catapultou para o mainstream artístico e de repente se começaram a ver tais exposições com muito mais frequência e abertura, pois estas instituições conferiram uma certa licença para esta tendência. E de repente – tal como com a temática ambiental – artistas que se distanciavam de discussões metafísicas, começam a ver textos de sala ou de obra descreverem seus trabalhos com palavras como mitologias, mística, sagrado, rituais, criaturas mais-do-que-humanas, o espectral, sem que o trabalho tenha originado de tal ponto. Este é um problema do mundo do consumo ávido de informação no qual vivemos, em que tendências são reproduzidas em série e sem sentido. Não é o caso desta exposição, mas é um problema de genuinidade e integridade da cultura ocidental. Penso que pode haver um trauma abraâmico na sociedade laica das culturas ocidentais em abraçar a divindade, no sentido em que há um medo inerente em discernir entre o que são questões de práticas religiosas institucionais que por serem dogmáticas antecipam a perda de autonomia, e as práticas de ligação ao todo que nos rodeia, estas que nada tem que ver com doutrinas. Penso que existe dificuldade em caracterizar instituições que são constituídas por humanos (historicamente homens na sua grande maioria) imperfeitos, de forma que se possa extrapolar valor, por causa do seu percurso histórico. Falo especificamente do que foi a guerra santa, a inquisição, do envolvimento da igreja católica na escravidão, no processo de eliminação indígena, na pedofilia, assim como o sionismo é colonialista e genocida, e os direitos das mulheres (humanos!) no islamismo criminosos e inexistentes. O divino nada tem que ver com esta administração pútrida da matéria divina. A matéria divina materializa-se culturalmente, mas não é cultural. A máquina capitalista tudo engole, confunde-se o que é autonomia com as características preferidas do capitalismo, o individualismo, o segregacionismo, a separação das partes. Muitas das materializações de diversas espiritualidades têm vindo a desenvolver um sentido secular, e isso dá-se primariamente devido à apropriação cultural que sofrem, guiada por uma vontade de capitalizar as práticas. A yoga por exemplo, é uma prática que na sua vertente ancestral não se distingue de uma prática espiritual, mas que os ocidentais desconstruíram enquanto atividade física para poder monetizar os seus benefícios. Nikita Desai, professora e ativista pela prática de yoga com autenticidade, argumenta que a hipersexualização e comodificação da yoga não só é desrespeitadora das tradições em si, mas como também em termos de representação das pessoas que herdaram a yoga como prática – completa, que inclui a prática espiritual. A yoga não são só posturas de corpo, mas sim um espaço que se cria para a conexão entre matéria, cosmos e a dissolução do ego, ou seja, o reconhecimento e nutrição do divino. Esta conexão é completamente oposta ao sentido de individualismo e vaidade que a yoga ocidental vende; no entanto é feita de forma autónoma, não é um deus que faz o trabalho por nós. Somos nós que temos de fazer o trabalho de nos ligarmos ao divino que está em nós e nos rodeia. Já andamos escravizados pelo sistema de produção e alienação desenfreada do capitalismo, é compreensível – mas funesto – que descuremos trabalhar a nossa conexão com os outros. É mais fácil culpar um só deus (e o que os homens têm feito com a ideia de deus) do que ter a disciplina de trabalhar com uma multiplicidade e complexidade de relações que temos com o todo que nos é visível e invisível. A própria Alia Farid comenta sobre esta temática no contexto de Qeshm, onde filmou At the Time of the Ebb (2019): ‘esforços para ampliar o turismo trivializaram práticas como as performances dos pescadores. Pode-se ver isso também no Carnaval Caribenho, como a burocracia e patrocínios sem escrúpulos são pejorativos para a autenticidade de tais práticas.’ At the Time of the Ebb, ‘explora as tensões entre fronteiras coloniais, recursos e movimento, através de um ritual do solstício de verão, quando os pescadores jejuam e prestam agradecimento à natureza pela sua generosidade’. Eu fiquei com a sensação de que este filme me mostrava três eventos, e que Farid não procurava uma ausência de indicadores locais; antes pelo contrário, pois escolheu Qeshm muito conscientemente: ‘eu também escolhi Qeshm porque estou interessada em como a urbanização afeta a aspiração das comunidades que estão perto de grandes cidades o suficiente para serem influenciadas por elas, mas, no entanto, longe o suficiente para continuarem a viver da sua própria maneira.’ Farid ‘insiste na diversidade da experiência da vida contemporânea’ e neste filme a expressão cultural identificada é o festival Nowruz, identificado geograficamente na folha de sala da exposição como ‘Sharjah, no ponto nos Emirados Árabes Unidos mais próximo do Irão’ [1]. As expressões espirituais que estão enraizadas no passado têm uma expressão cultural, e estas são um indicador espacial também, sendo que o contínuo espaço-tempo não é possível se desintegrar da nossa experiência telúrica (Tyson Yunkaporta). Mais ainda, afirma que o seu trabalho é um esforço em tornar visíveis práticas culturais diversas no contexto em que a lógica ocidental (o capitalismo) aliado ao fundamentalismo religioso se apodera de, e oblitera, práticas nicho, o que no contexto do globalismo se pode inferir ser uma prática artística de valorização do local, até mesmo site-specific.
