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PERSPETIVA ATUAL


Fátima Mendonça. © Miguel Pinto


Fátima Mendonça, Explosão da série Diário-Dias Incertos (2020-22). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Operação ao Cérebro - A Cura (2014). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Operação ao Cérebro - A Cura (2014). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Operação ao Cérebro - A Cura (2014). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Sem Título (2011). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Dois Murros da série Diário-Dias Incertos (2020-22). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, O Pavão das Patas Grandes (2020-22). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Escondida no cobertor vermelho da série Diário-Dias Incertos (2020-22). Cortesia Galeria 111.


Fátima Mendonça, Camarões da série A Casa do Desarranjo (1996). Cortesia Museu de Arte Contemporânea de Elvas - Coleção António Cachola.


A Minha Primeira Viagem Sozinha de Maria Arlete Alves da Silva e Fátima Mendonça (2014). Cortesia Galeria 111.

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Há quem veja Fátima como uma mulher com medo. Ela admite que, em parte, pode ter culpa disso. A sua pintura é feita de caras deformadas, casas que ardem, cabeças, cérebros, novelos, feridas, bolos prestes a rebentar. Mas também é feita de animais e dias de sol. “Pinto a vida quotidiana”, diz, admitindo poucas barreiras entre a sua produção artística e a sua vivência diária. Porém, há nesta declaração uma ironia circunstancial. O encontro na Galeria 111, que a representa desde 2000, tornou distante a sua casa, atualmente, o seu lugar de trabalho – o atelier tornou-se insustentável.

Fátima Mendonça nasceu em Lisboa e tem 59 anos. Foi casada com o artista e professor Rui Serra, e venceu o Prémio Maluda de Pintura, atribuído pela Sociedade Nacional de Belas Artes, em 2001. É filha de “pessoas humildes que lutaram muito para conseguirem ter uma casa”, conta Maria Arlete Alves da Silva, amiga próxima da artista e uma das responsáveis pela galeria que a representa.

Logo à partida, esta consideração, vinda da voz de Arlete, e não de Fátima, fundamenta o resguardo da artista, que não obedece à revelação crua das suas obras. Separa-as, também, um quotidiano: Arlete passa os dias no seu preenchidíssimo escritório no Campo Grande, a partir do qual gere a galeria com o seu filho, Rui Brito; já Fátima fica em casa, vai ao Facebook, faz as suas pinturas e gere a “chatice” que é cozinhar “as mesmas batatas, os mesmos legumes e o mesmo peixe.” O que não diz parece tão importante quanto o resto. Admite que se dá com muito poucas pessoas, por ser “muito vulnerável, ter tudo à flor da pele.”

Num esgar feliz, quase pueril no seu atrevimento, Fátima revela que a sua paixão pelo desenho remonta aos primeiros anos de crescimento. “Lembro-me de estar na primária, e achar os meus desenhos muito mais bonitos que os dos outros”, diz, recordando que a professora não lhe assinava os desenhos, porque não queria deixar a sua marca num desenho que achasse bom. “Mas também havia um interesse especial nos outros desenhos bonitos.” É aqui que as palavras de Fátima, singelas e simples, mais se aproximam da sua produção artística: nos seus traços rápidos e instintivos, vemos uma menina feliz, assoberbada pelos traumas de adulta. “No liceu, senti que era importante, para o meu equilíbrio mental, ter algo onde me pudesse exprimir e comecei a fazer teatro." Abandonou esta prática pouco depois. "O teatro tinha um espaço de tempo e depois acabava, ao passo que, quando se faz uma pintura e um desenho, elas mantêm-se.”

Este fascínio pela pintura e a sua permanência, levou-a a juntar-se, em 1994, à Galeria Arte Periférica. Terá sido apenas em 2000 que integrou a galeria da sua agora amiga Arlete. “Ela fez uma peça sobre um circo que levou para a AR.CO e eu fiquei absolutamente deslumbrada com aquele tipo de linguagem, muito crua" revela a amiga. Mas foi só quando organizou uma exposição na Irlanda, no contexto de uma visita do presidente Jorge Sampaio, que se lembrou de Fátima. "O meu marido não queria que eu expusesse os trabalhos da Fátima, mas eu levei a minha avante. Quando ele viu a exposição, começou a fazer um rapa pé à Fátima para vir trabalhar conosco”, conta, divertida.

