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QUANDO A EPISTEMOLOGIA NÃO PRECISA DE TAXONOMIA: AFTER SMOKE AND MIRRORS E A EPISTEMOLOGIA RELACIONAL![]() INÊS FERREIRA-NORMAN2025-05-31![]()
Como fazer para (sobre)vivermos neste planeta? Como adquirimos a capacidade de navegar um corpo, um leque de relações e o imponente meio ambiente? Como discernir o conhecimento? É necessário saber que/se sabemos? Numa abordagem ocidental, separa-se o todo – o conhecimento - em pequenos pedaços e chegamos ao que é o conceito, como célula individual do que é o entendimento; no entanto, por mais que se individualize, as nuances próprias de cada conceito, as suas características, são o indicador de diferentes conexões e consequentemente significados. Distinta desta abordagem, é, por exemplo, a dos povos que vivem nos montes de Putumayo na Colômbia, que entendem o conhecimento como uma experiência transmitida pela bebida yagé, feita de uma trepadeira que segundo a sua mitologia, foi um cabelo que deus plantou e que se transformou nela. O que é muito mais interessante neste mito da criação do conhecimento é que quando deus vê os índios embriagados de yagé, ele próprio quer tomar a bebida e quando lhe é dado a conhecer o conhecimento ‘ele tremia, vomitava, defecava, e chorava desalmadamente, comovido por causa das coisas maravilhosas que tinha visto. Na manhã seguinte declarou ‘É verdade o que estes Índios dizem. A pessoa que toma isto sofre. Mas essa pessoa é distinta. É assim que aprendemos, através do sofrimento’’. [2] O que para mim é a distinção interessante é que, nesta cosmologia, deus é uma relação horizontal e não hierárquica, não é um ser superior que possui todo o conhecimento. Deus é uma força criadora, e não necessariamente um ser superior em conhecimento em relação ao homem: é a planta que tem tal conhecimento, em contraste com o mito bíblico em que a árvore do conhecimento é posta no jardim do Éden como um artifício de má-fé. A tentação de o homem ser como deus, omni-sapiens. Em ‘As origens da Linguagem’, James Hurford descreve o homo erectus como o primeiro homem a viver em cooperação, tendo a Universidade de Southampton datado este evento a 1 500 000 a.C.E. (antes da Era Comum). É fácil inferir (e ênfase em inferir por oposição a concluir) que para tal seria necessária uma comunicação mais avançada. Também podemos pensar que a própria colaboração exige o desenvolvimento da linguagem. Se olharmos para o resto da natureza, observamos que espécies bem antigas que ainda hoje existem proliferam e continuam a evoluir por causa dos seus eficazes sistemas de comunicação; vejam-se os cogumelos e as árvores. Os cogumelos, segundo os dados da Science Advances, existem há cerca de 715 a 810 milhões de anos [3]. As árvores, há 360 milhões de anos [4]. Para termos perspectiva, o primeiro hominídeo que andava em pé, um parente da conhecida australopitecos Lucy, surgiu há 4 milhões de anos e homo erectus há 2 milhões. Outra razão pela qual é com o homo erectus que se infere a questão da linguagem, é porque foi ele que se expandiu para fora de África, porém, ‘quaisquer que sejam os genes que contribuem para a faculdade da linguagem humana, já estaria presente em África antes de qualquer migração relevante para uma divisão’ [5] genética. Um bebé nascido em África ou em qualquer parte do mundo, se for adotado por um casal geneticamente distinto é capaz de aprender a linguagem dos seus pais adotivos sem problemas. Aprendemos uma linguagem, enquanto bebés, através da inseminação de conceitos primeiro, e progressivamente, as suas categorias no nosso cérebro vão-se multiplicando, como se fosse uma árvore genealógica de matrioskas, que depois se materializam em nomes. É análogo a mapear o mundo no nosso cérebro. Tal como a geografia não existe de forma desconectada (um mar está sempre em ligação com a sua costa, um pico de uma montanha