Alia Farid, At the Time of the Ebb, na Galeria Francisco Fino. Fotografias da projecção por Inês Ferreira-Norman
Uma das características do ato cerimonial – que hoje em dia se começa a perder – é a questão do traje, dos amuletos, dos acessórios sagrados. Uma performance – e aqui guio-me pela minha experiência enquanto artista performática – é um ato de expressão, e sobretudo um presente, tendo este presente um duplo significado. É um presente enquanto dádiva, algo que quero dar ao mundo, uma energia que precisa de ser iterada, mas também um presente no sentido em que me faz focar no momento que estou a viver e nada mais, uma espécie de meditação. Rituais têm uma dimensão parecida com a de cerimónia, mas podem também ser mais trivializados, sem uma dimensão honorária. Em comparação com uma cerimónia, também diferem na sua frequência, um ritual é algo que implicitamente podemos fazer repetidamente, e uma cerimónia é algo mais único, sendo que um ritual também pode ser feito só uma vez, enquanto uma cerimónia não é vista como algo que fazemos com frequência (a não ser que estejamos a falar de quem oficia as cerimónias claro). Há também a questão da privacidade, vejo um ritual como algo mais privado do que uma cerimónia, esta pública, como se fosse uma declaração, e o ritual mais imbuído de intenção. Porém, muitos povos indígenas afirmam que um ritual ou cerimónia nunca é uma performance, pois uma performance não é real, e é comparável com o teatro, pois lhe falta a dimensão da intenção e é apenas entretenimento (podemos argumentar que entretenimento é por si só uma intenção). No entanto, temos também Marina Abramovich, apoteose da arte da performance, que distingue performance de artes performativas, porque a performance é real e não interpretativa. O que é real? Na minha interpretação, todos os exemplos que Farid mostra, as mulheres, o homem e o grupo na praia, tratam de forma híbrida todas estas abordagens de celebração, de expressão da existência humana contextualizada num mundo com dimensões visíveis e invisíveis. E o invisível, só porque é invisível, não deixa de ser real, e com isso até a ciência concorda. Debate quais os limites e possibilidades, mas, o invisível também é real. A própria arte e os artistas são repletos de rituais, de cerimónias e performances. Todas estas expressões podem ter uma dimensão apenas laica. Mas há também circunstâncias em que não o são. A exposição ‘Portals’ disse há pouco, molhou-me. De certa forma até literalmente pois soltei lágrimas de alegria dentro da galeria. Estava muito feliz, muito feliz por ver como é que duas abordagens sobre a cultura do que é a procura do significado da nossa existência se complementam tão eminentemente, e senti o que é a arte na sua mais exímia plenitude. O portal desta exposição mediava dois espaços: um que se materializava em objetos, mas com uma alma etérea, um retrato da viagem da vida no seu arco; e outro com uma materialidade reduzida (um ficheiro e um ecrã), mas focado na especificidade de como as forças superiores se materializam em locais e momentos da humanidade na terra. Uma dança fluída, como um líquido vuduesco, que entre os mundos a sintetiza como una.
Notas [1] Citações da folha de sala da exposição. |