Fátima Mendonça terá chegado à Galeria 111 na mesma altura de outros artistas que, por lá, também, passaram, como Joana Vasconcelos ou Ana Vidigal, hoje nomes consagrados na arte contemporânea portuguesa. Fátima, no entanto, parece ter ficado esquecida no tempo. “A Fátima e o Rui Serra foram muito acarinhados pelo António Pinto Ribeiro (programador da Culturgest entre 1993 e 2004). A obra muito pessoal interessava muito ao António, mas com a sua saída da Culturgest, esse elo quebrou-se. Ter ficado em Portugal marginalizou-a um bocadinho”, diz Luísa Soares de Oliveira, crítica de artes plásticas no jornal Público. Admite que a obra de Fátima foge das tendências atuais da arte contemporânea em Portugal, caracterizando a sua produção como “muito boa”, mas “marginal.” “Ela própria se marginaliza”, admite. “Está fora do circuito de arte, não vai às exposições dos colegas. É muito fechada.”

Arlete confessa: “Eu gosto muito dela, porque é uma mulher muito inteligente, ainda que muito desequilibrada. Há uma linha que separa uma coisa da outra, e ela anda sempre resvés a cair para um dos lados.” Já Diana Costa, artista e professora, sublinha que, hoje em dia, “não há assim tantos artistas a fazer trabalho de conteúdo biográfico”, destacando a coragem da artista em expor as suas fragilidades. Caracteriza-a como uma “fortaleza expressiva e destemida.”

Fátima, no entanto, não parece tão ciente disso. Pelo menos, a sua postura não abre espaço a auto congratulações. Entre memórias, recorda o seu fascínio por um desenho que, em criança, viu no chão, sem saber de quem era. “Tocou-me tanto que me lembro de sentir qualquer coisa no estômago.” Fátima é hermética, também, nesta revelação de influências para as suas obras. Na tentativa de outros nomes, evoca o pai e o avô. “Lembro-me de três ou quatro desenhos do meu pai quando ele fez a escola, que eu achava muito interessantes, ou de ver o meu avô a tentar desenhar partes de cavalos, ou partes de bolos, ou partes de chávenas num papel qualquer.” Apesar disso, confessa um certo não reconhecimento dos pais em relação à escolha pela vida artística, “os tempos eram outros. Nunca fui de pequenina levada a museus, nunca me puxaram para esse lado de artista plástica. Ficava mais fascinada com coisas do dia a dia”, sublinha.

Arlete conta que, na sua infância, a mãe de Fátima fazia rissóis para fora. “Há imagens da Fátima com montes de cascas de camarão. Ela diz que a mãe comprava o camarão miudinho que era o mais barato, e ela e a irmã passavam dias e dias a descascar os camarões para os rissóis.” Olhando para a série de pinturas Casa do Desarranjo que elaborou entre 1995 e 1996, esta memória é exponenciada. Montanhas de camarão sobrepõem-se empilhadas como colossos de medo.

Ainda que Fátima não elabore sobre o assunto, Arlete confessa que a artista teve uma infância muito opressiva. “Eu imagino o que ela não sofreu fechada em casa com os pais. Criaram as filhas num ambiente em que não é preciso ter amigos, o que interessava era a família, e acho que isso foi um pouco claustrofóbico para ela. Tudo isso condiciona a pintura dela. A casa é o sítio de todos os perigos.” Na sua última exposição Diário - Dias Incertos, terminada em fevereiro deste ano na Galeria 111, Fátima expôs, continuamente, desenhos de uma casa que ardia. Este é, aliás, um elemento recorrente na sua pintura, desde o fogão que deita lume, à clausura dos espaços fechados, ou as paredes que espreitam. “Ela tem uma série de pinturas que são só olhos. Aquilo é o retrato psicológico dela, a ser vigiada a todo o momento.” Outro tema comum é a irmã, que expõe, muitas vezes, através da escrita nos próprios quadros, como se um diário se tratasse. “Ela faz muito o retrato da irmã e diz: “não chores, eu estou aqui”", conta Arlete.