com o seu sopé), também os conceitos não são coisas isoladas, eles existem em conexão (externalidades) com as categorias que compõem; e essas relações e categorizações ‘refletem a apreciação das práticas de nomeação das (...) comunidades’ [6] de cada pessoa, concluiu um estudo do MIT. Por isso é que dizemos que ‘os nossos cérebros estão programados’: os conceitos e a forma como eles nos são transmitidos pelos nossos pais, e por como a nossa cultura/comunidade entende o meio natural, programam a forma como compreendemos o mundo, através da linguagem. Na prática científica, cimentou-se na cultura ocidental que a aquisição de conhecimento seja feita como uma construção, o que torna a nossa conceção do mundo extremamente antropocêntrica. Os mesmos cientistas que fizeram o estudo das relações e categorizações de conceitos, concluíram que ‘o antropocentrismo é uma perspetiva adquirida, uma que emerge entre os três e os cinco anos de idade em crianças americanas criadas em ambientes urbanos’. [7] Na cultura científica ocidental elaboramos estudos infimamente específicos, que têm de ser corroborados e repetidos para depois serem relacionados entre eles. Mas, como Suzanne Simard, autora de ‘A Árvore Mãe’ e de estudos florestais que provaram a comunicação entre bétulas e abetos constatou ao longo da sua carreira, é muito difícil a ciência ratificar estudos sistémicos pois não é dessa forma que a ciência está estabelecida e delimitada. De forma geral, e algo superficial, podemos associar a ciência a epistemologias taxonómicas, por oposição a outras formas de entender o mundo, nomeadamente a de povos indígenas, que praticam uma epistemologia relacional, como o biologista Raymond Pierotti descreve: ‘o entendimento indígena do mundo natural emergiu da conceção do mundo vivo como uma rede de relações através de comunidades que incluem humanos. Por causa desta compreensão baseada em relações, princípios e entendimentos indígenas são também superiores em perceberem as conexões entre sistemas que são frequentemente considerados como separados pela tradição ocidental’. [8] Quiçá deveríamos simplesmente redenominar a epistemologia ocidental para epistemologia separatista, sendo que a realidade do conhecimento é toda relacionada, e consequentemente deveria ser esse o standard? Mas é graças ao conhecimento científico que também sabemos muitas coisas, inclusive datar o que aconteceu em passados longínquos, que nunca iremos saber se poderíamos saber de outras formas, através de outros sistemas epistemológicos. É graças a tal conhecimento que sabemos que o primeiro hominídeo que ‘despertou para a linguagem’ [9] apareceu por volta de 25 000 000 a.C.E.; aos 65 000 e 60 000 a.C.E. temos registos da utilização de símbolos, quer artística quer numericamente, respetivamente; embora tenha sido o homo erectus a produzir o hardware para linguagens poderem ser descarregadas é só aos 40 000 a.C.E. que a linguagem é formada (ainda que a linguagem sistematizada escrita seja só aos 5 200 a.C.E. que se concretiza), através da utilização de nomes9, que é a base da formação conceptual e o ato de relacionar. Ou seja, desde o hominídeo ao qual está atribuído o ‘despertar da linguagem’9, demorou 25 160 000 anos para conseguirmos um sistema de comunicação funcional e confiável, e especulo que isso seja porque estes aspetos convergiram: a criação de símbolos emancipou a cultura de identidade, a arte e a linguagem. É no intervalo entre 65 000 e 30 000 a.C.E. que se estima que o xamanismo tenha aparecido. Não só o mitologista comparativo Michael Witzel estima que todas as mitologias do mundo se consigam traçar até às migrações que aconteceram a 65 000 e 40 000 a.C.E., como existem também outros artefactos que Jean Clottes estudou do Paleolítico-Superior (entre 50 000 a 12 000 a.C.E.), e que Carla Frias relaciona com o aparecimento da consciência entre 30 000 a 40 000 a.C.E.. Saliente-se a exibição de identidade cultural e mitológica através da produção de esculturas com a cabeça de um leão e torso humano em Hohlenstein-Stadel, Alemanha aos 40 000 a.C.E., e a gravura de vulvas em Abri Castanet, França aos 37 000 a.C.E.. For fim, Barbara Tedlock selou as datas com a descoberta da sepultura de um(a) xamã que data de 30 000 a.C.E., onde é hoje a República Checa. O que quero intuir aqui é que nesta janela entre os 65 000 e os 30 000 a.C.E. – ou seja no decorrer de 35 000 anos - a nossa capacidade linguística se fomentou através da prática espiritual e artístico-cultural, e as práticas espirituais e artístico-culturais iam-se complexificando através do uso da linguagem. Digo isto de um ponto de vista epistemológico relacional por duas razões: adquirir a capacidade de formular um símbolo é uma externalidade, em comparação com somente formular um conceito, ou seja, é criada uma relação entre o conteúdo do conceito e uma forma de este ser representado; e, pela óbvia e demarcada simbiose entre estes domínios que ainda hoje sustemos enquanto comunidades, cujo valor para nós é tão congénito, intrínseco, até ao ponto de também susterem guerras e destruição. Também sublinho esta co-dependência ontológica do ponto de vista xamânico: para se fazer uma viagem xamânica é necessário um foco muito específico num conceito (ou uma intenção) para conseguirmos obter comunicação com o reino espiritual, onde se cria uma relação que é expressa muitas vezes através de símbolos, palavras, e/ou de um gut feeling, de ‘como fazer’, ou mais ainda, um ‘como é’. Quando foi a última vez que agiste imediatamente por instinto? Falta-nos seguir o intestino. Sabias que o intestino é um cérebro no seu próprio direito? Falta-nos o foco para sentir como é. O instinto sabe, é lagarto. Falta ainda relacionar mais alguns conceitos com os que acabo de expor para que o mapa da minha tradução da exposição ‘After Smoke and Mirrors’, com curadoria de Sara Castelo Branco patente no Centro de Arte Oliva até 15 de junho, esteja completo. Mencionei Suzanne Simard há pouco a propósito da comunicação entre árvores, mas a estória que também é história, de como ela conseguiu publicar o seu estudo foi repleta de obstáculos impostos pelo patriarcado, até ao ponto de ela desistir da sua carreira [10]. A relutância em investir em estudos sistémicos que impliquem conferir graus de inteligência que possam ter o potencial de serem superiores à inteligência humana, era (é?) também um obstáculo para não se financiarem estudos destas dimensões. Esta recusa é a antítese do mito da criação dos povos dos montes de Putumayo, em que até deus pode aprender. Algo muito arraigado não só na ciência, mas também na linguagem é o patriarcado. Foi precisamente esta questão linguística bem carregada na língua portuguesa o meu primeiro encontro claro, empírico, incontestável, com a consciência de que as mulheres não eram tratadas da mesma maneira do que os homens. Na língua portuguesa ainda mais do que no inglês, é um dado adquirido que o standard é um homem, o que a torna num território altamente sexista e por consequência, político. A linguagem manifesta hierarquias discriminatórias conforme reflete a cultura que a acompanha e vice-versa. Por isso é que há palavras que inicialmente têm um significado, e ao longo do tempo, esse significado vai mudando. O que significa que há formas de mudar a cultura, ao precipitarmos mudanças na linguagem que usamos. Temos de reclamar a linguagem, diz Amanda Montell em ‘WordSlut’; Montell também diz que o tal standard, em inglês, não só é um homem, mas como é um homem branco de meia-idade. Este livro está repleto de estatísticas para as quais já estou dessensibilizada, mas uma ideia que ficou comigo e que quero partilhar é uma questão que ela colocou: ‘consegues imaginar o quão diferente seria a vida se’‘sexo fosse descrito não como penetração, mas enquanto envelopamento, ou cercamento?’ [11] Seria mesmo um mundo diferente. Mas imagino que esse mundo já tenha passado por este planeta noutros tempos, noutras dimensões cronológicas em que o matriarcado prevalecia, matéria para o próximo artigo quiçá. É de notar que na Idade Medieval – e sem descurar as regras que eram ditadas pelos médicos eclesiásticos - o sexo era algo muito presente no dia-a-dia. Havia muitas intromissões por parte da igreja, mas maioritariamente na vida conjugal, como por exemplo com a questão do consentimento: se as pessoas fossem casadas, quase nenhuma desculpa era aceitável para recusar o coito, admitindo assim a igreja o direito à violação de um cônjuge; no entanto, se as pessoas fossem solteiras, a preocupação era a contrária. Havia o medo das poções de amor por exemplo, pois isso era uma forma de não consentimento. De certa forma, a igreja tratava o casamento como um investimento, altamente regulado de forma a produzir os resultados mais favoráveis à proliferação da igreja como instituição, mas fora do casamento, o sexo existia em aberto, assim como também o trabalho sexual. Contrário ao que as pessoas pensam, as pessoas na idade medieval preocupavam-se bastante com a sua higiene, e por isso frequentavam banhos públicos, que em muitos sítios eram banhos mistos, descreve Dr. Kate Listers sobre York, no Reino Unido. Em algumas regiões, identificou-se que às mulheres trabalhadoras sexuais lhes foi dado o epíteto de alfazemas, devido ao cheiro dos banhos. Ero-eco-misticismo na Idade Média? Quando ouço descrições destas, e comparo estas e outras idades com os dias de hoje, vejo o tempo de uma forma não linear, mas sim como uma plasticidade que é moldada pelas comunidades e geografias nas quais nos vamos inter-relacionando. Estou comigo, uma hora é uma hora. Estou na montanha uma hora são duas. Estou contigo, uma hora é mais curta. Estou feliz, uma hora é infinita. Quando foi a última vez que ouviste alguém contar-te uma longa história, sem ser no ecrã? Gostaria de propor que o tempo em si foi o principal meio da exposição ‘After Smoke and Mirrors’. Claro que as obras eram compostas por imagens em movimento, fotografia, escultura, mas foi a forma como Sara Castelo Branco construiu o tempo que senti central. Como o compasso da exposição estava montado, transportou-me para vários espaços temporais, construídos astuciosamente através do ancoramento dos filmes no trabalho material de Andreia Santana, Hugo de Almeida Pinho e Rodrigo Hernández. ‘A imagem em movimento assume um papel central, funcionando como veículo para evocar e reanimar mundos desaparecidos, invisíveis e paralelos’ diz Castelo Branco em folha de sala, mas não é só a imagem em movimento, é a dinâmica do tempo também. Estabelecendo um paralelo entre esta exposição e a epistemologia relacional, vejo as duas horas e meia dos sete vídeos expostos como os conceitos (a intensão), e as esculturas e impressões giclées, como as geografias (artísticas) às quais o tempo se agarra. Uma dança entre o etéreo e o material que se concretiza. Mas é na linguagem – e aqui poderíamos também falar de linguagem curatorial, linguagem artística ou na comunicação do design expositivo – que estão as externalidades, a forma como esta exposição se manifesta e se relaciona entre a intensão dos conceitos e o continuo espaço-tempo. ‘After Smoke and Mirrors’ está carregada de conteúdo narrativo e simbólico: desde a declaração da sua abertura com ‘Women and Smoke’ (1971-1972) de Judy Chicago, à malha que é tecida através das imagens de manuscritos medievais espalhadas por quase todas as salas, e à inclusão de 34 livros que se podem manusear e desfolhar, a linguagem desta exposição é complexa, diversificada, e ancorada no conceito de relacionalidade entre ecologia, comunidade e misticismo. E são todas narrativas ligadas