Luísa Soares de Oliveira destaca a presença de uma vertente psicanalítica no trabalho de Fátima. “A Fátima fazia psicoterapia e a sua obra é uma continuação disso. Ela converte os seus traumas em imagens. Muitas vezes, fazia entrevistas e não conseguia falar da obra dela sem contar histórias”. Nessa aparente ingenuidade, Luísa assume que possa haver uma contenção propositada. “Ela tenta abstrair a teoria da pintura do seu trabalho, mas acho que há ali um lado propositado, um equilíbrio”. Nesse sentido, Diana Costa aponta que, na obra de Fátima, "o segredo está em perceber onde está a produtora de fantasias e a pessoa da artista.”

"Quando estou a fazer os meus quadros, aquilo é como se fosse transformador. É como se fossem coisas boas” declara Fátima, apaixonadamente. Contradição? Ou o relato de um processo de catarse? Arlete discorda: "Toda a pintura dela vem das entranhas, é muito visceral. Mas aquilo para ela também é sofrimento. Há artistas que pintam e estão todos contentes, mas não é o caso”. A amiga volta à infância da artista num ambiente impositivo, marcado pela moralidade religiosa dos pais: “Acho que ela pinta como uma punição para se penitenciar dos seus eventuais pecados. Nos quadros dela há tanta ferida, que me parece mais punição do que catarse”.

Na série A Cura - Operação ao Cérebro, que realizou em 2014, Fátima encara esta moralidade de frente. De um cérebro pintado, incrusta-se, ingenuamente, uma Nossa Senhora de Fátima. “Muitas mulheres portuguesas, e não só, foram sufocadas por preconceitos, tabus, e costumes de inspiração católica, marcada por restrições no que diz respeito aos direitos sexuais, à igualdade e à liberdade sexual”, refere Marta Crawford, psicóloga clínica e sexóloga que, na primeira exposição que comissariou no Museu Pedagógico do Sexo, mostrou esta série de desenhos de Fátima. Terá sido uma das poucas ocasiões, nos últimos anos, em que o trabalho de artista foi mostrado, fora do domínio da galeria que a representa. “A família, a sociedade e a igreja, são cúmplices na forma como castraram tantas mulheres na sua sexualidade. Os desenhos desta série espelham aquilo que tantas vezes perturba essa capacidade de se ser feliz sexualmente.”

Comentando sobre o contexto da arte contemporânea atual, Fátima distancia-se de uma prática que caracteriza como “rígida” e “impessoal”. “Lembro-me de, há uns anos atrás, as pessoas gostarem de fazer uma obra e assinarem todas lá o nome. Por exemplo, eu tenho imensa dificuldade em perceber aqueles artistas que fazem aquelas caixas, só. Não tenho dados interiores que me permitam ter uma ligação, mesmo que intelectual.”
Para ela, a expressão artística parte de um lugar de subjetividade: só podemos criar aquilo que somos. “Sempre fui figurativa, mas não me interessa desenhar muito bem um braço, uma mão ou uma cara. Interessa-me saber que aquilo é uma cara. Mas pode-me interessar que fique uma cara perfeita ou não. Que fique desarmoniosa se for caso disso. Com uma desarmonia que me agrade.”

Apesar destas dissonâncias, o seu distanciamento da abstração leva Fátima a considerar que por vezes faz tudo demasiado “perfeitinho”. Diana Costa aponta uma hipótese para esta consideração: "Os nossos filhos são sempre perfeitos.”

Ainda que nunca tenha sido mãe, Fátima nunca esqueceu a meninice - na sua sensibilidade, na sua descomplicada forma de ser. “Também tive uma infância muito parecida à da Fátima. Uma vez, contei-lhe uma das minhas histórias de infância com a minha irmã”. Arlete teria viajado sozinha, com 7 anos, de Matosinhos a Figueiró dos Vinhos, apenas com um pombo-correio, fechado numa caixa, para enviar aos pais quando chegasse. Passado pouco tempo, conta que Fátima trouxe-lhe alguns desenhos. “São sobre essa história”. Arlete decidiu fazer um livro a partir deles “A minha primeira viagem sozinha”. Agora, percorre-o, comovida. “A Fátima tem um coração muito generoso”, diz. “É engraçado, porque ela apanhou o espírito deste tempo. E depois acabou por pôr uma gaiola, em vez da caixa, porque sempre é mais poético."

 

 

 

Miguel Pinto
Mestrando em Jornalismo pela NOVA-FCSH, e licenciado em História da Arte pela mesma faculdade. Estagia na Cinemateca Portuguesa e escreve nas horas vagas.