às diferentes formas de nos relacionarmos com o tempo. Quando foi a última vez que ouviste alguém contar-te uma longa história, sem ser no ecrã? Este tempo pessoal, íntimo que tive com o ecrã (não estava mais ninguém na galeria, com exceção da assistente de sala) fez-me saudozar ouvir uma pessoa a contar-me uma história. Onde eu só escuto o conhecimento a passar, a intimidade a ser partilhada. Vários filmes na exposição me suscitaram este desejo de ter a minha avó ao meu ouvido, de salientar ‘Jiibie’(2019) de Laura Hertas Millán e ‘Tellurian Drama’ (2020) de Riar Rizaldí, mas as peças de Hernández, ‘With What Eyes’ (2023) e ‘Apart Together’ (2023), levaram-me mesmo à minha infância por causa dos traços algo naïves que desenhavam animais e me lembravam as pinturas de Russeau. O aço inoxidável trouxe-me a superfície da água e a sensação de estar a olhar para um ecrã fosco... como se fosse o espelho de uma infância que eu não vivi, mas que se pudesse entrar dentro destas esculturas de parede talvez descobrisse... Um tempo imaginado. Quando foi a última vez que foste a uma exposição, e tiveste de lá voltar? O ‘lá voltar’ é uma relação com o tal continuum espaço-tempo. Como se cuida de um jardim? Lá voltando. Como se nutre uma relação com uma amiga? Lá voltando. Como se cuida de nós? O ‘lá voltando’ tece espaços através do tempo, e caracteriza o tempo conforme o espaço. A própria Sara conta a sua fascinação sobre tal artificio, tendo sido a exposição ‘Meio Concreto’ de Alexandre Estrela em Serralves, uma referência para pensar o tempo, para pensar o ‘voltar lá’, pois nesta exposição certas peças estavam ‘ativadas’ em dias pares e outras em dias ímpares. O ‘voltar lá’, na sua perspetiva, potencia outras formas de olhar. De tal forma, o ‘lá voltar’ é muito íntimo, muito privado pois requer uma decisão muito mais dedicada do que ir só a primeira vez, e por isso, o lá voltar é uma questão de tempo pessoal, mas focado na partilha. O filme ‘Tellurian Drama’ de Riar Rizaldi surtiu um efeito muito interessante em mim. A qualidade plástica deste vídeo remeteu-me para a pré-adolescência, quando lia os livros do ‘Triângulo Jota’, e uns anos mais tarde também o ‘Blair-Witch Project’. E fez-me voltar a um sítio de mistério físico. Como quando ia explorar grutas com os meus amigos. As filmagens do grupo que limpa as redondezas do edifício tornaram a ficção muito real, pois houve uma transformação literal da paisagem en-scéne. Viu-se o tempo a passar. Sentiu-se a ideia de testemunho. Como as rochas de uma montanha. Este foi um dos filmes que me trouxe muito o elemento terra, o que foi bem-vindo, pois eu estava lá em cima inflada de ar (com o fumo de Chicago e um enterro que não tinha corpo e não foi para debaixo de terra, fez com que a morte ficasse suspensa no ar em ‘Burial of this order’ (2022)). Rizaldi na realidade é um fã de estórias, incluindo delas mais nas margens das teorias da conspiração; estas ficções cativantes e inesperadas também existem em formato de livro, onde mergulha nos detalhes da justaposição entre quem era Drs Munarwan e as mitologias de uma localização geográfica - a cordilheira Malabar-, e ainda, a construção do transmissor de rádio mais potente do mundo, em 1916. O elemento fogo também foi pontuando a exposição, desde os cartuxos das performances de abertura, à obra de Hugo de Almeida Pinho ‘Montanhas Fumegantes’ (2025), que sustentou toda a penúltima sala em diálogo com as imagens na parede oposta de rochas, água e luz, até à última sala, com a queima de junco e da cana-de-açúcar no Senegal, no filme ‘Parcelles 7’ (2020) de Abtin Sarabi. Importa salientar que a linguagem plástica deste vídeo, algo encenada e assumida como tal pelo artista, é-nos entregue pelo efeito notável que a poesia divina de Sohrab Sephni e Shabaaz Mystik trouxe à narração. Se a música hipnotizava os crescendos, as palavras embalavam-nos num doce conforto em contraste com as imagens de uma vida difícil em comunidades forçadas pelo capitalismo. Com este filme predominantemente retratado no masculino senti uma simetria de remate na curadoria, em relação à abertura com o fogo no feminino. Quando foi a última vez que te consciencializaste dos teus antepassados genealógicos? E quando pergunto sobre os antepassados genealógicos, pergunto pelas 2 elevado a 1680 pessoas que cá estiveram antes de nós, se recuarmos até à altura do surgimento da nossa consciência. Quando foi a última vez que imaginaste, geração por geração, as dificuldades e as alegrias de cada um dos teus antepassados? Foi de geração em geração que o tempo se esticou até nós. Em ‘After Smoke and Mirrors’, a sensação do ancestral impõe-se logo de início com ‘Women and Smoke’ pois as mulheres nesta performance alternavam entre etéreas (quase como se fadas), guerreiras, ou reminiscentes às três graças de Canova e Botticelli, cedendo-me a melancolia dos arquétipos femininos. Esta questão dos antepassados está presente em quase todos os vídeos expostos, e ao vermos ‘Burial of this Order’ (2022) de Jane Jin Kaisen somos induzidos a pensar num ente familiar, porém é de um ente coletivo que o enterro trata. Num exercício de chamada e resposta, um grupo de pessoas, algumas vestidas com robes akimonados de três cores diferentes, outras de forma ocidental, berram: ‘Não são vossos os filhos, nem os nomes, nem os túmulos’. ‘Não são nossos nem os mortos, nem as histórias, nem as mentiras.’ ‘Derrubem esta estrutura, derrubem esta ordem, derrubem este guião’. O ‘corpo morto’ não é um corpo, é um novelo de ligaduras e acaba por ser o centro de uma luta ingrata, pois quanto mais querem desfazer o nó, mais o apertam em outros lados. Ainda que este retrato seja o de um protesto socio-politico-económico, esta imagem do nó funciona como uma metáfora ideal para o problema ambiental da crise climática (que é uma crise cultural). Em ‘Jiibie’, filmado numa atmosfera esquiva, escura, misteriosa, profuso de grandes planos, vemos a relação da linguagem com a cultura; nele fala-se em ‘espalhar a boa palavra’, e a certo ponto já não sabemos quando começa a palavra e quando acaba a planta da coca, sendo este para mim o pico do ecomisticismo de toda a exposição: tal como no mito da yagé, aqui o conhecimento funde-se com uma planta, mas só é possível aceder a tal conhecimento com uma abordagem que inclua ambos o material e o espiritual. O mito de como a planta boa nasceu, de uma filha desejada, e do respeito de seus pais, é uma história linda à qual não vou fazer mais spoilers. Em ‘Haunted’ (2017) de Saodat Ismailova, o ancestral é pleno e estende-se ao reino animal. Com paisagens serenas, o elemento água regressa e acalma o fogo que também se sentiu em ‘Jiibie’ pois víamos as folhas a secarem, o suor a escorrer e a cinza ainda quente. De certa forma, ‘Haunted’ é uma oração ao espírito do tigre, da parte de quem o deseja, mas também teme. Um tempo indefinido, presente, mas não materializado. Este não é um tempo pessoal. É um tempo de conexão, de relação, com todos, com o todo. Um, em que a dissolução no todo é a felicidade infinita. Livre. Um letreiro a luz néon diz ‘hierophanies’. Será que vou entrar numa macumba em Amsterdão? A consistência de passar quase quatro horas na exposição, levou-me a um estado semi-hipnótico. Com as várias salas iluminadas de forma dramática por cores específicas predominantes em determinados espaços, exacerbou-se o conceito geográfico subjacente à premissa da exposição. As imagens nos pequenos projetores que serpenteavam o chão da exposição, estavam frequentemente replicadas em três, que com a repetição – como se estivéssemos a virar as folhas de um livro – insinuou uma certa embriaguez. Os sons de todos os vídeos em loop, como se fossem a batida do tambor... Na sala onde estavam os livros escolhidos pela Matéria Prima, estava também a instalação multicanal de Diana Policarpo, ‘Liquid Transfers’ (2022) que com um fundo verde muito presente, falava da história do ergotismo através de imagens de arquivo, imagens MEVT e de alternações entre planos roxos, amarelos e azuis entre os três ecrãs. Tendo em conta que um dos sintomas da doença causada pelo fungo Claviceps Purpurea eram alucinações, psicoses, espasmos e convulsões, nos dias em que este fenómeno começou a ocorrer (inícios do século X), esta doença foi inicialmente associada às bruxas; até que se espalhou tanto e se manifestou, bizarramente, numa época conhecida por Coreomania, em que milhares de pessoas se juntavam para dançar compulsivamente, muitas vezes até morrer. Dançar é em muitas culturas xamânicas, espirituais e até religiosas, um portal de envolvimento com os espíritos, de celebração da natureza, de concretização de ritos de passagem. Eu gostaria que um dia no meu funeral, todos dançassem, fica já público. Dançar é uma forma de conhecimento, atua muitas vezes como preliminar ao envolvimento sexual, e é uma expressão cultural, e parece até poético que tantas pessoas morreram assim, em comparação com a queima das bruxas por exemplo. E é um pouco por causa das bruxas – temática que muitas artistas e curadoras estão a reclamar recentemente e muito bem, pois com o crescimento da misoginia não se sabe quando iremos precisar de um bom feitiço – que esta exposição se foi moldando de alguma forma. A curadora, em entrevista, mapeou outra influência para esta exposição, a leitura do livro ‘A Calibã e a Bruxa’ de Silvia Federici. Federici, nesta obra, relaciona o legado da queima das bruxas no começo da Era Modera e as transformações sociais que fomentaram o surgimento do capitalismo e, crucialmente, com o cimentar de um regime patriarcal mais opressor que se sente ainda hoje. Mais uma viagem no tempo. Será que uma epistemologia taxonômica não pode coexistir com uma epistemologia relacional? Porquê fugir? ‘After Smoke and Mirrors’ foi para mim como uma leitura de tarot. Uma pessoa fica fascinada com o que as cartas têm a dizer, com as relações entre elas, e depois de ouvirmos as histórias de cada carta, entramos num processo de relacionamento com a sabedoria em cada uma delas, mas que só o tempo vai ajudar a decifrar. Poderia argumentar que a arte é um pouco como um lance de cartas: um sistema epistemológico (exceto pelo facto de que a distinção entre crença justificada e opinião não é clara o suficiente) que procura explorar uma linguagem através das relações entre os seus elementos, nomeadamente símbolos. A dificuldade não está no reconhecimento do conhecimento. A dificuldade, o sofrimento que o deus que bebeu a yagé fala, é em nos relacionarmos com o conhecimento. ‘After Smoke and Mirrors’, para além de se apresentar como um relacionamento entre sistemas de conhecimento como Raymond Pierotti descreve, mostra-nos linguagens que não nos devem afligir, mas que pelo contrário devemos abraçar: a linguagem do tempo, é uma linguagem simultaneamente individual e universal, que nós não dominamos; mas a falta de domínio não deve ser motivo para secar o desejo do ‘reencantamento do mundo’15 [15]. Este, provém das externalidades do mundo natural, com o qual muitas culturas deixaram de se quererem relacionar, por entendermos a ciência ocidental materialista como um dogma. Uma visão do mundo, nunca lhe é fiel se os sistemas epistemológicos adotados se deixam atraiçoar pelo que é a supremacia, uma maioria percepcionada e prescritiva, dogmatizando procedimentos e perdendo o acesso a coisas que nem nós nem deus podemos explicar, mas podemos conhecer. Quando é que vamos deixar todas as pessoas serem o que elas quiserem?
Inês Ferreira-Norman
[1] Onions, C. T. (eds) (1994), The Oxford Dictionary of English Etymology, Oxford University Press, New York, p.320 |